Os cubanos merecem ser mais que os prisioneiros de um zoológico da esquerda latino-americana
Vêm sendo duros, para aqueles de nós que votamos em Dilma e abominamos a ditadura cubana, esses dias que antecedem o passeio da presidente pelo Caribe. Temos que, mais uma vez, ouvir os amigos simpatizantes tucanos perguntarem se agora estamos satisfeitos, ou se já nos desenganamos. E, mais uma vez, temos que dizer que não votamos em Dilma (e, no meu caso, em Lula) pela política externa petista, mas pela política interna – como qualquer eleitor de qualquer país, salvo em situações extremas. Levando-se em conta os acertos e derrapadas, o saldo ainda é positivo.
Mas é preciso dizer que os dias são duros também porque os amigos simpatizantes tucanos possuem certa razão.
Eu posso receber a agitação a favor do regime cubano que vem das facções de extrema esquerda sem grandes sobressaltos emocionais. Já sabemos o palanfrório: a situação social da ilha é muito boa, inclusive se proporcionalmente comparada à do Grande Satã. Desprezando a quarta e qüinquagésima primeira posições de, respectivamente, GS e Cuba no ranking de IDH, as facções, mais importante, fingem não saber que a sociedade estadunidense — com 300 milhões de almas, imigrantes de todo o mundo e uma federação de verdade — é infinitamente mais complexa que a da ilha.
A excelência social cubana, segue o raciocínio extremista, justifica (ou pelo menos compensa) o regime de partido único e a ausência de liberdades que alguns ainda não têm vergonha de chamar de “burguesas”. Isso é nojento. A ideia de que liberdade de assembleia, de organização política e de imprensa não tem nada a ver com o “social” é nojenta – como devia saber uma esquerda que sofreu em ditadura repleta de “milagres”. Bom IDH não torna uma ditadura menos ditadura. E, por todos os santos, vamos deixar as coisas claras: se a palavra ditadura ainda tem algum significado, Cuba é uma ditadura. É chato ficar repetindo esse fato, mas o que mais fazer diante da contagiosa propaganda em contrário? No ranking de democracia, o país está em centésimo vigésimo primeiro, entre a Líbia ainda sem eleições e o regime islâmico das ilhas Comores. Qualquer apologista do regime que, em outros momentos, posa de amigo dos oprimidos deve lidar com esse dado fundamental.
A livre expressão e circulação de ideias não é um bem negociável. Quem pensa o contrário, imagine viver por décadas sob um regime autoritário chefiado por Aldo Rebelo. E depois mais um tempo sob o irmão de Aldo Rebelo, promovido de chefe das forças armadas a chefe de governo. Nenhuma revolução, até hoje, gerou um ditador menos ruim do que seria o Aldo em nossa realidade imaginária. Jamais deve-se abrir mão do direito de ridicularizar Aldo na praça pública e tentar derrubá-lo nas urnas, ainda que ele entregue energia elétrica de primeira qualidade, ininterruptamente, por anos e anos.
Os críticos à direita do PT nos incomodam justamente porque no fundo sabemos, como eles, que algumas das ilusões em relação a Cuba não estão restritas à extrema esquerda. E porque sabemos, como sabem os não sectários entre eles, que Dilma poderia fazer a diferença, se quisesse. A admiração de Lula pela ditadura cubana era sincera, e essa é uma nódoa de seu governo e de sua biografia. Mas, devido à postura de Dilma em relação a regimes autoritários de outros continentes e ao seu próprio amadurecimento político, não conseguirei ver eventuais palavras suas de elogio a Cuba como algo além de uma grande farsa. O apoio que os reacionários (isto é, os líderes antidemocráticos) cubanos têm entre a militância petista é tão grande, que é uma prova de fogo para Dilma ir a Cuba e cumprir seu script.
