O que queriam as oposições de 89 e o que querem as de 2011
por Daniel Lopes
De acordo com certa linha de análise dos acontecimentos na Tunísia, na Argélia e no Egito, o norte da África de 2011 estaria para os Estados Unidos assim como a Europa Oriental de 1989 está para a União Soviética.
Claro. Desde o início dos anos 90, o Oriente Médio e o norte da África foram divididos em duas zonas, uma sob controle da China democrática e outra sob controle dos EUA, país que invariavelmente suporta ditadores sanguinários e exporta para os satélites seu próprio modelo doméstico de opressão. O presidente Barack Obama é ao mesmo tempo líder do Partido Republicano, o único partido de seu país. Criado em suas tradições, Obama esforça-se para manter o status quo nessas áreas do estrangeiro, já que regime de partido único e cerceamento das liberdades individuais em nome de um bem maior é o que ele sempre defendeu, desde os tempos de juventude.
Agora falando sério. Robert Fisk bem observou que, apesar do vergonhoso histórico de suporte estadunidense ao autoritarismo egípcio, ele ainda não viu nenhuma bandeira dos EUA sendo queimada pelos protestantes nas ruas do Cairo. Há um enorme movimento islâmico no Egito, é verdade, mas Fisk julga que as ruas estão tomadas principalmente por egípcios nacionalistas “sufocados por décadas de fracasso e humilhação”.
Enquanto que as oposições na Europa Oriental buscavam se afastar do modelo político da União Soviética, os setores mais respeitáveis da oposição tanto secular quanto religiosa no norte da África almejam que seus países tenham sistemas políticos semelhantes aos do Ocidente. As oposições de 1989 exigiam sistema multipartidário, eleições livres, igualdade perante a lei, imprensa livre, fim do Estado policial. As oposições de 2011 exigem sistema multipardidário, eleições livres, igualdade perante a lei, imprensa livre, fim do Estado policial – e têm outras reivindicações, umas mais sistêmicas (emancipação feminina), outras mais conjunturais (recuperação econômica – que será atingida com a reversão de algumas políticas liberais desastradas e mais reforma econômica doméstica, que por sua vez terão maiores chances de sucesso se levadas a cabo em um ambiente de liberdade política, onde os grupos sociais podem colocar suas reivindicações e projetos com mais segurança e eficácia do que sob um regime de restrições.)
Mohamed ElBaradei é um dos mais capacitados e respeitados opositores de Hosni Mubarak. Alguém imagina o Egito sob uma eventual presidência sua não se aproximando dos Estados Unidos de Obama e da Europa? Embora crítico da realpolitik estadunidense em relação a seu país, ElBaradei não deixa de obsevar o quanto de pessoas “seculares, liberais e orientadas para o mercado” há na oposição egípcia. Claro que, em eleições livres, haverá sempre o risco de um partido islâmico subir ao poder – e no famoso esquema “uma pessoa, um voto, uma única vez”; na sequência, ditadura. Neste caso, muitos dos revolucionários de gabinete do Ocidente apoiariam o novo regime reacionário, desde que ele tivesse suficiente logorréia anti-EUA.
Barack Obama poderia ter feito mais até agora pelas forças democráticas egípcias do que lido uma nota dizendo que seu país está preparado para trabalhar com o povo e o governo egípcios? Poderia, mas não muito. Se ele arrisca um apoio aberto aos revoltosos e o governo acaba controlando a situação, no limite o Egito poderia acabar se distanciando dos EUA e procurando outros aliados na região ou mais ao Leste. Alguns achariam isso bom. Eu não – antes um governo autoritário sob pressão dos EUA que sob pressão, digamos, do Irã ou da China. E, de qualquer forma, não haveria como Obama achar, e ele é que importa.
Uma forma drástica de ação que não deixaria espaço para a retomada da situação por Mubarak seria invasão militar. Isso está fora de cogitação, até porque não seria uma presença bem-vinda sequer pela maioria da oposição, mas ainda assim é interessante imaginar como reagiriam os teóricos do “1989 americano”. Como mostra o caso do Iraque, esses teóricos não são muito fãs da derrubada de regimes ditatoriais se for uma derrubada pela força militar estadunidense, e que se dane o desejo da oposição local. O fato da permanência no poder de um ditador ter sido facilitada no passado pelos EUA, segundo eles, não aumenta, mas diminui o direito de intervenção dos EUA. Mas também, para ser sincero, não acho que esses teóricos teriam aplaudido em 1989 a invasão total da Europa Oriental pela União Soviética a fim de implantar sistemas multipartidários.
O mais provável e desejável é que Obama continue exigindo reformas democráticas concretas por parte do governo egípcio, assim como diminuição da repressão policial e da censura à internet. Dadas as circunstâncias, esses passos não são nada desprezíveis. Quanto ao resto de nós, continuemos passando adiante as palavras dos democratas egípcios e as notícias de repressão da ditadura moribunda. Como também disse Fisk em outro artigo, os acontecimentos que estamos testemunhando podem não representar o fim do regime de Mubarak, mas é certamente o começo do fim. Para Obama não ter sido o primeiro a saber disso, só mesmo se fosse mais ignorante do que George W. Bush. O que não acho que seja o caso.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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