por Amâncio Siqueira
“Antes a grande superpotência do seu mundo, o Irã passou a maior parte dos últimos dois séculos sendo saqueado, colonizado e humilhado pelos impérios europeus. Como uma nação xiita numa região dominada por governos árabes sunitas, o país também se sente cercado teologicamente.”
Robert Kagan
Recentemente o acadêmico Paulo Coelho divulgou nota baseada em emeio recebido do seu livreiro no Irã, Arash Hejazi, informando que seus livros haviam sido proibidos naquele país. A ministra da Cultura brasileira, Ana de Hollanda, assim como o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, apressaram-se a tecer comentários reprovadores sobre a atitude do governo iraniano e afirmaram que buscariam impedir a censura ao Coelho.
Um trecho da nota da embaixada iraniana no Brasil negando a censura diz mais sobre a situação no Irã do que as notícias anteriores:
Infelizmente, esta notícia fora criada e planejada por Arash Hejazi (indivíduo acusado do homicídio da Sra. Neda Aghar Soltan depois das últimas eleições presidenciais, o qual é o principal suspeito e que encontra-se neste momento foragido e procurado), com a colaboração e orientação de agentes dos Estados Unidos da América e Israel, em consonância com um plano global com o intuito de manchar a imagem do Irã, cujo aproveitamento político busca falsificar a verdade. Infelizmente conseguiram juntar-se a personalidades e autoridades no propósito desta armadilha.
Neda Aghar Soltan foi morta pelas forças governamentais durante protesto contra a corrupção na reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, com um tiro que lhe acertou o coração. Arash Hejazi estava ao lado dela no protesto e tentou salvá-la. Há vídeos que mostram o momento da morte dela, enquanto seu amigo tenta estancar a hemorragia. A teocracia muçulmana ignorou que ele estava desarmado e tentando salvá-la, ignorou o vídeo, ignorou a prova balística e os disparos da polícia, ignorou os direitos humanos e a verdade. Arash vive exilado, pois se for preso será sumariamente condenado à pena de morte, a exemplo do que aconteceu com Sakineh, que ainda não foi executada por pressões internacionais.
O Irã não precisa de um plano global para manchar sua imagem. Eles sabem fazer isso muito bem. Suas eleições foram ainda mais fraudulentas que a de George Bush, ditadas pelo aiatolá Khamenei, o verdadeiro governante do país. Seu antecessor, o líder da Revolução Islâmica aiatolá Khomeini, deixou bem claro o que pensam os teocratas sobre democracia e direitos humanos: “Sim, nós somos reacionários, e vocês são intelectuais iluminados: vocês, intelectuais, não querem que nós voltemos 1400 anos.” Ele tinha razão. Os únicos intelectuais que recordo terem a intenção de voltar mil e quatrocentos anos foram os renascentistas europeus, que buscavam resgatar o passado de esplendor jônico.
Abu Musab Al-Zarqawi, a exemplo de outros líderes islâmicos fundamentalistas, repudia a democracia, pois “o legislador que deve ser obedecido na democracia é o homem, e não Deus.” Eleições transformam o “homem, fraco e ignorante, parceiro de Deus na Sua prerrogativa mais importante e divina – a saber, governar e legislar.” Eles creem mesmo que há homens que falam por deus, que o ouvem e sabem exatamente o que ele quer. E tais homens sabem que seu deus quer sangue e ranger de dentes, que repudia tudo que é novo, inclusive direitos iguais para as minorias. A existência de tantos líderes que se arrogam a prerrogativa de estar acima do legislador humano, como canais diretos para captação da vontade divina, gera distorções para as relações internacionais difíceis de serem solucionadas, pois seu argumento trata discordâncias como blasfêmia, e qualquer opositor como um canal direto para captar a vontade do Diabo.
Tal noção não está presente apenas em alguns países do Oriente Médio, espalhando-se pelo extremo oriente, África e América. O grupo islamista radical al-Shabab proibiu o aperto de mãos entre homens e mulheres na cidade de Jowhar, no sul da Somália. Além de proibir o aperto de mãos intersexual, a organização também vetou conversas em público e até o caminhar lado a lado entre homens e mulheres sem laços familiares. O governo do al-Shabab afirma que todo aquele que for flagrado descumprindo as regras será julgado segundo a lei islâmica, a Sharia, mesma lei utilizada pelo Talibã no Afeganistão.
