Maurício de Almeida explora com sutileza a severa angústia que perpassa toda uma vivência frustrada e sem volta.
A instrução da noite, novo romance do premiado escritor Maurício de Oliveira, remete-nos àquela sensação catártica e dilacerante de Carta ao pai, de Kafka, no qual, em clave autobiográfica, o autor tcheco faz um doloroso percurso pelo passado de silêncios e ausências na relação com um pai autoritário e que relegou o filho a uma vivência marcada pela frustração e pelo descrédito.
Ainda que aqui o autor paulista trate de matéria ficcional, seu personagem também guarda (in)tensa analogia com esse mesmo território penoso e dilacerante, porém alvejando uma convivência marcada pelo espectro da ausência e do silêncio, tão torturante quanto uma presença totalitária e demolidora.
O enredo dessa novela centra-se no retorno de um pai, após anos de abandono da família, quando se retirou sem qualquer explicação, deixando como rastro o luto de uma escuridão abissal na alma dos filhos, uma sombra a camuflar a razão que teria provocado essa ruptura, desencadeando uma eterna incógnita para esse passivo afetivo.
Tão forte (e desconcertante) quando o desaparecimento foi a reaparição, ambos abruptas, deflagrando um estado eruptivo de sentimentos contraditórios, que emergiam no caudal de lembranças e recordações, em razão do fosso causado pelo isolamento.
O personagem central (não nomeado) é um filho que tomou as rédeas da casa tão logo o pai defenestrou-se de suas vidas. Recorrendo ao fluxo de memória e consciência, ele vai deslindando, via epistolar, à sua irmã Teresa (que há pouco também fugiu de casa), as mágoas e a opressão interiores provocadas pela falta paterna, que cavou o imenso fosso em suas vidas, dilacerado por esses anos de incorrigível vazio, em que a família se desconstruía sob a força imponderável de uma realidade sufocante.
A narrativa, em dois tempos, engendra um poderoso relato centrado do reencontro entre os dois, cuja carga psicológica é explorada com extremo rigor e destreza na linguagem, desencadeando reminiscências torturantes e recomposição doídas de cenas, flashes e episódios da infância, quando o fantasma dessa orfandade em vida cada dia os assombrava mais, tutelado por outras ausências. De um lado, a da própria mãe, insularizada em sua própria apatia, abduzida pela televisão e por outro, a da esposa Alice, com as quais tentava compartilhar seus sofrimentos, porém, alienadas dessa dor, mais ajudavam a projetar esse estado de incomunicabilidade e profunda melancolia.
A volta do pai não reduz as fundas cicatrizes esculpidas pelo golpe da sua partida e, ao colocá-los, ao final, frente a frente num encontro (ou ajuste) de contas numa mesa de bar, expõe, de forma visceral, as fragilidades psicológicas de um e a penúria financeira e material de outro, e a narrativa vai se amalgamando com peculiares recursos formais, adotando-se períodos sem maiúsculas ou pontos finais, como numa visão fragmentária do próprio caos instalado.
Durante toda a trama percebe-se um tom claustrofóbico, mas intrinsecamente humano, em que o autor explora com sutileza a severa angústia que perpassa toda uma vivência frustrada e sem volta. Trata-se de um romance que mergulha na brutalidade poética própria das circunstâncias vividas pelo protagonista, em que o caos interior atinge um momento de rara e trágica beleza. Algo que se assemelha aos romances de atmosfera, em que menos interessa o enredo e mais a força da linguagem, assim como nos legaram uma Clarice Lispector, uma Virginia Woolf ou um Raduan Nassar que, como Mauricio de Almeida, chafurdam nos escuros labirintos existenciais com o facho luminoso e candente de uma ficção cirúrgica e penetrante, para inventariar as perdas e danos decorrentes dos tempestuosos conflitos e relações, de pequenos dramas ou de grandes dilemas em que personagens são condenados e um eterno naufrágio.
Ronaldo Cagiano
Autor de Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral) e O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias), dentre outros. Mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e reside em SP desde 2007.