Em novo livro, Hirsi Ali narra sua trajetória do islã para os EUA, e revisita familiares
Tenha em mente o seguinte. Hirsi Ali, já morando nos EUA, optou por não visitar o pai doente no East End de Londres, um bairro com muitos muçulmanos que a tinham manjado e marcado como uma pessoa indigna de andar por este mundo. Tenha em mente que ela teve que visitar o pai em coma no Royal London Hospital muito rapidamente, porque logo começariam as visitas de pessoas próximas a seu pai que a considerava uma desgraça para o clã e uma presença que poderia amaldiçoar e comprometer a boa estadia do comatoso no Além. E tenha em mente que ela não pôde visitar a mãe na Somália porque, como não podia contar com o sistema de segurança que tinha na Europa e na América, provavelmente seria morta.
Há poucos crimes que justificariam tamanha animosidade, efetivamente proibindo uma filha de ver seu pai e sua mãe. E não há nenhuma expressão de pensamento que a justificaria. E no entanto Hirsi Ali se vê há alguns anos em má situação por ter cometido o delito de opinião. Nascida na Somália, e com partes da infância passadas no Quênia e na Arábia Saudita, Ali abandonou o islã tribal de sua família ao abandonar na Holanda o avião que a levaria para um casamento forçado com um primo no Canadá. Pediu asilo, rapidamente aprendeu holandês, trabalhou na assistência a refugiados, cursou ciência política, virou parlamentar e tornou-se uma das vozes mais ativas contra costumes como o casamento forçado e um ensino propositalmente deficiente para meninas imigrantes, dissuadidas pelos pais até de aprender a “língua dos infiéis”. Com Theo Van Gogh, realizou o documentário Submissão. Van Gogh acabaria assassinado pelo jovem fundamentalista Mohammed Bouyeri, que também afixou no peito do morto uma carta que entre outras coisas jurava Hirsi Ali de morte. Ela passou a andar com seguranças, abandonou a política, se viu pressionada na Holanda e foi para os EUA, onde atualmente trabalha no American Enterprise Institute.
Sua história está contada detalhadamente no livro de 2007, Infiel (que a Companhia acaba de relançar, em versão econômica). Nômade, o mais recente, de certa forma é uma complementação do anterior, sendo principalmente uma por vezes emocionante relembrança de certos membros de sua família, além de narrar sua ida e adaptação aos Estados Unidos.
Ayaan é tida como uma figura “controversa”. Não vejo motivo para tanto. Ela é uma fã dos valores iluministas como qualquer pessoa de espírito liberal, em qualquer lugar do mundo. Ela reconhece os defeitos do Ocidente. Ela dirigi-se a seus críticos mais tresloucados com mais compostura do que seus críticos mais calmos dirigem-se a ela. No entanto, como no final das contas o objeto de sua crítica é um sistema de códigos de comportamento tido como “dos oprimidos”, o “controverso” passa a ser a crítica, e não o sistema.
Isso dito, algumas opiniões de Ayaan certamente estão mais abertas a crítica do que a média de todas suas opiniões. Notavelmente as generalizações, que servem apenas para empobrecer seu argumento geral. Ao tentar mostrar como a mera filiação religiosa muçulmana não é compatível com a democracia e o liberalismo, ela escreve que “o islã não é apenas uma crença, é um modo de vida, um modo violento de se viver. O islã está embebido na violência e encoraja a prática da violência”, e pergunta se é possível “ser ao mesmo tempo um muçulmano e um americano patriota”, respondendo que “sim, desde que a pessoa não esteja muito preocupada em ser muçulmana”. É verdade que nos últimos séculos o islã operou contra o bem-estar dos muçulmanos, sendo o principal vetor do fechamento da mente muçulmana. Mas se nos tempos áureos do mundo árabe o islã não impediu o progresso científico e humano, isso só pode significar que ele não tem necessariamente que impedi-lo. Basta testarmos a teoria contra a realidade. Sabemos de vários muçulmanos que são genuínos democratas, respeitosos das mulheres e homossexuais, admiradores do espírito científico. Não interessa se eles têm que desenvolver dupla personalidade para tanto. Contanto que encerre seus direitos quando começa o direito do próximo, um indivíduo pode desenvolver quantas personalidades precisar.
