Selvagem de outra esquina

Os 54 anos vividos por Paul Gauguin foram breves demais para a intensidade e a paixão com que ele os percorreu. Morto em 1903, sua história é uma sucessão de rupturas com a vida e com a arte que o precedeu. Aos 15 anos, meteu-se num navio que fazia a rota Bélgica-Rio de Janeiro. Não gostou da baía de Guanabara, achou-a parecida com “uma boca banguela”, como lembra Caetano Veloso na canção “O estrangeiro”. Depois de percorrer meio mundo, voltou a Paris, onde dedicou-se a visitar o Louvre, a estudar desenho e a frequentar os impressionistas da época, sobretudo Pissarro, pintor que o orienta e do qual herda uma visão pastoral da pintura.

Das lendas envolvendo Gauguin a que mais perdura é a do homem, já maduro, que abandona a família, desengaja-se do mundo urbano e burguês e se instala numa ilha dos remotos mares do sul, em busca de um sentido primitivo da vida, livre e sem amarras. No Taiti pinta belas e exóticas nativas em trajes resplandescentes ou simplesmente nuas. Mesmo sendo mais conhecida, a obra que Gauguin produziu no Taiti não foi a que propiciou o gigantesco passo que conduziria à arte moderna, como defende a exposição “Gauguin e as origens do simbolismo”, já apresentada na Espanha e que a partir de março será a atração do Stedelijk Museum de Amsterdã.

No final do século 19 um fenômeno sacudiu as vanguardas artísticas européias e essa transformação está expressa em “Visão do sermão” [ao lado], na qual passa-se de uma pintura de sensações (marca do impressionismo em voga) para uma pintura de idéias, com forte toque espiritual, que caracterizou o simbolismo. O quadro, concluído por Gauguin em 1888 – três anos antes de sua primeira viagem ao Taiti – é o prelúdio de uma nova maneira de pintar, na qual desaparece a imitação da natureza e surge um estilo baseado em formas sintéticas, delimitadas por traços grossos, às vezes toscos, de cores intensas. “Não copie tanto a natureza. A arte é uma abstração. Tire-a da natureza. Preocupe-se mais com a criação que com os resultados”, aconselhava o artista.

Procedente da National Gallery, da Escócia, será a terceira vez que “Visão do sermão” sai do país. “Com este quadro Gauguin jogou pela janela quatro séculos de arte européia, tudo o que se fizera do Renascimento até então”, diz Guillermo Solana, curador da mostra que os holandeses verão em breve. “A referência passou a ser a imagem primitiva contida na tela, que acabou por se converter em ponto de partida para as vanguardas do século 20”.
Mestre além do tempo
“Visão do sermão” é o centro de gravidade em torno do qual a exposição se organiza. Serão necessários dois grandes espaços de arte para abrigar a magnitude da mostra, que se divide em nove capítulos. São 186 obras – 65 das quais cedidas por museus de todo o mundo – que contam a história da transformação de um homem. “Num espaço de seis anos Gauguin abandonou o emprego de corretor de bolsa de valores e o hobby de pintor de fim-de-semana para tornar-se o artista consumado que liderou o pós-impressionismo”, explica o historiador espanhol Tomás Llorens, que trabalhou quatro anos no projeto.

Como os gênios não andam sozinhos pela vida, o curador Guillermo Solana procurou salientar na exposição os encontros e diálogos de Gauguin com seus mestres e discípulos. Cézanne mostrou-lhe a natureza, Degas ensinou-lhe a erotizá-la. O resultado é a mistura de nudismo, dança e banhos ao ar livre que compõem algumas das obras-primas presentes na exposição. Mas foi com Van Gogh que ele viveu, em Paris, uma tumultuada relação amorosa que culminaria com o pintor holandês decepando a própria orelha. Entre tapas e beijos o caminho era pavimentado para Picasso e Matisse entrarem em cena e ditarem a modernidade que viria. Nos últimos anos de sua vida, convertido ao cristianismo, Gauguin era um mestre consumado da pintura, embora o reconhecimento, como de costume, só viesse muito depois.

Um dos romances mais recentes de Mário Vargas Llosa, O paraíso na outra esquina, é a recriação literária da vida de Paul Gauguin e de sua avó, a feminista Flora Tristán. Ambos foram a encarnação das utopias sociais e artísticas, do sonho da sociedade perfeita que marcou o século 19. Flora buscava a transformação social; Paul, um mundo de beleza que esperava achar nas culturas exóticas de mares distantes. Nenhum dos dois encontrou o paraíso. Mas a viagem fez de suas vidas eventos extraordinários.



  • http://pianistaboxeador21.blogspot.com Daniel Lopes

    Texto muito bom.

  • Roberto

    Quem disse isto meu caro não foi Gauguin e sim Claude Lévi-Strauss.
    A conferir: http://dusinfernus.wordpress.com/2008/11/28/o-homem-que-odeia-a-baia-de-guanabara-faz-100-anos/

  • http://www.driaguida.blogspot.com Adriana

    Texto muito bom com ricas informações. Quem já teve o privilégio de conhecer as obras de Gauguin ao vivo jamais esquece. Parabéns.

  • Carlos Alberto

    “Aos 15 anos, meteu-se num navio que fazia a rota Bélgica-Rio de Janeiro. Não gostou da baía de Guanabara, achou-a parecida com “uma boca banguela”, como lembra Caetano Veloso na canção “O estrangeiro”.

    O autor desta frase, que eu não concordo, pois a baía de da Guanabara é linda! Foi Claude Lévi-Strauss,
    Na música de Caetano ele fala também em Lévi-Strauss.
    Uma correção no texto não custa nada! Abraços

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