Veja: mais perdida que cego em meio de bombardeio

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Veja: mais perdida que cego em meio de bombardeio

por Daniel Lopes (15/01/2009)

por Daniel Lopes – Se sua missão na vida é justificar todo e qualquer crime contra a humanidade praticado por Israel, você já pode começar a se preocupar: o melhor título que a revista Veja conseguiu arrumar pra sua matéria sobre o atual conflito em Gaza foi, “Sob o ódio dos vizinhos”. E o subtítulo, […]

por Daniel Lopes – Se sua missão na vida é justificar todo e qualquer crime contra a humanidade praticado por Israel, você já pode começar a se preocupar: o melhor título que a revista Veja conseguiu arrumar pra sua matéria sobre o atual conflito em Gaza foi, “Sob o ódio dos vizinhos”. E o subtítulo, motivo ainda maior de preocupação, “Atrocidades da guerra na Faixa de Gaza atrapalham o entendimento de Israel como uma ilha de democracia cercada de ditaduras no Oriente Médio.” (edição nº 2095, 14 de janeiro)

Digo que é motivo de preocupação porque a Veja, como é sabido, é o farol do Ocidente no choque de civilizações. “Israel é uma sentinela avançada da democracia e da civilização judaico-cristã” é uma frase que você continuará encontrando em suas páginas mesmo depois que Dick Cheney, passando seus últimos dias a caçar patos em algum rincão da América, tiver dito que vai ver são os israelenses que estão dificultando o processo de paz.

Essa conversa de “ódio dos vizinhos” foi a melhor coisa que a revista conseguiu bolar? Onde estão as fontes árabes que juram que os palestinos desenterram cadáveres para fotografá-los como se fossem vítimas recentes? Onde estão os intelectuais refugiados nos Estados Unidos que dizem ter provas de que os palestinos prefeririam viver sob ocupação israelense que sob o governo do Hamas ou da Autoridade Palestina? Nenhum relato pormenorizado de como os terroristas do Hamas torturam seus prisioneiros? É, a coisa anda mal no Oriente Médio.

Peço perdão aos colegas do Amálgama por só ter lido hoje essa reportagem da Veja. É que, por medo de ficar ainda mais esquerdista, deixei de ler a revista aí pelos 20 anos; mídia conservadora, agora, só do mundo civilizado. Se não é uma amiga minha caridosa pra mandar por e-mail a reportagem, este post não existiria.

Mas reconheço que, mesmo tirando os milhares de exemplares da Veja que vão direto para consultórios odontológicos, ela ainda tem influência sobre os “liberais” brasileiros – como se sabe, o “liberal” brasileiro é diferente do liberal do mundo civilizado. Aqui mesmo no Amálgama, o comentário mais inteligente pró-Israel que recebemos foi de um leitor que, além de observar o fato deste escriba nem formação universitária ter, sugeriu para minha melhor formação a leitura dos textos de Pilar Rahola. E quem é essa? Uma jornalista catalã “que já foi deputada de esquerda na Espanha”, segundo… a Veja. Está lá no final da matéria em questão uma fala sua. Quero crer que, antes de ser citada aí, os leitores de Veja já tinham na estante as obras completas da senhora Rahola, pois como se sabe a cultura dessa gente é muito vasta.

Vamos ao subtítulo criado pelo jornalista Jaime Klintowitz. Uma “ilha de democracia” que comete “atrocidades” é constrangedor, no mínimo. Que algumas das “ditaduras no Oriente Médio” são aliadas de Israel e dos EUA é uma verdade que qualquer fonte do governo de Israel poderia ter confirmado ao jornalista. Que a vida da minoria árabe dentro dessa democracia exemplar é um inferno, é algo vastamente documentado. Mas esses são pormenores que os leitores de Veja já sabem e não dão a mínima, ou não sabem e nem precisam saber.

Minto. Lá pelo meio da reportagem, Jaime Klintowitz cita algumas ditaduras árabes aliadas de Israel, mas não as classifica nesses termos, claro. Como num passe de mágica, a coisa fica assim: “O conflito em Gaza aprofundou o cisma regional entre a facção da ‘resistência’ – que inclui o Irã, a Síria e suas milícias aliadas, o Hezbollah no Líbano e o Hamas na Palestina – e os chamados moderados, favoráveis à paz negociada com Israel. Esse grupo é formado pela maioria dos países, encabeçados por Egito, Jordânia, Arábia Saudita e pela Autoridade Palestina na Cisjordânia.”

