por Daniel Lopes – “Às vezes eu sinto como se estivesse escavando as pessoas do gelo em que a realidade as prendeu”. Este é o escritor israelense David Grossman, e há muitas outras belas imagens nos textos de Writing in the dark, reunião de ensaios e palestras recentes sobre literatura e política. Veja só, na […]
por Daniel Lopes – “Às vezes eu sinto como se estivesse escavando as pessoas do gelo em que a realidade as prendeu”. Este é o escritor israelense David Grossman, e há muitas outras belas imagens nos textos de Writing in the dark, reunião de ensaios e palestras recentes sobre literatura e política. Veja só, na frase acima Grossman fazia referência à sua ficção, mas fica claro da leitura de seus escritos políticos que também lá a intenção é arrancar (principalmente) seus compatriotas do gelo em que foram metidos ou se meteram.
Encontramos neste volume traduzido do hebraico para o inglês por Jessica Cohen, palavras carinhosas dirigidas aos livros que Grossman leu desde cedo, livros que lhe formaram – “Livros que me leram” é o título do primeiro capítulo. Em relação a seus próprios livros, são obras que no geral abordam “a arbitrariedade de uma força externa que invade violentamente a vida de uma pessoa, de uma alma”. No romance Ver: Amor (1986), essa força é o nazismo. Em O sorriso do cordeiro (1983) e na não-ficção O vento amarelo (1987), ela é a ocupação israelense da Palestina – “uma ocupação militar que vê a si mesma como esclarecida, enquanto suas vítimas são submetidas à tirania de um poder que percebem como supremo”.
Mesmo seus pais não sendo sobreviventes do Holocausto judeu, Grossman desde bem cedo soube que, como escritor, inevitavelmente teria que lidar com aquele trágico evento, o que para ele foi mais uma oportunidade para vivenciar o Outro, tanto o judeu literalmente marcado para morrer quanto o cidadão comum alemão que se tornou um nazista e uma peça da máquina da morte.
Não se enganem. Embora para Grossman não haja como equiparar o sofrimento palestino hoje imposto por judeus àquele sofrido pelos judeus sob o nazismo, ou como dar a mesma razão para um personagem nos trilhos da morte da Alemanha nazista e para um cidadão cooptado pela ideologia de Hitler, esse não é o ponto fundamental. O que há sempre, nos livros desse humanista judeu-israelense, é uma tentativa tantas vezes desesperada de, na medida do possível, compreender o outro lado e os motivos que o levam a agir como age. Não há outro jeito de se resolver problemas, e quanto mais enraizado e aparentemente de difícil resolução é o problema, mais o caminho de ligação com o Outro deve ser aprofundado.
Daí a importância da literatura, nos diz o autor. Ela, com sua capacidade quase inigualável de enxergar o outro e fazer ver a realidade com seus olhos, teria algo a ensinar a políticos e a todos os envolvidos na política de uma nação em perpétuo estado de guerra como é Israel. É para Israel mais que para qualquer outro ator que Grossman volta suas atenções e energias. Sua relação com o país e a história de seu povo é de amor, mas não amor incondicional. Entre os porta-vozes do sistema que racionaliza a ocupação da Palestina e o assassinato de civis, você não encontrará esse orgulhoso morador dos subúrbios de Jerusalém.
Pelo contrário, com frequência o encontramos traçando críticas certeiras aos mandatários de seu país (e a líderes palestinos também) e, como não menos assiduidade, à imprensa israelense, à maneira como ela usa de um jogo de linguagem que oblitera a dura realidade e tem a intenção de aliviar as consciências de seus concidadãos. Grossman trabalhou com jornalismo e sabe do que está falando:
Na época eu trabalhava como um locutor de notícias na rádio Kol Israel. Me eram dados dezenas, se não centenas, de boletins para ler, que soavam mais ou menos assim: “Um jovem local foi morto durante distúrbios nos Territórios.” Veja a astúcia da sentença: “distúrbios” – como se houvesse alguma ordem ou estado normativo nos Territórios para ser disturbada; “nos Territórios” – nós nunca diríamos expressamente “Territórios Ocupados”; “jovem” – esse jovem poderia ter sido um garoto de três anos, e é claro que nunca tinha um nome; “local” – de forma a não dizer “palestino”, o que implicaria alguém com uma clara identidade nacional; e acima de tudo, observe a conjugação “foi morto” – ninguém o matou. Teria sido quase intolerável admitir que nossas mãos derramaram esse sangue, então ele “foi morto.” (Às vezes a voz passiva é o último refúgio do patriota.)
David Grossman foi marcado em 2006 por uma tragédia na vida pessoal: a morte de seu filho Uri, 21 anos, na Segunda Guerra do Líbano. No entanto, o escritor em nenhum momento eleva esse trágico ocorrido à peça fundamental de seus ensaios/palestras. Ao invés, o coloca como mais uma das incontáveis tragédias que acometem um país que coloniza territórios e se vê sempre em guerras de “defesa”, traindo constantemente a herança humanista judaica. É sublime a análise que Grossman empreende nas páginas finais de seu livro, entre o que se vê em Israel hoje em dia…
Uma indiferença com o destino dos famintos, dos idosos, dos doentes e dos inválidos; uma apatia nacional em relação ao comércio de mulheres, por exemplo, ou à exploração e às condições de trabalho escravo de trabalhadores estrangeiros; um racismo fortemente assentado, institucionalizado, em relação à minoria árabe.
… e o que o país poderia se tornar se saísse dos territórios ocupados, abandonasse o sonho da “Grande Israel” e centrasse realisticamente em seu destino:
(…) por um lado, o judeu-israelense vivendo em sua própria terra, mergulhado no solo e nas paisagens, o homem enraizado cuja realidade diária engloba todas as camadas contraditórias da realidade; e por outro lado, o judeu universal, cosmopolita, que aspira a cumprir uma missão espiritual, moral, a ser “uma luz entre as nações”, a ser a voz dos fracos e oprimidos de toda parte, a representar um claro e firme sistema de valores que tira sua energia de ideias, da contemplação, do comprometimento ético, que vê em cada pessoa uma grande criação, única e inimitável, no espírito da profecia de Isaías e das profecias de pensadores modernos como Franz Rosenzweig, Martin Buber e George Steiner.
Esse foi um trecho da palestra “Contemplações Sobre a Paz”, conferida em dezembro de 2004, em Paris.
::: Writing in the dark: Essays on literature and politics ::: David Grossman :::
::: Picador, 2009, 136 páginas ::: compre usado na Amazon :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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