Hirsi Ali comete outra bobagem: invoca o 1,5 bilhão de muçulmanos para escrever que “Hitler tinha o Mein Kampf e o poderio da Wehrmacht alemã; os antissemitas de hoje, como o líder iraniano Mahmoud Ahmadinejad e Osama bin Laden, têm um livro sagrado, um poder demográfico muito maior e boa chance de botar as mãos numa arma nuclear.” Ela, mais do que ninguém, devia saber que o 1,5 Bilhão é uma ferramenta retórica mais comumente utilizada por muçulmanos de extrema-direita e pela esquerda multi-culti para apontar o dedo a qualquer um (como ela própria e o amigo assassinado van Gogh) que critique o islã sem meias palavras e chame de barbárie barbáries como a mutilação genital. Não foi 1,5 Bilhão de muçulmanos que foi às ruas protestar contra charges de Maomé. Foram apenas crentes idiotas instrumentalizados por líderes políticos e religiosos cínicos. Um número considerável, sim, mas muito longe de 1,5 Bilhão. Do 1,5 Bilhão, 73 milhões são iranianos, mas não são 73 milhões de aliados de Ahmadinejad ou de qualquer um que seja em algum momento abençoado pelo Líder Supremo; se assim fosse, não haveria necessidade de eleições com candidatos previamente barrados, e ainda assim constantemente roubadas. Do 1,5 Bilhão, mais de 2 milhões são cidadãos estadunidenses. Destes, quantos sunitas deixariam a república secular para ir morar num regime xiita? Quantos xiitas a deixariam para ir a um país de maioria sunita?
Outras opiniões envolvem sua caracterização de Jesus como uma figura superior a Maomé e das igrejas cristãs como instituições que devem ter um papel mais ativo de integração dos muçulmanos nas sociedades ocidentais e de proselitismo no Oriente. Em relação aos profetas, eu, na minha condição de ateu, e pelo que sei de ambos, também apostaria que seria mais prazeroso jogar uma partida de sinuca com Jesus do que com Maomé. Mas, numa obra que pretende ser também guia para muçulmanos moderados, esse tipo de comparação está longe de ter resultados muito positivos.
As igrejas cristãs realmente podiam ser úteis se passassem a exigir, de forma coordenada, frente a governos de países majoritariamente muçulmanos, respeito maior pelos direitos de cristãos (e, se não fosse pedir demais, de agnósticos e ateus), e punição mais rigorosa a quem não respeite esses direitos. Duvido bastante, no entanto, que as igrejas cristãs se unam algum dia para tanto, preferindo cada uma cuidar de seu rebanho. Outro dia peguei ali na calçada da igreja uma Folha Universal com a foto de um templo reduzido a carvão na Nigéria, e a redação do tabloide está até o presente momento esperando uma carta de solidariedade da Igreja Mundial do Poder de Deus. Abundam exemplos, por outro lado, de igrejas cristãs se aliando a governos e religiosos muçulmanos fundamentalistas para barrarem onde for possível no planeta iniciativas como o direito ao aborto e tratamento igualitário a homossexuais. Realisticamente, resta de ação positiva às igrejas cristãs empreender em solo americano e europeu campanhas mais fortes de proselitismo entre imigrantes.
Outras críticas que comumente se faz a Ayaan não procedem. Que ela é egoísta, por exemplo. Sua experiência de fugir de um casamento forçado é uma exceção raríssima à regra, e apenas por isso, segundo a crítica, ela já fica se achando superior ao restante das muçulmanas. Isso é injusto. A moça raramente perde uma oportunidade de mostrar o quanto não é excepcional em seus apuros, e em Nômade isso ocorre novamente. Por exemplo, da apostasia, e do medo que se segue:
É verdade que tive de pagar um preço por deixar o islã e por dizer o que penso. Tenho de pagar por uma equipe de segurança que me acompanha 24 horas por dia, por exemplo, por causa das ameaças de morte feitas contra mim. Mas, como o islã exige que todos os que deixarem a religião sejam punidos com a morte, este medo constante é até certo ponto partilhado por todos os muçulmanos que abandonaram a fé e também por aqueles que praticam uma forma menos rígida de islamismo.
