Não estou nem aí para os mortos

-- Foto de criança na lama que se espalhou por Nova Friburgo (14/01/11) --

por Bruno Cava

A televisão afundou no teledrama. Num refrão desolado, 24 horas por dia, as imagens escavam a morte, a perda, a comiseração. O noticiário capricha nos closes de novela, induz o choro e aguça as lamúrias. Repórteres-abutres farejam os cadáveres e se refestelam na contagem, enquanto âncoras ensaiam as suas melhores poses consternadas. Quem vai contar a história mais triste? Quem vai filmar a cena mais comovente? A morte é repetida centenas de vezes, entre comerciais de cerveja e margarina.

A narrativa treina o olhar de espectador e não o agir de cidadão. Passivo, o espectador desmobiliza-se na caridade geral, que ele assume como redenção de si mesmo. O ativismo do cidadão, por sua vez, a TV contorna, pois lhe ameaça com seu senso crítico e sua vontade de mudar. Só interessa à grande mídia fabricar o sofrimento e expiar na piedade.

Pois querem a minha compaixão? Não darei.

A TV não vai comandar o meu sentir. Não tem como aproximar a dor do outro pela via do sensacionalismo. Compaixão de madame. Termina por celebrar a impotência e disseminar a tristeza, clonando os escravos de um espetáculo vazio. Entorpecido pela pulsão de morte, o olhar televisivo ignora a vida que se debate entre as águas e insiste em perseverar apesar da adversidade.

Meu sentir está com essas pessoas que escavam e salvam, que vão à tona e respiram, com quem empenha tudo de si e grita e luta. E não com a morte e a impotência. Porque, ao contrário da narrativa televisiva, não existe conexão com o outro através da morte, senão como culpa. Somente na vida e através dela se pode tocar (n)o outro.

Nesse sentido, os mortos não importam.

Deixemos que os mortos enterrem os mortos. Desrespeito? E se fosse comigo? E se fosse o meu filho? Nesse caso, a última coisa que lhe faria jus seria capturá-lo nalguma narrativa televisiva. O luto se desenvolve numa relação pessoal. Enluteço-me menos emulando o choro diante de uma câmera, do que num lento mastigar da memória. Esta vencerá a morte precisamente ao expulsar do morto do que ele tem de morto, preservando-lhe a força da vida, o seu calor e seu sorriso. Eis aí o luto como recordação seletiva: faz retornar do passado a diferença querida. Ela que se irá amar eternamente e não uma carcaça inerme.

É preciso pensar nos vivos. Elaborar políticas concretas para populações em áreas de risco. Organizar politicamente a ajuda aos que continuarão e a reconstrução da cidade. Mesmo o sofrimento tem o seu lado positivo, no excedente que dele irrompe. Mesmo na dor, há vibração e espessura na experiência humana. É hora de reafirmar e celebrar a vida, pois o pensamento da morte é o mais imundo. A morte foi inventada pela direita.

Ante a dança de morte que a TV encena, com uma gargalhada trágica se pode romper a lógica da impotência. Algumas imagens, todavia, vazaram da comiseração generalizada. O homem lança a corda, puxa a mulher para fora da turbulência, e sorri. E sorri! Seu sorriso converte a tristeza na alegria de todos, e assim potencializa a resistência dos que lutam. Aí está a distinção entre tragédia e melodrama. Axé para os vivos.

—–
A faísca deste ensaio brotou de uma conversa com Fabrício Toledo, a quem rendo os créditos. Também contribuíram Sindia Santos, Moana Mayall e Ronald Duarte.



  • http://www.descurvo.blogspot.com Hugo Albuquerque

    Belo texto, Bruno. É espantosa essa cobertura feita pelos canais de Televisão. Uma profunda tragédia como essa, que denota tão agudamente a desgraça econômica deste país, materializada no corpo degenerado e avesso à sustentação da vida de nossas cidades, de repente, perde o foco, é escondida não por uma cortina de fumaça, mas por holofotes. Uma representação que transforma uma tragédia social em inúmeras tragédias pessoais atomizadas – nas quais os mortos são vilipendiados no palco em prol do espetáculo. Triste tempos, o mesmo Poder que decidiu pela morte dessas pessoas ao degreda-las nas encostas dos morros, deixa, ainda, suas hienas profanarem os mortos. Lembremo-nos da velha Antígona e resistamos.

