Carta para a Dilma sobre Cuba

É preciso passar a discutir Cuba do ponto de vista de Cuba, e 90% de discutir Cuba sob o ponto de vista de Cuba é deixar os cubanos discutirem livremente.

Companheira Dilma,

Pode perguntar ao companheiro Luis Inácio: um dos problemas de ser presidente petista do Brasil é ter que me aguentar de vez em quando enchendo sua paciência para você defender os presos políticos cubanos. Está longe de ser um dos seus maiores problemas, e está, sem dúvida, entre os mais facilmente ignoráveis. Mas, como você verá abaixo, o problema não vai embora.

Você está prestes a visitar Cuba. Visto que o PT é considerado um caso de sucesso na história da esquerda democrática latino-americana, é natural que haja a expectativa de que você se pronuncie em defesa dos presos políticos cubanos. Afinal, a esquerda autoritária da América Latina não vê nada de errado em um governo de esquerda que mantém presos políticos; a direita demagógica norte-americana também não, porque isso rende votos na Flórida. Mas da esquerda democrática se espera mais.

Além disso, as vitórias da esquerda democrática no continente, e nossos sucessos na (ainda mal começada) luta contra a desigualdade social que tanto nos envergonha, colocam cada vez mais em evidência a necessidade de parar de usar Cuba como recurso retórico em nossos debates políticos: não precisamos mais chamar atenção para os méritos da saúde ou da educação na Cuba comunista para lutar pela melhoria de nossos próprios sistemas de saúde, ou de nossas escolas. Estamos no governo: se alguém fracassar em tornar nosso sistema educacional mais inclusivo e eficiente, ou nossos hospitais públicos melhores, teremos sido nós. A direita americana também ganharia muito se parasse de falar besteira sobre Cuba, mas isso, convenhamos, é problema deles.

Por isso é preciso passar a discutir Cuba do ponto de vista de Cuba, e 90% de discutir Cuba sob o ponto de vista de Cuba é deixar os cubanos discutirem livremente.

O próprio regime de Raul Castro reconhece a necessidade de reformar o sistema econômico cubano, uma tarefa delicada na qual o apoio internacional, inclusive brasileiro, pode ser importante. Mas é preciso convencer o novo governo cubano de que as reformas não podem parar por aí. Parte do problema econômico cubano (como já foi do soviético, do chinês, etc.) é que, mesmo quando seus engenheiros conseguem produzir as máquinas, as ferramentas e os produtos químicos, a economia planificada não consegue fazer deles o melhor uso. Raul Castro está certo em introduzir reformas de mercado (independentemente do que se pense sobre o tipo específico de reforma que foi escolhido), pois mesmo boas fábricas e bons engenheiros são inúteis se não forem bem coordenados. Da mesma forma, ter uma população com o grau de instrução da população cubana (o que muita inveja nos causa, sem dúvida) e não deixá-la discutir livremente é como esfregar um iPad no outro para fazer uma fogueira. Talvez até se consiga algum foguinho, mas é difícil negar que os recursos poderiam ter sido melhor utilizados.

Seria realmente uma pena se a tentativa de modernizar a economia cubana implicasse o descarte das vitórias sociais importantes conseguidas nas últimas décadas. Mas não é claro que essas conquistas serão melhor defendidas se as bandeiras da esquerda simbolizarem, para os cubanos, a recusa da democracia. Não há dúvida de que na Rússia, por exemplo, as coisas seriam melhores se houvesse uma opção de esquerda democrática (e não o partido comunista zumbi) durante os anos noventa. E, se o regime cubano não acredita que os cubanos, após décadas de educação socialista, são capazes de discutir as grandes questões que afetam seu país, é porque, no fundo, quem não acredita nessas conquistas é o próprio regime cubano.

É compreensível que a esquerda brasileira tenha algum vínculo emocional com o regime cubano, que a apoiou na luta contra a ditadura. Na minha carta para o companheiro Luis Inácio, que, enfim, ninguém leu, lembrei do caso do Mandela e do Kadhafi. O Mandela sempre teve uma boa relação com o Kadhafi, que apoiou a luta contra o apartheid na África do Sul. Mas, eventualmente, o Mandela convenceu o Kadhafi a entregar o autor dos atentandos Lockerbie às autoridades britânicas. Depois foi inclusive visitar o preso na Escócia, e reclamou das condições de encarceramento (sem se arrepender de ter pedido por sua entrega). O vínculo histórico não impediu que o Mandela tentasse influenciar positivamente seu aliado, e por episódios políticos como esse medimos sua estatura política.

O chanceler Patriota (bom nome para chanceler) andou declarando que a situação dos direitos humanos em Cuba não é tão urgente quanto em vários outros lugares do mundo. De fato, se compararmos a situação em Cuba com a do Zimbábue, da Coreia do Norte, ou da parte do mundo árabe ainda no inverno, o número de presos políticos pode não parece tão ruim. É verdade também que na base de Guantánamo o exército americano violou direitos humanos sem maiores embaraços.

