Não estou nem aí para os mortos
por Bruno Cava
A televisão afundou no teledrama. Num refrão desolado, 24 horas por dia, as imagens escavam a morte, a perda, a comiseração. O noticiário capricha nos closes de novela, induz o choro e aguça as lamúrias. Repórteres-abutres farejam os cadáveres e se refestelam na contagem, enquanto âncoras ensaiam as suas melhores poses consternadas. Quem vai contar a história mais triste? Quem vai filmar a cena mais comovente? A morte é repetida centenas de vezes, entre comerciais de cerveja e margarina.
A narrativa treina o olhar de espectador e não o agir de cidadão. Passivo, o espectador desmobiliza-se na caridade geral, que ele assume como redenção de si mesmo. O ativismo do cidadão, por sua vez, a TV contorna, pois lhe ameaça com seu senso crítico e sua vontade de mudar. Só interessa à grande mídia fabricar o sofrimento e expiar na piedade.
Pois querem a minha compaixão? Não darei.
A TV não vai comandar o meu sentir. Não tem como aproximar a dor do outro pela via do sensacionalismo. Compaixão de madame. Termina por celebrar a impotência e disseminar a tristeza, clonando os escravos de um espetáculo vazio. Entorpecido pela pulsão de morte, o olhar televisivo ignora a vida que se debate entre as águas e insiste em perseverar apesar da adversidade.
Meu sentir está com essas pessoas que escavam e salvam, que vão à tona e respiram, com quem empenha tudo de si e grita e luta. E não com a morte e a impotência. Porque, ao contrário da narrativa televisiva, não existe conexão com o outro através da morte, senão como culpa. Somente na vida e através dela se pode tocar (n)o outro.
Nesse sentido, os mortos não importam.
Deixemos que os mortos enterrem os mortos. Desrespeito? E se fosse comigo? E se fosse o meu filho? Nesse caso, a última coisa que lhe faria jus seria capturá-lo nalguma narrativa televisiva. O luto se desenvolve numa relação pessoal. Enluteço-me menos emulando o choro diante de uma câmera, do que num lento mastigar da memória. Esta vencerá a morte precisamente ao expulsar do morto do que ele tem de morto, preservando-lhe a força da vida, o seu calor e seu sorriso. Eis aí o luto como recordação seletiva: faz retornar do passado a diferença querida. Ela que se irá amar eternamente e não uma carcaça inerme.
É preciso pensar nos vivos. Elaborar políticas concretas para populações em áreas de risco. Organizar politicamente a ajuda aos que continuarão e a reconstrução da cidade. Mesmo o sofrimento tem o seu lado positivo, no excedente que dele irrompe. Mesmo na dor, há vibração e espessura na experiência humana. É hora de reafirmar e celebrar a vida, pois o pensamento da morte é o mais imundo. A morte foi inventada pela direita.
Ante a dança de morte que a TV encena, com uma gargalhada trágica se pode romper a lógica da impotência. Algumas imagens, todavia, vazaram da comiseração generalizada. O homem lança a corda, puxa a mulher para fora da turbulência, e sorri. E sorri! Seu sorriso converte a tristeza na alegria de todos, e assim potencializa a resistência dos que lutam. Aí está a distinção entre tragédia e melodrama. Axé para os vivos.
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A faísca deste ensaio brotou de uma conversa com Fabrício Toledo, a quem rendo os créditos. Também contribuíram Sindia Santos, Moana Mayall e Ronald Duarte.
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