  • Laura

    Quanta ingenuidade. Duvido que você tenha levantado do bar para acordar cedo no dia seguinte e doar esse sanguinho azul. Pois não, ficou em casa a resmungar a “caridade geral” diante da TV que provavelmente lhe custou mais do que um terninho preto-luto de uma repórter lamurienta. Concordo que o ativismo urge, e que a TV blá-blá-blá, mas esse seu argumento não traz nada de novo, é uma repugnância elitista repetitiva. Aliás, adoraria conhecer seus projetos ativistas para Nova Friburgo daqui a dois meses, quando a mesma repórter lamurienta irá lembrá-lo de que “faz seis meses da tragédia”…”faz um ano”… “o poder público ainda não enviou os recursos”… fazendo registro histórico travestido de sensacionalisma, mas antes de tudo, registro. Aliás, você já ficou 24 horas sem beber água? Experimente.

  • http://gmail Tereza Dalmaso

    Teu texto é comovente e muito pertinente. Os repórteres da Globo e Cia. parecem ter “orgasmos” para mostrar, repetir, repetir, tentar arrancar afirmações dramáticas, lágrimas, …é a “alegria dos homens tristes”. E vem a pergunta: De quem é a culpa? Claro que tem politicagem, má gestão pública, incompetência, enfim a parcela de culpa dos governos das tres esferas. Mas eu creio que é bom não esquecer que há um modo de produção e de vida que responsabiliza todos nós: o latifúndio, a monocultura que empurra as pessoas do campo para as periferias, o lixo de nosso consumismo, a erosão e assoreamento dos rios, o desmatamento, as queimadas… E a tragédia está também nas secas terríveis, na falta de água…no êxodo, que provocam mais ocupações de pessoas em áreas de risco. É muito complexo! É uma cadeia que se alimenta e que fertiliza a tragédia. Para muitos, esses episódios são mais um pouco da tragédia que é a própria vida, mas é vida com toda a sua potência. Potência de solidariedade, de generosidade, que a televisão é incapaz de perceber.

  • Simone

    O morto anônimo realmente não importa, esse pode servir pra alavancar a audiência.
    O morto familiar, o morto conhecido, esse sim, importa muito.
    A televisão não fabrica a compaixão, ela existe pela própria identificação com o sofrimento
    alheio, como sendo muito semelhante ao nosso próprio.
    Senti no seu relato uma resistência , mas será que foi á forma como a mídia explorou a
    tragédia ou foi resistência aos sentimentos que vêm á tona numa situação dessa?
    Claro que a luta e o esforço sobre humano dos sobreviventes é extremamente tocante e
    deve ser bastante valorizado, mas a tristeza , a revolta e a compaixão pelos mortos é o
    que nos faz viver essa experiência por inteiro, um sentimento não exclue o outro.
    Não basta reconstruir e seguir em frente, temos que honrar os mortos, principalmente
    em seus direitos, que sejam reconhecidos e recompensados, claro, para benefício de
    seus familiares.
    A morte não elimina o reconhecimento da vida dessas pessoas.

  • Sudário de Jesus

    Bruno,só discordo de uma coisa: “A morte foi inventada pela direita”.Eu não sou nem uma coisa nem outra e acho essa discussão mórbida.Mas já que você citou o Evangelho de São Lucas-lX 59,60-é bom lembrar que na Biblia a esquerda está sempre ligada ao reino das trevas e tudo o que ela representa,inclusive a morte.

  • Wanderly

    Onde estavam, você e seus amigos, reunidos, quando brotou a faísca (dito seu), deste “ensaio”? Pegou-me de jeito, sem querer, esse pensamento…sou muito imaginativa!

  • Giuliana

    Texto cansativo porque não traz nada de novo. Mais alguém cansado da cobertura televisiva? Pff… Só que suas críticas são bem rasas, acho que as histórias de quem está tentando salvar e ajudar também aparecem.

  • Hugo

    Eu me importo com ambos. Vida é vida.

    Pessoas morreram e deixaram saudades nos vivos. Vidas interrompidas que me importam sim! Ou você não se importa, por exemplo, com 6 milhões de judeus mortos na segunda guerra e só com os que sobreviveram a Hitler?

    Perder um amigo, filho, mãe em uma desgraça como essa não pode servir de “post” de um babaca que quer se aproveitar da tragédia para, ele sim, ser sensacionalista e “causar”.

    Eu JAMAIS saberia da existência desse blog miserável do sujeito se não fosse a tal tragédia… Quem escreveu esse lixo sim, para mim, é um abutre.

