por Michelle Horovits – Ele era Barbosa, sem dúvida, Barbosas são famosos. Eu sou uma Barbosa, não sou lá muito famosa, acho que só o pessoal da rua me conhece, mas por aí já me basta. Lembraram dele agora porque se estivesse vivo estaria completando 100, vai entender. São incongruências de um mercado midiático e […]
por Michelle Horovits – Ele era Barbosa, sem dúvida, Barbosas são famosos. Eu sou uma Barbosa, não sou lá muito famosa, acho que só o pessoal da rua me conhece, mas por aí já me basta. Lembraram dele agora porque se estivesse vivo estaria completando 100, vai entender. São incongruências de um mercado midiático e numérico que eu nunca entendi. O que acontece? Será que só é possível lembrar os mortos quando fazem aniversários de números bonitos, como centenário, cinqüentenário…? Ninguém relança a coletânea de um cara que fez seu trigésimo sétimo aniversário de morte, afinal o número 100 soa melhor para os consumidores ávidos por cálculos e números.
Fora isso, o paulista Barbosa nem se chamava Barbosa de verdade. Verdade seja dita, Adoniran adorava inventar, se reinventou tão bem que Rubinato sumiu, partiu para a maloca. Virou Adoniran de vez. Era tão multifacetado que criou mais de 16 personagens em seus programas de rádio na Record. Em uma época onde TV era objeto decorativo na casa de gente rica, ele fazia a festa no rádio. Mas nem por isso desistiu de ser galã, chegou a trabalhar um tempo depois na TV, e como Mané Mole participou do longa O cangaceiro, que ganhou a Palma em Cannes em 1953, e foi exibido em mais de 80 países.
Sambista de acaso, sabia como tirar um sarro com a própria dor. Seu humor negro era apreciado por todos, seus sambas trágicos tinham um toque de ironia que marcou suas músicas, como na história da noiva que foi atropelada 20 dias antes do casamento e o noivo só guardou de recordação as meias e os sapatos – De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos/ Iracema, eu perdi o seu retrato.
Seu nome verdadeiro, quer dizer, seu nome era Adoniran Barbosa, mas isso foi o que ele escolheu, sua mãe foi do contra e escolheu um outro, João Rubinato, que significa Deus é Bondoso. Ah, e ele foi! Fez com que os paulistas, tidos como sem ginga e sem graça, ganhassem o melhor sambista do país. Não só isso, ele foi marmiteiro também, tirava de sua vida e sua história material para fazer seu samba – “A matemática da vida lhe dá o que a escola deixou de ensinar: uma lógica irrefutável. Se havia fome e, na marmita, oito bolinhos, dois lhe saciariam a fome e seis a dos clientes; se quatro, um a três; se dois, um a um.”
Sua voz rouca retratou São Paulo como nenhum outro artista conseguiu fazer. Mesmo tendo nascido em Valinhos, foi no Bexiga e no Brás que foi acolhido. Grande observador dos detalhes e fios soltos da vida, ele ria das suas amarguras e ia fundo em suas histórias. Era em suas noites no botequim, atrás de mesas de bar e filosofias tiradas do fundo de copos sujos em cantos do Brás, que ele fez sua história como compositor.
Foram as mesas, ladeiras e o povo que o fez ser quem foi e quem ainda é pelo que deixou. Suas tragédias íntimas e épicos tirados das sarjetas e malocas da cidade fizeram dele um grande contador de histórias. Quando São Paulo está embaixo d’agua por conta dos alagamentos, quem entenderia melhor a dor do paulistano do que ele, que falava do que entendia, do que vivia: Não reclama/ porque o temporal/ destruiu teu barracão/ Não reclama/ güenta a mão, João/ Com o Cebídi aconteceu coisa pior/ Não reclama/ Pois a chuva só levou a tua cama. Era só o que João tinha. Já a casa do Cebídi tava completa e foi toda levada pela enxurrada morro abaixo. Logo, João não tem tanto motivo pra reclamar da sorte.
Adoniran sabia como era difícil para São Paulo ser grande, entendia a dor de ser arranha-céu e de ser barracão. Sampa enfim pode ser consolada através de suas letras. Ele fez a década de 50 tremer, e olha que nem era um dos tremendões. Todos se renderam aos olhos pesados e bigode galante que formavam o rosto boêmio do sambista. Quem não se renderia, até eu daria mole, se ele me desse uma aliança feita com a corda mi do seu cavaquinho – foi o que ele fez na famosa “Prova de carinho”.
Os intelectuais o abraçaram, todos os nerds e universitários de plantão também, mas o povo para quem ele realmente cantava e dedicou a vida, esse se esqueceu dele. No fim da vida, não era tocado em rádios populares e o mercado não dava bola.
Morreu pobre, como quase todo sambista bom morre. Lançou 3 LPs em 40 anos de carreira, tinha fãs de grande nome em seu encalço, como Elis Regina. Exatos 28 anos atrás, o mundo perdeu Rubinato, quer dizer, Adoniran, Charutinho, enfim, ele podia ser quem quisesse, ele se dava esse direito. Parada cardíaca. Uma parada para ele foi o bastante, mas espero que tenha sido de barriga cheia. Só tenho a filosofia/ Que me dá consolação/ Com a barriga assim vazia/ Sei que morrerei/ No necrotério acabaria/ Mas não será de indigestão.
Adoniran não precisa de artigos para explicá-lo, ele mesmo sabia fazer isso, e fazia melhor do que qualquer Barbosa – Eu sou de humilde contato/ Tímido, nem sou loquaz/ Tenho espontâneo relato/ Do meu ego e o que me apraz/ Sou como sou não pedi.
Para quem fazia piada com a Jovem Guarda, o que me restou como Barbosa foi dar esse leve sopro – Porque com eles canta a voz do povo/ E eu que já fui uma brasa/ Se assoprarem posso acender de novo.
Espero que fique aceso.
—–
ADONIRAN AO VIVO
Michelle Horovits
Jornalista e produtora de TV.