O professor Walter Hupsel, em artigo em sua coluna no Yahoo, fez apontamentos interessantes sobre a “Cracolândia”, seus habitantes e, em especial, sobre os críticos ultraliberais que parecem insensíveis ao sofrimento de qualquer pessoa fora de seu convívio social.
Segundo Hupsel, os comentários que ele recebeu em relação a um texto sobre a Cracolândia “variavam do puro obscurantismo fascista até respostas que tentavam, ao menos, serem racionais.” Sobre o primeiro grupo, se limitou a considerar exemplos de barbárie; sobre o segundo, criticou, comparando-os ao Tea Party:
Funciona mais ou menos assim: Eu não quero arcar com os custos das escolhas individuais. Se as pessoas escolherem isso, elas que arquem com os custos, sejam financeiros, sejam de saúde, sejam legais-policiais ou mesmo, em sua última instância, carcerário (não é incomum receber emails que esbravejam em caixa alta e letras coloridas contra o custo de um presidiário, em consequente defesa da pena de morte).
Este tipo de argumento de cunho ultra-liberal parece ser lógico e tem cada vez mais adeptos. Se a pessoa causou algum dano, ela que pague por este e não eu.
A despeito de desconsiderar qualquer outra dimensão que não a individual, de se “esquecer” do “animal político”, de que as leis são necessariamente sociais, é um argumento que merece uma crítica.
Ainda que eu concorde com a argumentação do professor Hupsel, eu diria de forma diferente.
Há um erro primordial em acreditar que as escolhas dos “drogados”, dos dependentes ou mesmo dos moradores de rua não necessariamente dependentes da Cracolândia (Luz e Santa Ifigênia) são puramente individuais e mesmo racionais. Somos todos animais sociais, vivemos em sociedade e muitas de nossas escolhas não são feitas apenas porque queremos, mas porque somos socialmente influenciados ou mesmo induzidos.
É possível dizer que aquela garota grávida, que fuma crack, escolheu estar ali naquela situação e ponto, é problema dela? Ou é preciso analisar que ela pode ter sido vítima de violência em casa – algo extremamente comum em todas as classes, aliás – e, sem encontrar ajuda (pois muitas mulheres que buscam ajuda em delegacias, por exemplo, são ridicularizadas pelos que deveriam ajudá-las), acabou indo para a rua onde as dificuldades a levaram ao vício?
Talvez aquele pai de família, precisando trabalhar em dois, três empregos, tenha encontrado nas drogas um meio de se manter “ligado”, acordado e disposto, e chegou em um ponto sem retorno do qual não saiu mais, sendo forçado a viver na imundice que é o local onde aqueles seres humanos são forçados a viver, apartados do convívio social “normal”?
A tentativa de pessoas inseridas na sociedade, muitos brancos, com dinheiro e educação, que nunca sofreram nada na vida e por isso acham que são independentes e que não são influenciados pelo mundo que os cerca, de tentar se colocar como um observador privilegiado, acima de tudo, é simplesmente tosca.
Se colocar acima, como se não fossem também responsáveis pela situação dos outros membros da sociedade, não funciona.
O professor continua:
Via de regra quem reclama dos custos, de “pagar” o tratamento do fumante, do usuário de crack, escolhe o objeto da sua indignação. Para ficar em um exemplo apenas, ele acha normal os bombeiros atenderem o motorista de um carro que bateu num poste em altíssima velocidade.
Neste caso não tem “responsabilidade” do agente. Os custos do atendimento, financeiros e humanos são socialmente divididos sem nenhum problema e nenhuma reclamação daqueles que reclamam das clínicas pra viciados, das internações em hospital público do fumante.
[…] O motorista pode ser eu, ou alguém da família, um grande amigo quiçá. Afinal, quem nunca correu “um pouquinho” para chegar mais cedo? Para não perder uma entrevista de emprego?
Neste caso, somos capazes de “vestir a pele” do outro, ou nossa mesmo. Assim, defendemos o socorro e os gastos se tornam legítimos. Mas um usuário de crack? Um fumante com efisema? Não, estes não! Não é justo a sociedade arcar com (esta) escolha.
Tolero o álcool no trânsito e arco com seus custos sem reclamar. Como não tolero o crack, acho pagar por clínicas um absurdo. Como se vê, a questão não é sobre escolhas e responsabilidade, é sobre julgamentos morais.
Achamos normal pagar ou sentir parte de algo que acreditamos poder acontecer conosco ou com nossos parentes, pois de um ponto de vista privilegiado não imaginamos que alguém de nossa convivência acabe, por exemplo, na Cracolândia. Mas, claro, pode acontecer, e de fato acontece. Nós apenas preferimos ignorar o óbvio.
Aliás, enquanto o pobre – em sua maioria – se acaba no crack, o rico pode pagar uma clínica caríssima para se livrar da cocaína. Este é aceito nos círculos mais altos, é um irmão que precisa de ajuda e, depois de desintoxicação, volta ao convívio como se nada tivesse acontecido. O crack não é apenas uma droga, ela é uma droga social. Ela pode até vitimar membros da elite, mas em geral tem como público-alvo as camadas mais pobres da população. Ela é, aliás, a irmã mais pobre da cocaína, e isto sem alegoria alguma. É uma droga feita para viciar rapidamente, para criar um público cativo, quase zumbi, necessitado, mas que não precisa da discrição de um empresário na hora de cheirar sua carreira de cocaína no banheiro.
Não acredito que alguém tenha escolhido livremente estar na situação em que a maioria dos dependentes da Cracolândia se encontra, e é preciso analisar cada caso para entender as várias razões. Sem dúvida, veremos que a maioria tem reflexos sociais amplos ou é reflexo de longas cadeias de relações sociais e de fatos sociais. Se drogar e parar na rua não me parece uma escolha sensata ou livre para a maioria, mas resultado de um processo doloroso e longo, envolvendo múltiplos fatores, inclusive psicológicos.
Muitos dos moradores da região têm sérios problemas psicológicos e nunca encontraram ajuda. Outros têm famílias destruídas, enquanto uma boa parcela de moradores de rua acabou nesta situação por ação criminosa do Estado – vejam as favelas que pegam fogo e muitos são forçados a viver na rua – ou por dívidas, falta de emprego… O crack é o fim de uma cadeia de desespero, que desemboca na desesperança.
Ou seja, não se trata de uma escolha individual, mas do resultado de interações sociais, de diversos fatores que muitas vezes independem da vontade única do indivíduo. Claro, temos vontades, temos ideias, desejos e, sim, fazemos nossas escolhas, mas é um erro pensar que mesmo estas escolhas são livres de todo e qualquer tipo de influência. E é preciso analisar cada caso para ver qual o peso da sociedade nas escolhas que tomamos.
Se colocar como “libertário” é fácil. Basta se livrar de qualquer sentimento de culpa e pensar que suas ações não impactam as vidas de outros. Basta dizer que tudo que acontece é culpa do indivíduo, quando, na verdade, somos animais sociais, vivemos em sociedade e sofremos também desta “dependência”. Repito, notem como a maioria dos tais “libertários” são ricos ou vivem bem, são brancos e educados. Acham que nunca dependeram de ninguém, mas mal fazem ideia de como estão errados.
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* Libertário ou libertariano, na forma consagrada pela academia no Brasil, ou seja, o “liberatarianismo de direita”, mas também abarcando outras ideologias de direita ditas “liberais”.