  • Sirena

    Qualquer um percebe que voce só colocou esse título “Não estou nem aí para os mortos” movido pela ânsia de ter um post “causante”, que chame a atenção e receba muitos comentários.
    Você é mais um querendo aparecer em cima da tragédia alheia.
    O roto falando do rasgado…

  • Ricardo Rocha

    Não sei se tenho algo de pertinente ou até mesmo de construtivo para dizer, mas diante dos comentários acerca do seu post não poderia ficar inerte.
    Como literatura seu texto é bem legal, curti de verdade. E discordo com alguns, que falam que é repetitivo, o repetitivo está por ai a tantos anos e ninguém reclama, pelo contrário conformam-se e até mesmo idolatram, vide moda! E afirmo que isso não é conversa de pseudointelctual-cult, mas é o que penso. Estamos diante de tantas coisas repetitivas, que são ditas diversas vezes sob tutelas diferentes, mas só as que tem um NOME é que são vistas, pobre hipocrisia esquerdista, eletista, ou seja lá o que for. Defendo o teu direito de dizer, mesmo que não concorde com tudo que disse!
    Gostaria de saber se alguém sabe dizer o que Oscar Wilde, Bertolt Brecht, Carl Marx, Weber, Virginia Woolf, Machado de Assis, fizeram de ativismo politico ativo e objetivo senão escrever? Sinceramente desconheço, desculpe minha ignorância, mas todos esses mudaram e fizeram a diferença apenas escrevendo. Mérito deles, não, mas sim de um sociedade geral que os escutavam mesmo quando eles falavam sobre farois, o pensamento de um morto, sobre comunismo, sociedade, e blá-blá-blá…
    Hoje, gostamos de imagem e fechamos nossos ouvidos para tudo, esse é o maior erro do ser humano, SER SURDO!

  • http://quadradodosloucos.blogspot.com Bruno Cava

    Prezados,

    Fico grato pelos RT, FCBK e os comentários. Todos eles li com a maior atenção.

    Me reservo o direito de não explorar as “reais intenções” do autor, muito menos se ele estava no bar, se acorda cedo etc. Isso é tão insondável quanto o que se passa na cabeça de um caranguejo. Acho uma tática prudente de interpretação ater-se ao texto e ao que nele implicado. Quem acha que é lixo, bom, acha que é um lixo. Faz parte.

    Gostei em especial do comentário do Hugo, na força de sua interpretação, tão criativa. E também do Sudário de Jesus, porque, de fato, o conteúdo talvez remeta ao cristianismo pré-paulino. Aliás Sudário, é citação de Jesus apud Lucas e, com relação ao que você ressalva, trata-se de outra citação, desta vez de um cineasta baiano.

    Quando passo na banca de jornal e vejo manchetes com caixões, “o país se une na dor” e outros slogans de morte e impotência (a TV não ligo desde ontem), fico ainda mais feliz em ter escrito o artigo.

    Multiplicar opiniões tenho por riqueza. Pobreza é o consenso mortificador da TV.

    Abraços a todos.

  • http://tsavkko.blogspot.com/ Raphael Tsavkko

    Perfeito, Cava! Assino embaixo! Cegos são os que não querem ou conseguem ver o absurdo que é esta cobertura da TV. Lembro do Laurindo Leal se perguntando porque a TV não fez seu trabalho de alertar o povo do perigo e só apareceu pra contar os mortos e fazer uma cena imensa.

  • Carlos Alberto

    “é bom lembrar que na Biblia a esquerda está sempre ligada ao reino das trevas e tudo o que ela representa,inclusive a morte.”

    HAHAHAHAHAHAHA!
    Essa é boa.
    A esquerda, que “apregoa” que o homem não deve “pisar” o homem, a esquerda que “apregoa” a solidariedade, a igualdade, é das trevas!
    SHAUHUSHUAHUShausa
    Essa eu gostei mesmo, ganhei meu dia.
    E o texto, aliás, é muito bom. Pena que poucos são os brasileiros que pensam assim.
    POBRES BRASILEIROS POBRES!

  • Carlos Alberto

    As chuvas e o proletariado : http://resistir.info/brasil/chuvas_e_responsabilidades.html
    Brasileiros, deixem a alienação de lado. Parem de viver a mentira,o irreal.
    Aliás, sugiro que os nobres que idolatram a TV e até foram “ofensivos” (?) ao autor, leiam o documentário “Muito além do cidadão Kane”.

  • http://Nãotenho Luciano Oliveira

    Bruno, tive uma idéia genial!

    Alguém (infelizmente posso fazer isso pois não tenho a coragem para colocar o guizo no gato; sou um rato covarde!), alguém, como dizia, deveria com uma bomba invadir o bordel chamado BBB e fazer uma chantagem à “Grôbo”: ou lêem esse seu artigo no Jornal Nacional, ou o bordel explode!
    Mganífico.
    Nota 10!