A Tunísia, Cartago na antiguidade e atualmente um país de governo islâmico, começou a viver uma forte turbulência social, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego nas ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo. Ben Ali deixou o poder e saiu do país, e o novo governo não parou a repressão aos protestos. Há países de maioria muçulmana que vivem democracias, a exemplo da Turquia, mas esse número era maior quando do fim do Império Otomano.
Diante de tantas violações aos direitos humanos, a literatura perde até um pouco da importância, e estranhou-me especialmente a deferência da prontidão em defender Paulo Coelho, quando tantos outros autores brasileiros são censurados no Irã. Não seria mais positiva uma tentativa de inserir outros escritores nacionais nas livrarias iranianas, como Milton Hatoum, Cristovão Tezza, Chico Buarque, Raimundo Carrero ou Alessandro Palmeira? Ou pedir mais transparência nos procedimentos governamentais em áreas como segurança e direitos humanos?
Não é minha intenção afirmar que o modo ocidental seja melhor que o oriental. Considero a democracia política uma aristocracia mais dispendiosa, com um povo que não toma decisões, mas cujas eleições consomem orçamentos enormes. Sequer a negação do sangue azul foi capaz de impedir o luxo dos governantes. Uma ditadura da maioria como a imposta pela maioria cristã em países do continente americano não é muito diferente da imposta por uma minoria. Basta lembrar que em alguns países latino-americanos mulheres são proibidas de abortar mesmo se o feto tiver origem em um estupro. No país que se considera a lâmpada da democracia no mundo, seu ex-presidente George Bush pai declarou que os ateus não deveriam ter cidadania americana, pois seu país fora fundado com base no cristianismo. Os pais fundadores discordariam, mas quando o filho invadiu o Iraque baseado num sonho em que deus lhe disse que o governo de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa (o que leva a crer que deus anda mal informado e talvez precise atualizar seu sistema de onisciência) a fidelidade à coerência histórica por parte do pai fica em último plano. As religiões abraâmicas não receberam esse nome por acaso: as crianças aprendem com o exemplo do patriarca que, quando deus dá uma ordem, não cabe questionamento, ela deve ser cumprida, mesmo que seja para matar o próprio filho. E as pessoas não param de receber ordens divinas, transmitidas em frequências diferentes para judeus, cristãos e muçulmanos, mas sempre com pedidos de sacrifício.
Pesquisas em países asiáticos indicam que as populações preferem bem-estar a liberdade, desenvolvimento a eleições. Não tenho certeza que nosso jeito seja o jeito certo, e estou certo de que impor democracia goela abaixo é um atentado à autodeterminação dos povos.
Contudo, ditaduras violentas para seu próprio povo também são atentados à autodeterminação dos povos. Que povo autodeterminaria levar noventa e nove chibatadas por trocar apertos de mão ou usar calças?
Penso que a maneira europeia de tratar as relações internacionais seja mais positiva que a maneira americana, em especial em relação a nações com apego maior à religião. O sistema puramente punitivo tende a criar maior atavismo, um repúdio mais profundo e duradouro a influências estrangeiras, vistas como interferência não de um povo igual, mas de um poder hostil. Uma política integracionista, com incentivos ao exercício pleno dos direitos humanos, conseguiu integrar sessenta milhões de turcos à União Europeia. Aliás, a atual política internacional europeia em muito diverge do que foi em séculos anteriores. Não custa lembrar que o Islã tem hoje quase a mesma idade que tinha o cristianismo quando os europeus lançaram-se às cruzadas. Inclusive São Luiz tinha como um dos principais objetivos em sua cruzada destruir os vestígios da biblioteca de Alexandria, o qual teria sido plenamente cumprido não fosse pelo senso de conservação dos sábios árabes.
Assim como foi função dos muçulmanos preservar livros antigos da sanha religiosa dos europeus no passado, e transmitir essa sabedoria na clandestinidade, talvez seja nosso momento de retribuir o favor, permitindo aos nossos irmãos muçulmanos que conheçam uma sabedoria diferente, não por meio de uma imposição que instigue a desconfiança, e sim por meio de uma cooperação que incentive a boa vontade e a cooperação.
O Islã está próximo da idade em que iniciamos nosso Renascimento e nosso Iluminismo. Todos os povos que seguem essa religião merecem recuperar o tempo em que viviam em harmonia e tolerância entre si e com o restante do mundo. Uma civilização que nos deu Averróis e Khayyam merece o seu próprio Iluminismo.
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Beatriz
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Amâncio Siqueira
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Raphael Tsavkko
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Amâncio Siqueira
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