Talvez não haja mesmo nada como uma geração após a outra. Talvez seja preciso uma futura geração de petistas para que um presidente da República filiado ao partido tenha coragem de denunciar uma ditadura de esquerda como denuncia uma de direita. Daqui até lá a ditadura cubana já terá caído; o país será em grande parte parecido com o atual – com pobreza, corrupção, violência, prostituição, bela música e literatura –, mas também dotado das liberdades democráticas básicas de um país normal. Por então, talvez só reste à nova geração de petistas fazer uma crônica da vergonha passada, e entender como essa história pode ajudar a não se repetir os mesmos erros.
O argumento de que o Brasil não deve criticar abertamente os reacionários e declarar apoio aos democratas, porque um Estado não se mete nos assuntos internos de outro, teria validade se, além do credo a-cada-Reino-os-seus-súditos não ser a atitude de um imbecil moral, nossos líderes estivessem fazendo o seguinte: reunindo-se abertamente com os reacionários, elogiando, digamos, os índices educacionais e medalhas olímpicas da ilha e, ao mesmo tempo, meio às escondidas, pressionando os mesmos reacionários por abertura democrática e de alguma forma apoiando os democratas. Tais canais fatalmente seriam apenas meio escondidos, e um dado ou outro vazaria para a imprensa. A ausência de indícios de tal postura na mídia (grande, média, pequena ou micro) é, neste caso, prova da ausência de tais conversações. Infelizmente. Se eu acho que Dilma não é sincera em seu respeito pela ditadura, também sabemos que ela é bastante simpática ao dogma da não intervenção. O resultado, inevitável, é sua visita ao país ser o show de constrangimento e celebração ideomaníaca (lá e cá) que todos assistiremos.
E deveríamos criticar os atentados aos direitos humanos em Cuba, se não criticamos os da China, da Rússia e outros países grandes? Claro que deveríamos. Primeiro, à semelhança da China mas ao contrário de outros países, os crimes de Cuba derivam da própria base do sistema, que consagra a arbitrariedade. Segundo, nosso governo não bate de frente com a China, como aliás nem os governos das democracias nórdicas, porque meio mundo e mais a outra metade dependem da amizade chinesa para crescer. Por outro lado, qual a participação de Cuba no total das exportações brasileiras? E quais insubstituíveis produtos importamos de lá?
No caso de agressões aos direitos humanos pelos EUA, atentados à democracia na Rússia e ausência de democracia na China, as sociedades civis de países democráticos podem intervir, sem contudo esperar constante suporte governamental. No caso de Cuba e de outras micro-tiranias, governos democráticos estão desimpedidos para militarem mais ou menos abertamente. EUA e União Europeia já fazem isso em relação a Cuba. O Brasil poderia fazer a sua pressão – sem apoiar qualquer estúpido bloqueio econômico, mas deixando claro que quer para outros povos americanos pelo menos o tanto de democracia com que contamos em casa. Claramente, temos potencial para condicionar parcerias econômicas a reforma política. No entanto, o Itamaraty diz que, na viagem, a presidente acertará parcerias econômicas, mas não interferirá nos assuntos internos cubanos. Quem o Itamaraty pensa que é bobo? Apenas colaborar com os projetos econômicos da ditadura já é tomar lado nos assuntos internos cubanos, e não do lado correto. Se não formos fazer influência benéfica onde temos condições, onde mais faremos?
A esquerda brasileira verdadeiramente democrática deve deixar de lado o medo típico do indivíduo inseguro, aquele de “servir à direita”, chamar a ditadura cubana de ditadura e exigir que o governo brasileiro, o atual e futuros, eleve as expectativas em relação ao povo cubano e deixe de ver um governo ilegítimo como um bem necessário. Mesmo que essa militância não dê em nada, e Cuba democratize apesar do Brasil, no mínimo amadureceremos nosso senso de solidariedade civil e manteremos a clareza moral em dia. Os cubanos merecem ser mais que os prisioneiros de uma espécie de zoológico da esquerda medieval latino-americana.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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