A fala de Bento XVI é o capítulo mais recente de uma campanha contra os direitos humanos tão antiga quanto a própria Igreja
O papa Bento XVI decidiu declarar que a união homossexual representa uma ameaça ao futuro da humanidade. Ele não estava, aparentemente, se referindo ao fato de que uniões entre pessoas do mesmo sexo são, em princípio, estéreis (ao menos por enquanto; mas a tecnologia não para de nos surpreender, e ao menos para as lésbicas já há alguma esperança), mas a uma eventual malaise social. Como escreve a Reuters: “Segundo Bento 16, a educação das crianças precisa de ‘ambientes’ adequados, e ‘o lugar de honra cabe à família, baseada no casamento de um homem com uma mulher'”.
O sentido geral parece ser, portanto, o de que um par homossexual seria, de algum modo e em essência, deficiente na tarefa de criar uma criança.
Pondo de lado minha forte suspeita de que esse ideal de família, com papai e mamãe cooperando ativamente para educar os pimpolhos, cada um dos genitores bem encaixado em seu papel bem-definido, provavelmente foi mais exceção que regra ao longo da história da humanidade, o fato é de que a pesquisa científica disponível simplesmente desmente Sua Santidade.
Trabalho publicado no periódico Developmental Psychology em 1995 já sugeria que, se há alguma diferença na forma como são criadas crianças por casais tradicionais ou por casais de lésbicas, as crianças com duas mães levam vantagem.
Além disso, uma metanálise publicada em 2010, avaliando vários estudos sobre o impacto do tipo de família — casal heterossexual, pai solteiro, mãe solteira, casal gay masculino, casal gay feminino — na criação dos filhos, conclui que crianças criadas por duas mães tendem a receber mais amor, atenção e carinho, mas que “o sexo dos pais (…) tem uma significância mínima na saúde psicológica ou no sucesso social” dos filhos.
Claro, o papa representa uma organização cujos membros são obrigados a acreditar que um biscoito se transforma em carne humana ao mesmo tempo em que continua a ser um biscoito, e que insiste que preservativos são inúteis no combate às doenças sexualmente transmissíveis. Talvez não devamos, portanto, esperar que ele leve a ciência sério. Exceto, claro, quando lhe interessa: hoje, a maioria das igrejas tem para-raio, afinal.
De qualquer modo, pode ser interessante dar uma olhada numa breve lista de “ameaças” anteriormente detectadas pelos sempre atentos ocupantes do Trono de Pedro:
— Heliocentrismo —
O papa Paulo V acatou, em 1616, as conclusões de uma comissão de cardeais segundo a qual a ideia de que a Terra gira em torno do Sol é “contrária à fé católica”.
— Liberdade religiosa —
Em seu sempre divertido (anda que infame) Syllabus, o papa Pio IX condena a ideia de que “todo homem é livre para abraçar e professar a religião que considerar verdadeira”.
— Contracepção —
Em sua encíclica Humanae Vitae, de 1968, o papa Paulo VI declara que todas as formas artificiais de contracepção — pílula, camisinha, etc. — são “intrinsecamente más”, isto é, sempre erradas, a despeito de qualquer intenção ou circunstância. Para comparar: a escravidão só foi declarada “intrinsecamente má” por um papa, João Paulo II, na década de 90.
A verdadeira ameaça ao futuro da humanidade parece, mesmo, ser prestar atenção no que esses caras dizem. Mas é difícil evitar: não só há um lobby forte na mídia, como Bento XVI vem aí em 2013. Minha (talvez vã) esperança é de que não venham querer rachar a continha da visita não-solicitada com a gente.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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