  • Ertha Lucia

    Gostei mais da intensão do texto do que do próprio texto. Talvez seja pela minha incapacidade de gostar de ironia e de humor, profissional. Mas algumas frases soltas, em alguns comentários, chamou minha atenção. Ex ” compaixão de madame ” que coisa preconceituosa!!!! Outra… 6 milhões de judeus….. só está na memória da maioria dos brasileiros, esta tragédia. E os milhões de indios dezimados nas Americas do Norte e do Sul? E nossos quase 400 anos de escravidão no Brasil, rendeu quantos mortos? Sem citar que boa parte dos brasileiros acham que nada devem aos negros, nem as cotas. Será que esta curta visão não é fruto ,deliberado, não só, mais também dos meios de comunicação e da má qualidade do curriculo escolar? Os blogs contribuem a sua maneira, para minimizar ou potencializar estas mazelas. Quais serão mais eficientes? A banda larga + o futuro nos responderão. Continue seu trabalho e colha os frutos. Abraços

    ‘ que coisa mais preconceituosa

  • Bosco

    Depois que o povo se dobra as imagens da TV, aparecem as estrelas globais em milhares de caixas de emeios pelo país, oferecendo suas empresas como intermediarias para as nossas doações, cientes de que fazem um grande e lucrativo negócio, esses “garotos-propagandas” das desgraças só querem visibilidade para si, e lucros para suas empresas intermediarias de nossas doações. É a industria dos cadáveres. Uma versão neo-moderna da “industria da seca” do nordeste. Como a outra, esta também fabrica fortunas diante de cada um dos cadaveres. (Vejam no gugle: Curraes do Ceará)
    http://migre.me/3Gi29

  • Diego Costa

    Bruno mais uma vez desfilando todo seu talento

  • Gustavo Magno

    Certíssimo que a imprensa brasileira gosta de bater intensamente em tragédias. Estas dão audiência e dinheiro. Ultimamente eles tem explorado demais esse tema.
    Contudo, apesar do lado negativo, noticiar a dor do próximo pode instigar algo de bom dentro do homem com mentalidade mediana. Num mundo onde predomina o individualismo, o egoísmo, não faz mal vermos algumas atitudes solidárias e algumas lágrimas. Talvez o poder do exemplo amoleça algumas “almas”.
    Mas a capacidade de perceber a exploração mental das redes de TV necessita de senso crítico e bom senso. E este éo que falta num povo que não se dedica a cultura e artes.

  • Alex. Chacon

    Ótimo artigo. Realmente exprime a perplexidade de quem valoriza mais seus sentimentos e não é manipulado por este espetáculo de horrores pelo qual somos tomados pela mídia. Um espetáculo em que os holofotes da mídia se fecharão quando não mais interessar aos telespectadores. Será como o término de uma novela em que todos esperam um final feliz. Esta comoção é imediatista e gera conformismo e é por isso que vemos este ciclo vicioso de tempos em tempos e jamais terá final feliz enquanto a tragédia humana for a principal matéria prima deste jornalismo sensacionalista.

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  • http://www.luna-desvario.blogspot.com Renata Santos

    Li o texto e me comovi. A experiência mais humana é justamente a que é mais liquidada pela lógica do espetáculo. A invasão das vidas e dores, em nome do ganho através da venda do que é espetacular e daquilo que você não pode se negar a compartilhar – quem, além de autores como este, se posicionará de forma contrária ao “luto alheio”? Quem terá coragem de dizer que isto não é humanidade e sim a exploração daquela íntima culpa cristã que nos impossibilita o distanciamento necessário pra ver que não é o espetáculo que deve reinar, mas a capacidade de superá-lo e de nos enxergarmos. Como somos. Não como nos vendemos.
    O texto foi exemplar em abrir os olhos nesse sentido. E fiquei de coração doído ao ver tantos comentários raivosos e agressivos.
    A sensação que tenho, ao ler blogs e principalmente comentários deles, é que o distanciamento dos seres humanos, por toda nossa conjuntura e forma de vida, é nosso maior problema. Só não nos identificando e respeitando é possível juntar todas as nossas insatisfações e atirar raivosamente para o primeiro com o qual discordamos.
    Dói ver isso. E saber que é aí que eu também estou imersa.
    A vida não precisa ser uma guerra e é sempre tão difícil demonstrar isso no dia a dia.
    A todos nós desejo mais amor. Amor gratuito, a todos, transcendendo os nossos eleitos-espelhos.
    bom amor para todos.
    um beijo,

    Renata

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