A edição "definitiva" do livro de Verne não é para jovens, mas para velhos amantes da literatura
Antes de a ciência médica aparecer com os exames de DNA e os procedimentos de barriga de aluguel, alguns piadistas misóginos costumavam dizer que a identidade da mãe é sempre uma certeza; já a do pai jamais passa de mera conjectura. A ficção científica, como forma literária, se encaixa bem nesse antigo aforismo da cafajestagem: a mãe é obviamente Mary Shelley, autora do assombroso Frankenstein, mas e o pai? Seria o francês Jules Verne ou o britânico H.G. Wells?
Verne certamente começou antes, tendo publicado em 1863 o romance Cinco Semanas em Balão, narrativa em que um grupo de exploradores sobrevoa a África num balão que, para os padrões da época, era quase uma nave espacial. Esse livro veio a público três anos antes de Wells nascer. Os defensores da primazia do britânico (culpado, meritíssimo) geralmente argumentam com base numa certa concepção de ficção científica: enquanto, em Wells, a ciência é um meio para entender e modificar o mundo, em Verne ela é apenas o pretexto da aventura.
Em Guerra dos Mundos ou na Máquina do Tempo, por exemplo, vemos a civilização ocidental soçobrar sob um ataque alienígena, num caso, ou debaixo de pressões econômicas, sociais e biológicas, no outro. Em Viagem ao Centro da Terra ou 20 Mil Léguas Submarinas, em comparação, o que temos é a aventura científica servindo como uma espécie de parêntese em meio ao fluxo do status quo, que prossegue inabalado. Nesse aspecto, os livros de Verne lembram muito as histórias de super-heróis dos anos 50 e 60, nas quais nenhuma revelação, fosse a da existência de vida extraterrestre ou do ressurgimento da Atlântida, era capaz de abalar a rotina das donas-de-casa de vestido rodado e de seus maridos de terno marrom, chapéu e gomalina.
Se o título de Verne a pai da ficção científica é contestado, é difícil, no entanto, negar a ele a paternidade de outro gênero popular, o technothriller, onde tramas rocambolescas são desencadeadas por, e giram em torno de, avanços tecnológicos únicos, muitas vezes descritos com um nível obsessivo de detalhe. É difícil imaginar Tom Clancy ou mesmo Michael Crichton sem Verne. E Caçada ao Outubro Vermelho, o livro mais famoso de Clancy, provavelmente não existiria sem o antecedente de 20 Mil Léguas Submarinas.
É deste romance, talvez o mais famoso de Verne, que chega uma “edição definitiva” publicada pela Zahar. Suponho que a maioria dos leitores desta resenha já esteja familiarizada com o enredo geral da obra, mas aqui vai um breve resumo: nos anos finais da década de 1860, o biólogo francês Pierre Aronnax, acompanhado por seu fiel valete Conselho e por Ned Land, um intrépido arpoador de baleias canadense, se vê aprisionado a bordo de um magnífico submarino, o Náutilus, e à mercê de seu comandante, o anti-heroi quase-byroniano Capitão Nemo. Na condição de hóspedes involuntários de Nemo, os três percorrem 20.000 léguas sob as águas do mar, visitando as ruínas da Atlântida, os campos de cultivo de pérolas do Pacífico e a Antártida.
Quem conhece outras “edições definitivas” lançadas pela mesma casa editorial, como as de Sherlock Holmes, anotadas pelo estudioso Leslie S. Klinger, ou a Alice de Lewis Carroll, anotada por Martin Gardner, corre o risco de se desapontar: as notas do tradutor André Telles são úteis, interessantes e corretas, mas estão longe de oferecer a exuberância de estilo e erudição desses outros títulos, onde muitas das anotações se desdobram em verdadeiros ensaios históricos e literários.
O papel ensaístico fica por conta da mais que interessante introdução de Rodrigo Lacerda, que contextualiza, para o leitor desavisado, a gênese das Viagens Extraordinárias – série que inclui, além das 20 Mil Léguas, outros títulos famosos, como Viagem ao Centro da Terra, por exemplo. Lacerda lembra que as Viagens foram concebidas como folhetins paradidáticos, publicados como uma espécie de suplemento literário de um periódico infanto-juvenil chamado Revista de Educação e Recreação.
Essa concepção, da obra ficcional como uma espécie de “colherada de açúcar” que ajuda o xarope amargo da ciência a descer pela goela dos jovens, é uma que ainda persegue a ficção científica em várias partes do mundo, e segue tendo muita força na mentalidade editorial brasileira. Ela ajuda, também, a entender as principais limitações dos livros de Verne, a saber: o caráter episódico da ação; a natureza caricatural de boa parte dos personagens; e os fantásticos infodumps.
Parte do jargão dos escritores de ficção científica, “infodump” – literalmente, “despejo de informação “ – é o momento em que a ação da narrativa para, a fim de que algum tipo de informação seja transmitida ao leitor. Histórias passadas no futuro têm infodumps sobre os costumes, a moral e a sociedade em que a trama se passa; histórias sobre armas nucleares têm infodumps sobre física atômica; e assim por diante.
