Apenas bandidos religiosos adoram leis de blasfêmia
por Nick Cohen
Se as circunstâncias não fossem tão terríveis, a bem sucedida tentativa do Paquistão de persuadir o Conselho de Direitos Humanos da ONU a condenar blasfemos que difamam a religião teria sido uma comédia negra. Cada palavra que seus diplomatas usaram em 2009 para protestar contra a islamofobia se mostrou a descrição precisa dos preconceitos que o estado paquistanês estava levando a cabo em casa.
Eles disseram que a ONU deveria aprovar uma lei universal de blasfêmia para proteger minorias religiosas de “intolerância, discriminação e atos de violência”. Se não fossem os hipócritas que aparentavam, mas homens decentes com desejo de ajudar todas as minorias e não apenas muçulmanos, eles deveriam agora reconhecer que Salmaan Taseer foi assassinado por proteger minorias religiosas paquistanesas da própria lei de blasfêmia daquele país.
Taseer não foi tão longe quanto dizer que o Corão, como o Talmude e a Bíblia, era obra de homens, não de Deus, ou criticar os ensinamentos de Maomé. Seu crime foi se colocar contra a perseguição de cristãos em países muçulmanos, um assunto que a mídia dos ocidentais supostamente fomentadores de guerras e “crusados” cultural-imperialistas mal menciona, com medo de causar “ofensa”. Ele denunciou o tratamento de Aasia Bibi, uma cristã mãe de cinco. Ela havia discutido com mulheres muçulmanas que se recusaram a beber a água que ela levou, porque ela (Bibi) era impura e portanto a bebida estava contaminada. Foi relatado ao clérigo local que ela havia usado o nome de Maomé em vão. Foi o bastante para o juiz ordenar sua morte por enforcamento. Portanto, não muito respeito demonstrado pelos direitos da minoria. Nem pelos direitos de Salmaan Taseer, cuja última visão foi de Mumtaz Qadri atirando 26 balas em seu corpo, enquanto outros membros de sua guarda o permitiram fazer isso.
“Difamação da religião é uma séria afronta à dignidade humana, que leva à restrição da liberdade de seus aderentes e ao incitamento da violência religiosa”, bradaram os oficiais paquistaneses na ONU, em 2009. Mutatis mutandis, o Paquistão se transformou em um país tão amedrontado dos incitadores de violência religiosa que os liberais permanecem em silêncio, com medo dos assassinos virem em seu encalço; uma terra tão incivilizada que Jamaat-e-Islami e outros bandos de criminosos teocratas podem se safar culpando Taseer por sua própria morte e tratando seu assassino como um heroi, por executar a vontade de deus.
“RIP Paquistão”, lamentou Salman Rushdie depois da morte de Tasser. “O que se pode dizer de um país em que um assassino é banhado com pétalas de rosa enquanto um homem decente tomba morto?”. Desespero é uma resposta razoável para um estado falido. Quando islamistas conseguiram penetrar a segurança de políticos do primeiro escalão e ameaçam tomar posse de armas nucleares, o desespero pode ser a única resposta. Mas o relativismo que assegura que direitos humanos são uma boa para nós, mas não para os povos do mundo pobre não é uma resposta adequada.
O Paquistão não é uma terra isolada, vivendo em outro século. Veja como ele foi capaz de travestir seu assalto à liberdade de expressão com a linguagem moderna dos direitos humanos. Veja, também, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou sua duplicidade. Reconhecidamente, o conselho não é tanto uma comédia negra quanto uma piada doentia, cujos membros incluem China, Rússia, Arábia Saudita e muitos outros violadores de direitos humanos. De qualquer forma, é surpreendente que uma ONU que os ingênuos ainda enxergam como árbitro moral endosse leis de blasfêmia.
Essas leis são a forma mais perniciosa de ataque à livre expressão, porque os réus nunca podem saber a natureza de sua ofensa. Quem se supõe ser sua vítima? Supõe-se que eles feriram os sentimentos de crentes cuja fé é tão fraca a ponto de uma zombaria ou dúvida levantada poder ameaçá-la? Talvez eles sejam acusados por atacar qualquer deus ou deuses que os crentes venham a seguir. Neste caso, as deidades em questão são tão débeis e sensíveis a ponto de demandarem que críticas sejam punidas com sacrifícios humanos?
Em novembro último, a organização Freedom House publicou um informe sobre os abusos de poder que se seguem ao endossamento de tal ofensa nebulosa. Ela documentou como estados islâmicos e vigias religiosos usam leis de blasfêmia para perseguirem cristãos, ahmadis, muçulmanos que acreditam que Maomé não foi o último profeta e, claro, ex-muçulmanos como Rushdie, que decidem mudar ou renunciar sua fé, o que homens e mulheres livres devem ter o direito de fazer.
No Irã e no Egito, a blasfêmia é usada para processar oponentes políticos do regime. E em todo lugar, serve para incentivar a perseguição maliciosa de vinganças mesquinhas, como aprendeu a infeliz senhora Bibi. Lei de blasfêmia não é proteção da liberdade religiosa, como sustenta a ONU, mas sua inimiga mortal. Se a livre expressão se ausenta, os cidadãos não são livres para defender ou praticar suas crenças sem medo do estado ou de intimidação clerical.
Deixemos de lado o fingimento e reconheçamos que o mesmo medo prendeu nossas línguas. Também nós estamos amedrontados. Mas ao invés de reconhecer nosso medo, mascaramos nossa recusa em falar claro com uma confusa linguagem terapêutica. Falamos de nosso “respeito” pela diversidade e de nossa determinação em proteger “o outro”, e falhamos em reconhecer que estamos abandonando as vítimas “do outro” e ajudando e encorajando seus inimigos. Islamistas ameaçaram ahmadis no condado de Surrey (Inglaterra), mas a história passou virtualmente despercebida na imprensa.
Quando a Irlanda publicou uma lei que dizia ser crime “afrontar um número substancial de aderentes de [uma] religião”, a Organização dos Países Islâmicos aproveitou-se da definição perigosamente vaga de Dublin para impulsionar a opressão da liberdade de pensamento de seus próprios povos. E não são apenas políticos e intelectuais corajosos como Taseer e Rushdie que sofrem.
Algumas semanas atrás, tive o prazer de entrevistar a maravilhosa cantora norueguesa Deepika Thathaal. Para vergonha da Noruega, bandidos religiosos a atormentaram e à sua família, o que a fez deixar o país devido aos crimes de ser glamorosa, sexy e cantar sobre liberdade.
Ela veio para a Grã-Bretanha e, para vergonha britânica, nossos bandidos religiosos a chamaram de “prostituta” e também ameaçaram matá-la. Ela voou para os Estados Unidos e me disse que se racistas brancos tivessem expulsado uma cantora asiática de dois países, seu caso seria uma causa célebre. Mas os fanáticos que a perseguiram tinham pele escura, então os europeus olharam para os lados.
Ela aprendeu o que muitos dissidentes do mundo muçulmano já sabem: tornou-se um ato de coragem no século 21 sustentar o argumento sensato de que deus não existe e que devemos evoluir.
tradução: Daniel Lopes
original no The Guardian, aqui
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