Ela compra briga, isso sim, com as muçulmanas ocidentalizadas que têm do bom e do melhor, mas que, imersas em universidades nada “orientalistas”, têm como hobby criticar quem critica o tribalismo do islã. Mas aí cumpre perguntar: quem é que está mesmo sendo egoísta?
E o palavreado da autora? Ela não pega desnecessariamente pesado? Não pega pesado quando classifica de “tradição idiota” um costume, que ela viveu na pele e que ainda vai mundo bem, em que “éguas e camelos são mais valorizados do que filhas e netas”? Não sei. Como você classificaria esse costume?
Grande parte da preocupação de Ayaan está centrada na mísera educação dispensada às meninas de família muçulmana – que é diferente da dos meninos mesmo em várias comunidades na Europa, mas que na Ásia e África atinge níveis quase inacreditáveis. Uma educação centrada na manutenção da virgindade até o casamento e também nas recompensas (e castigos) do Além. Uma educação onde o questionamento por parte das alunas é em si mesmo considerado influência do Satã, e onde o principal inimigo, não importa o ditador de plantão, é o judeu. Ayaan não sabe disso porque leu em livros-texto. Sabe porque vivenciou, sabe porque trabalhou com muçulmanas na Holanda, e porque ainda hoje continua a trabalhar com a questão em sua Fundação.
Não fugiria ela da realidade quando classifica de “apartheid” o tratamento dispensado ao gênero feminino no islã? Ayaan, fundamentalista na infância e no princípio da adolescência, depois se tornou uma jovem moderada e, recentemente, uma mulher ateia. Aluns de seus oponentes explicam seu comportamento “controverso” como o de uma mera “ateia militante”, dotada das supostas generalizações e termos inapropriados de gente como Richard Dawkins – seu amigo, aliás, como é Sam Harris e como foi Christopher Hitchens.
Mas, fora o fato dela criticar o islã desde quando ainda acreditava em Alá, a realidade é que muitos muçulmanos moderados e mais à esquerda que Ayaan usam tom e termos idênticos. Por exemplo, o dissidente iraniano Akbar Ganji. Ganji, como Chahla Chafiq e incontáveis outros, participou da derrubada da ditadura de Reza Pahlavi, mas apenas para sofrer mais na frente com estadias nas prisões da República Islâmica. Apesar disso, ele permanece um democrata muçulmano, denunciador dos padrões tortos de um Ocidente que aceita Israel com armas nucleares mas não garante ao Irã o direito de desenvolver tecnologia nuclear para fins pacíficos, e contrário a qualquer intervenção externa em seu país. É, em suma, um sujeito que bem poderia conceder uma entrevista à Carta Capital. Não obstante, em seu A estrada para a democracia no Irã, há um capítulo não ambiguamente intitulado “Notas sobre o apartheid de gênero”, que começa informando que “o sistema político-legal do Irã é baseado no apartheid, na injusta e insustentável discriminação entre os membros da sociedade”, e logo na segunda página lamenta que “infelizmente o apartheid de gênero não tem causado tanta indignação no mundo quanto o apartheid racial”. A república no Irã deve ser secular e democrática, diz Ganji, não “islâmica”. Bem, o Irã está longe de ter o apartheid mais rigoroso entre os países de maioria muçulmana. Certamente, é menos rigoroso que o apartheid dos países de maioria muçulmana em que Ayaan morou. Portanto, os julgamentos de Ayaan Hirsi Ali, e o tom com os quais ela os transmite, estão longe de ser exclusividades de “self-hating muslims” empregados de institutos conservadores de Washington, como quer uma parcela dos críticos da autora somaliana.
Ela deve ser lida. Como a Primavera Árabe dá indícios de que pode paulatinamente se transformar em Inverno Islâmico, Ayaan Hirsi Ali deve ser lida para ontem.
::: Nômade ::: Ayaan Hirsi Ali (trad. Augusto Calil) :::
::: Companhia das Letras, 2011, 392 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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