Momentos de infodump tendem a ser especialmente desajeitados, e iseri-los no fluxo narrativo sem perder o leitor é um dos grandes desafios técnicos da escrita de ficção científica. No caso das Viagens Extraordinárias de Verne, no entanto, o infodump é a razão de ser do livro: na lógica da Revista de Educação e Recreação, as aventuras do Professor Aronnax e do Capitão Nemo são apenas um pretexto para que os petizes franceses de 1870 aprendam que os peixes podem ser cartilaginosos ou ósseos, que polvos, lulas e calamares são cefalópodes, quais são as principais variedades de vida comestível dos mares do mundo e como preparar uma refeição decente à base de fruta-pão.Entre outras coisas.
Em sua introdução, Lacerda diz que é virtualmente impossível encontrar uma edição brasileira de 20 Mil Léguas, anterior à “defintiva” da Zahar, da qual os infodumps, principalmente os extensos parágrafos de descrição taxonômica da vida marinha, não tenham sido extirpados. Ele elogia a arte de Verne na construção dessas passagens (como: “no ramo dos zoófitos e na classe dos alcionários, observa-se a ordem das gorgonáceas…”), notando que o autor consegue encadear as descrições forma quase poética, e muitas vezes obter belos efeitos literários (“focas de barriga branca e pelagem preta, conhecidas como “monges”, por terem efetivamente o aspecto de dominicanos com três metros de comprimento”.)
Mesmo reconhecendo a importância de uma edição integral do romance em português, no entanto, vejo-me forçado a confessar que os trechos mais explicitamente didáticos quase me fizeram desanimar da leitura.
O verdadeiro gênio de Verne, a meu ver, está na capacidade de criar imagens de pura imaginação, como quando o Náutilus é avistado, pela primeira vez, por Aronnax, que se espanta com a forma como o submarino ilumina a água do mar:
O halo de luz descrevia sob o mar um arco amplo e retesado, do qual o centro condensava-se num foco ardente, cujo insustentável brilho apagava-se por gradações sucessivas.
Quantas vezes essa mesma cena já não foi vista, em filmes e episódios de TV que tratam misteriosos objetos submarinos? E, no entanto, muito provavelmente surgiu, inédita, da pena do escritor francês. Essa é a verdadeira capacidade de antecipação de Jules Verne. Não “prever” o submarino, mas prever, literariamente, qual o efeito poético que a aparição súbita de um submarino teria sobre o espírito humano.
O poder evocativo do autor ressurge, bem adiante, na descrição de um naufrágio visitado pelo Náutilus, onde Aronnax vê, iluminado pela luz fria do submarino, o cadáver de uma mulher ainda preso ao caso submerso, que “erguera o filho acima da cabeça, pobre criaturinha, cujos braços abraçavam o pescoço da mãe”.
Quanto a personagens, de fato 20 Mil Léguas Submarinas só tem dois dignos do nome: o próprio submarino Náutilus e seu capitão, o enigmático Nemo.
Ficamos sabendo, na introdução de Lacerda, que Nemo deveria ser um revolucionário polonês, que perdera a família numa repressão provocada pelo governo russo. Induzido pelo editor a abandonar essa biografia de seu personagem – por questões comerciais e políticas – Verne simplesmente desiste de dar uma vida pregressa a seu enigmático capitão (uma biografia diversa da do rebelde polonês aparece em uma obra posterior, A Ilha Misteriosa).
Mesmo sem uma vida pregressa ou uma motivação clara, no entanto, Nemo – feroz, inteligente, irônico, assombrado, melancólico – é o ser humano mais bem acabado do livro e sua obra, o submarino Náutilus, é uma extensão de sua personalidade.
Dos demais, Aronnax é às vezes um professor arquetípico de Ciências, o mesmo tipo de que Monteiro Lobato viria a troçar, ainda que com afeto e simpatia, na figura do Visconde de Sabugosa; seu criado, Conselho, faz as vezes de aluno, a quem Aronnax faz perguntas cuja resposta já conhece, para edificação do leitor; e o arpoador Ned Land está ali apenas para dar a Conselho um parceiro para cenas cômicas.
Mencionei, também, o caráter episódico da obra. Se alguns desses episódios têm um vibrante poder literário – como o funeral submarino ou a visita à Atlântida – ou são aventuras que nada ficam a dever aos melhores textos do gênero – o combate com a lula gigante logo vem à mente – o fato é que a falta de um desenvolvimento mais notável dos personagens, ou do propósito da viagem do Náutilus, somada às aulas de taxonomia marinha, tornam a leitura, por vezes, penosa.
A edição definitiva de 20 Mil Léguas Submarinas não é, hoje, um livro para jovens (a menos que se trate de um jovem candidato a oceanógrafo); também é um livro que poderá desapontar os que têm, das antigas versões condensadas, uma forte memória afetiva vinda da infância. Como peça histórica, o livro chama atenção para os alertas que Verne põe na boca de Nemo e de Aronnax quanto ao risco de extinção de baleias e morsas por meio da caça predatória: isso na década de 60 do século retrasado, o que mostra que o problema mão é novo.
Mais do que uma peça de nostalgia ou curiosidade histórica, no entanto, trata-se de um livro para os amantes de literatura: o desafio de exploração da linguagem de Verne, a tentativa de extrair poesia do jargão da ciência, merece ser enfrentado. Nem que seja para que o leitor chegue, ofegante e sedento como os tripulantes do Náutilus, à fantástica luta com a lula gigante dos capítulos finais.
::: 20 mil léguas submarinas ::: Jules Verne (trad. André Telles) :::
::: Zahar, 2011, 456 páginas :::
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Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.