Entretanto, há uma diferença fundamental: em Cuba, uma palavra do governo do PT terá alguma repercussão, o que dificilmente ocorreria na Arábia Saudita, na Coréia do Norte ou, aliás, nos Estados Unidos. Lembrando que, no caso da ditadura brasileira, a esquerda internacional criticou as violações de direitos humanos aqui desde o início do regime. Mas quando os Estados Unidos começaram a criticá-las, isso bateu bem mais fundo nas autoridades da época. Nesse sentido, melhor ainda do que uma defesa brasileira dos prisioneiros cubanos seria um apelo do governo da Venezuela, que tem vínculos extremamente fortes com o regime dos Castro. Enquanto Chávez não fala, falemos nós.

Você pode ajudar os presos cubanos. Vai ter um monte de gente na esquerda que vai deixar de gostar de você. Algumas pessoas do centro para a direita vão passar a gostar mais de você, mas é razoável supor que boa parte delas não vai gostar de você a ponto de votar em você. E a turma muito à direita vai considerar qualquer coisa que você faça como insuficiente, vai dizer coisas como “se era para fazer tão pouco era melhor não ter feito nada”. Portanto, se você quiser saber se vai ganhar votos defendendo os presos cubanos, eu seria desonesto se dissesse que sim.

E, sendo honesto, o Itamaraty deve ter objeções sólidas a uma intervenção brasileira no debate cubano. Pode ser ruim para nossos interesses econômicos, pode abrir o flanco para um fortalecimento de Chávez entre os novos governos de esquerda no continente, se a esquerda continental achar, em uma avaliação tragicamente errada, que é necessário cerrar fileiras. Mas não creio que nenhum desses efeitos seja imenso. Se o governo cubano começar a expulsar investidores, a estratégia de reforma de Raul Castro morre ainda jovem, e a sobrevivência do regime se torna cada vez mais difícil. Se os governos de esquerda sul-americanos resolverem defender o regime cubano com entusiasmo demais, arriscam alienar os eleitores de centro que os apoiam. Há sempre risco, mas não me parece que os cenários sejam particularmente horrendos.

Por outro lado, você vai aumentar, por pouco que seja, a possibilidade de uns caras que moram em um porão imundo só por serem contra o governo voltarem a ver suas famílias. Você sabe, muito mais que eu, e, aliás, mais mesmo do que o companheiro Luis Inácio, o que é um porão imundo.

Nós dois sabemos que a diplomacia é um jogo complicado, que na política nem sempre a coisa moral a fazer é parecer bonzinho, e que, enfim, todos, por ação ou omissão, somos, e continuaremos a ser, cúmplices das piores ocorrências. Mas minha avaliação sincera é que uma palavra em defesa dos presos cubanos não a ameaçará politicamente de forma irremediável. E ajudaria um pouco alguns sujeitos que estão em péssima situação só porque são contra o governo.

Companheira Dilma, diga uma palavra em defesa dos presos políticos cubanos. O Itamaraty deve saber como fazê-lo de maneira diplomaticamente aceitável.

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Celso Barros

Mestre em Sociologia pela Unicamp e doutor por Oxford.


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  • http://prafalardecoisas.wordpress.com Manoel Galdino

    Tá certo que é o Celso, mas finalmente um pedido/crítica ponderado…

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Valeu, Manoel.

  • http://vilarnovo.wordpress.com Pablo Vilarnovo

    Celso está certo. Até mesmo Chomsky pediu a Chavez a libertação da juiza presa há dois anos sem acusação.

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Grande Pablo! Pois é, é exatamente desse tipo de coisa que eu estou falando.

  • nilo peña

    Concordo em genero numero e grau absolutamente certo Celso, agora essa de esquerda democratica é retorica de comunista frustrado, não achas? pelo menos e penso assim.um abraço.

    • http://napraticaateoriaeoutra.org NPTO

      Pô, rapaz, esquerda moderada é o que mais deu certo até agora: Suécia, Noruega, Dinamarca, Alemanha…

      • http://vilarnovo.wordpress.com Pablo Vilarnovo

        Celso, só a título de provocação, esses países estão lá no topo no índice de liberdade econômica. Como diz o ditado “a virtude está no meio”. Grande abraço.

  • Renan

    Preciso. Parabéns pelo ótimo texto, Celso!

  • Carlos Mauro

    Não são muitas as vezes que vejo alguém usar o mesmo critério para criticar amigos e inimigos. Muito bom.

  • João Paulo Rodrigues

    Certeiro. Agora, só o Celso para ainda não desanimar com as atitudes de parte da esquerda em relação a Cuba…

  • http://blogmariadocente.blogspot.com Maria Cristina Schefer

    Belo texto, grande mensagem! Aliás, não apenas esse!

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