É muito bom ver o satirista de Samósata relançado em português
Luciano de Samósata nasceu na Síria, por volta do ano 120 EC. Ganhando a vida como sofista e orador errante – carreira que provavelmente o obrigou a ser, em diversos momentos, lobista, advogado, professor, palestrante motivacional e loroteiro – visitou a Turquia, a Grécia, a Gália e o Egito, onde finalmente arrumou uma sinecura no governo. Sua língua natal era quase com certeza o aramaico, mas a obra que deixou – cerca de 80 textos sobrevivem – está toda escrita em grego.
Se essa parece uma carreira um pouco cosmopolita demais para uma época em que o meio de transporte mais popular era o lombo de jumento, não nos esqueçamos que Luciano era um filho da civilização multiétnica, interligada e efervescente engendrada pelas conquistas de Alexandre, cimentada por Roma e que acabaria, no fim, esmagada pelo cristianismo. Religião da qual Luciano foi, aliás, vítima póstuma: seu trabalho entrou para o Índice de Livros Proibidos do Vaticano em 1559 (o relato A Morte de Peregrino) e em 1590 (suas obras completas), e lá ficou, por séculos a fio.
Luciano costuma ser classificado como um “satirista” e, embora a designação seja merecida – muitos consideram que sua principal contribuição à Literatura foi a apropriação do geralmente sisudo e solene diálogo filosófico, à la Platão, como ferramenta de humor –, ela é também um pouco limitante. Puxando a brasa para a minha sardinha profissional, eu preferiria classificá-lo como um tipo especial de jornalista. Em Peregrino, texto que, lido hoje, parece uma espécie de obra de jornalismo gonzo escrita por Christopher Hitchens, Luciano descreve o suicídio do filósofo cínico (e ex-líder cristão) Proteu Peregrino, e trata como parvos tanto os seguidores do misticismo helênico quando os do “sofista crucificado”, o epíteto que usa para se referir a Jesus. Sua descrição de como Peregrino havia conseguido seduzir uma comunidade cristã – “ele os reduziu a crianças, tornando-se profeta, líder (…) intérprete e autor de livros, honrado como um deus” – remete quase que diretamente ao tele-evangelismo atual.
Outra de suas obras, o diálogo Os Amantes da Mentira, poderia, com poucos ajustes aqui e ali, ser chamada de “Os Teólogos” (“Refiro-me àqueles que veem a mentira pura e sem sentido como preferível à verdade, gozando dela e gastando seu tempo desse modo, sem razão concreta”). É nesse diálogo, aliás, que aparece o que talvez seja a mais original das fantasias de Luciano, a parábola do Aprendiz de Feiticeiro – que depois, encarnada por Mickey Mouse, ganharia fama universal. Já o diálogo Das Escolas Filosóficas ridiculariza a pretensão da filosofia estoica – de ser o caminho privilegiado para a virtude e a felicidade – com argumentos que não perdem força quando usados contra as pretensões semelhantes do cristianismo, islamismo, et caterva.
Mas isto aqui deveria ser uma resenha da edição recente da obra mais famosa de Luciano, A História Verdadeira, lançada pela Ateliê Editorial, em “tradução relativamente fiel” de Gustavo Piqueira. Confesso que nutro certa antipatia pela História Verdadeira. Primeiro, porque sua fama eclipsa a de obras que me parecem mais divertidas e relevantes, como as duas biografias de charlatães religiosos (além do Peregrino, há Alexandre, o Falso Profeta que, se me perdoam o comercial, serve de base para um dos capítulos do meu Livro dos Milagres) e os diálogos. Segundo, porque A História… geralmente é citada como uma “precursora da ficção científica”, porque envolve uma guerra entre a Lua e o Sol, o que faz tanto sentido quanto dizer que a narrativa da expulsão do Paraíso, no Livro do Gênese, é um “precursor de CSI”, porque envolve um ato ilegal (o consumo da maçã) um interrogatório de suspeitos (Adão, Eva a Serpente) e desemboca num homicídio (o de Abel).
Além disso, A História Verdadeira é, das sátiras de Luciano, a menos eficaz para o leitor moderno: ele a escreveu para sacanear os historiadores e geógrafos que recheavam seus textos de mentiras deslavadas (e nem Heródoto, o vetusto Pai da História, escapa). Só que esse é um tipo de farsante pouco familiar hoje em dia, ainda mais em comparação com os Alexandres e Peregrinos que pululam por aí, a torto e a direito.
Mas, pondo a ranhetice de lado, não há como negar que o texto tem grande importância histórica: sem ele, provavelmente não teríamos Erasmo de Roterdã, Voltaire, Swift, Cyrano de Bergerac e nem, valha-me Odin, a fabulosa criação coletiva conhecida como As Aventuras do Barão de Münchausen. E que é delicioso, revelando uma imaginação que é ora lírica, ora simplesmente desbragada, com aranhas que tecem teias entre o Sol e a Lua num momento e homens de pintos descomunais, que navegam pelos mares deitados de costas, com velames amarrados aos falos eretos, em outro.
A tradução “relativamente fiel” é, bem, relativamente fiel. Não leio grego antigo, mas comparei o texto de Gustavo Piqueira com a tradução para o inglês da Oxford World Classics, e a versão brasileira me pareceu mais coloquial e também mais concisa, com parte dos diálogos resumida em discurso indireto, por exemplo. Mas os episódios malucos estão todos lá, e a leitura é leve e agradável.
A opção por não incluir notas de rodapé faz com que algumas piadas corram o risco de se perder. Há, por exemplo, uma ironia no fato de a padroeira da Ilha de Queijo ser a nereida Galateia (“gala” significa “leite”, coisa de que o leitor não é informado), e no de a alma de Platão se recusar teimosamente a entrar no Paraíso, por preferir governar uma cidade própria, regida com leis de sua invenção (alusão às pretensões utópicas e arrogantes do diálogo platônico A República, outra coisa que o leitor desarmado de notas explicativas talvez não pesque).
Desconectado de seus referentes na história, no contexto literário da época em que foi escrito e, até, da intenção satírica original do autor, o texto apresentado pelo Ateliê Editorial é uma peça de puro surrealismo. Impressão reforçada pelas ilustrações, que vão de emulações irônicas dos estilos de Doré e Da Vinci a aparentes pinturas de dedo.
O livro, enfim, com as ilustrações, capa dura e o texto estranhamente solto de suas amarras históricas e contextuais, é uma obra em si, da qual a narrativa de A História Verdadeira representa apenas uma parte. De qualquer forma, é muito bom ver o satirista de Samósata relançado em português, e numa edição voltada prioritariamente para o público em geral, não para os Departamentos de Letras.
Eu só preferiria, mesmo, que fosse o Peregrino.
::: A história verdadeira :::
::: Luciano de Samósata (trad. Gustavo Piqueira) :::
::: Ateliê Editorial, 2012, 88 páginas :::
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Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.