Que alguns desses “moderados” sejam mais intolerantes com seus cidadãos que o Irã, o Hezbolá e o Hamas, é algo que escaparia da compreensão do leitor médio de Veja. E depois, tudo está muito bem se as autocracias são “favoráveis à paz negociada com Israel”.

Todo o texto é uma verborragia anti-Hamas. Como o Hamas é o um grupo fundamentalista averso a qualquer diplomacia. Como o Hamas é o problema maior, e não pode ser parte da solução. Como o Hamas é o culpado pela matança israelense em Gaza, pois que a desencadeou com seus foguetes. No primeiro parágrafo: “[historicamente] todas as chances de paz foram abortadas por um lado ou outro – mais recentemente sempre pelos palestinos e pelos países árabes que lhes dão apoio.” Eis aí um mito já amplamente desmentido pela imprensa mundial, estadunidense e israelense inclusive, pela Organização das Nações Unidas, pelo ex-presidente Jimmy Carter, dentre outros. Além, claro, pelos artigos de “anti-semitas”, “self-hated jews” e demais “inimigos de Israel” – vários traduzidos e reproduzidos aqui no Amálgama.

Diante das evidências de genocídio em Gaza, não resta muita coisa a um renitente defensor de Israel a não ser inventar novos estilos jornalísticos, evocar números “colaterais” e tomar vias tortuosas de raciocínio. É isso que Jaime Klintowitz faz. “A discrepância de baixas” entre palestinos e israelenses mortos, ele não nega que exista. Porém, “essa é uma conta difícil de ser feita por quem considera que cada vida é preciosa”, e você quase pode imaginar a Veja publicando essa mesma frase, caso estivessem sendo mortos 100 israelenses para cada 1 palestino. E há mais: “o estado judeu não está respondendo aos projéteis lançados nas últimas duas ou três semanas, mas a anos de ataques indiscriminados contra os 750.000 israelenses que vivem próximos à fronteira com a Faixa de Gaza.” Nossa, quantos zeros!, deve pensar o leitor médio de Veja, enquanto calcula que… bem, 1.000 palestinos mortos, mas… 750.000 israelenses debaixo de fogo cerrado durante anos… Sim, é uma guerra justa.

E os milhões de palestinos e libaneses que há décadas vivem sob fogo cerrado do quarto maior exército do mundo? Miudezas…

Com centenas de mortos em Gaza, muitos deles crianças e mulheres, a Veja chora… a perda de apoio de Israel, vejam vocês. “Curiosamente, essa realidade multifacetada [do Oriente Médio] tornou-se preto-e-branco na reação da imprensa, dos diplomatas e da maioria dos governantes”, escreve Klintowitz, e aqui não há dúvida de que sua maior inspiração intelectual para a escritura da peça foi a “nota de esclarecimento” da correspondente do Globo, Renata Malkes (veja por que, no final desse post).

É a velha história: se o mundo se indigna e critica Israel, só pode ser por culpa da “tradição antissemita”. “Por que a esquerda europeia, e globalmente toda a esquerda, está obcecada em lutar contra as democracias mais sólidas do planeta, Estados Unidos e Israel, e não contra as piores ditaduras?”, pergunta indignada Pilar Rahola.

Edgar Morin, em O mundo moderno e a questão judaica (Bertrand Brasil, 2007):

Depois da psicopatologia anti-semita alucinada pelo judeu, em todos os lugares presente e ameaçadora, apareceu uma psicopatologia judaica obsessiva, pronta para detectar em todos os lugares o anti-semitismo presente e ameaçador. Ao delírio de Céline, que via o judeu em todos os lugares, responde o delírio oposto, que vê o anti-semitismo em todos os lugares. Esse delírio é ao mesmo tempo perturbador, porque indica a devastação intelectual feita pela interiorização mental de dois mil anos de humilhação e perseguições.”

“A malhação [a Israel], antes confinada à extrema esquerda, tornou-se parte integrante do populismo antiocidental”, lemos na Veja. Mas antes quando? Extrema esquerda? Gandhi era de extrema esquerda? Gilles Deleuze? Walter Benjamin? Albert Einstein? Hannah Arendt? Em graus diferentes, todas essas figuras, algumas judaicas, viam de forma duvidosa o sionismo radical no poder em Israel, e a maneira como este país lidava com os árabes. Se eles eram de extrema esquerda, em que ponto do espectro político colocaremos os editores de Internacional de Veja? No “centro”?

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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