Os carrascos da Comissão da Verdade

O máximo que os indicados pelo governo podem fazer é deixar uma digna herança memorialística às gerações vindouras.


Confirmando as piores expectativas, a Comissão da Verdade nasce fadada ao desapreço geral. A inadmissível abrangência histórica, a estrutura mínima e o protocolo anódino tendem a transformá-la num plenário de discursos humanistas, catarses pessoais, proselitismo ideológico e acusações infrutíferas. Mesmo a eventual descoberta de restos mortais e minúcias incógnitas ficará sujeita às veleidades obstrucionistas dos depoentes. A imprensa corporativa, ansiosa por ocultar seu apoio ao golpismo de 1964, manipulará os debates sempre que possível, desqualificando iniciativas que julgar hostis a convenientes fantasias de imparcialidade. E os papelórios resultantes das audiências serão logo sepultados sob o esquecimento conciliador que elas deveriam combater.

Todos os que sonhávamos com a punição dos assassinos e torturadores do regime militar guardamos justos motivos de revolta. Mas ao menos tenhamos a sensatez de identificar os verdadeiros responsáveis pela fatalidade.

A ideia da Comissão definhou aos poucos, desde o seu lançamento, no Programa Nacional de Direitos Humanos, em 2009. O governo Lula, através de Nelson Jobim, apaziguou o oficialato e permitiu que as Forças Armadas participassem dos debates sobre a ditadura em posição similar à das entidades civis. A gestão Dilma Rousseff cometeu o equívoco de não romper com essa estratégia, que levou a uma desnecessária atitude conciliadora nas decisivas articulações do evento.

Mas o golpe definitivo na Comissão da Verdade foi desferido pelo Supremo Tribunal Federal, em abril do ano passado. O aval à nefasta Lei de Anistia garantiu a impunidade dos criminosos e de seus comandantes, não permitindo que investigações futuras tenham conseqüências na esfera penal. Aniquilou, assim, as finalidades jurídicas esperáveis de um projeto governamental que se propõe a analisar crimes contra a humanidade – a controversa responsabilização cível pode levar décadas para reivindicar um improvável endosso do próprio STF.

Ao contrário do ocorrido em outros países sul-americanos e do que estabelecem tratados internacionais, portanto, as audiências brasileiras ficarão limitadas a um painel histórico da violência política no país, reproduzindo boa parte do material já disponível na extensa bibliografia sobre o período abarcado.

Agora pouco importa se este era realmente o objetivo central da Comissão (tese que consola os governistas e os aproxima da oposição temerosa) ou se estabelece um desfecho acintoso para trinta anos de arbítrio, como defendem algumas entidades coordenadas por vítimas da ditadura e seus familiares ainda vivos. O máximo que os indicados pelo governo podem fazer é deixar uma digna herança memorialística às gerações vindouras. Caso a boa vontade dos nobres pesquisadores não atrapalhe, pode-se até torcer pela convocação de certos barões midiáticos, só para vê-los fugir vomitando bravatas reacionárias do melhor udenismo esquerdofóbico. Mais do que isso, lamento informar, não acontecerá.

A militância progressista, apesar das iniciativas solitárias contra a “ditabranda” e congêneres, desperdiçou a chance de criar um movimento nacional pela suspensão da Lei de Anistia, que pressionasse o STF antes dele fechar as poucas vias processuais disponíveis. Também prevalece, há décadas, uma conivência generalizada com a tortura e as execuções diariamente praticadas por agentes públicos nos vergonhosos sistemas prisionais do país inteiro. Pois ficou tarde para exigir que a administração federal mergulhe numa guerra inútil contra o Judiciário, o Legislativo e a mídia em nome de ideais que a própria sociedade não fez questão de impor quando ainda era possível.

Amálgama




Guilherme Scalzilli

Historiador, jornalista e escritor, colabora com a Caros Amigos e o Le Monde Diplomatique Brasil. Autor, entre outros, do romance Crisálida.


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MAIS RECENTES


  • Neptuno

    Desculpem, mas ainda não entendo algo:
    Qual a diferença entre o torturado que dias antes explodiu uma bomba e matou seres humanos e o torturador?
    Ainda não tive um parecer digno e isento!

  • Neptuno

    Alguém poderia me responder algo:
    Ainda não entendo a diferença entre o torturado que dias antes explodiu uma bomba e matou seres humanos e seu torturador?
    Ainda não tive uma resposta digna e isenta!

  • Gabriel Braga

    Impressionante como,mesmo quase 30 anos após o fim da ditadura civil-militar,ainda tenha tanta gente saudosa daqueles tempos obscuros.E o pior é que acho que as viúvas de Médici,Geisel e companhia são maioria.
    Entrar nesse tipo de discussão é até chato porque sempre que alguém defende a punição aos torturadores,logo essa pessoa ouve que é necessário punir também os guerrilheiros,ou terroristas,dependendo do ponto de vista,ou então ouve a falácia de que os militares nos salvaram de uma revolução comunista que iria implantar um regime totalitário,semelhante ao da ex-URSS.
    O primeiro argumento dos defensores da ditadura é patético pois os atos da esquerda armada,ainda que violentos,eram legítimos já que eram a resistência a um governo ilegal,que havia chegado ao poder rompendo a ordem constitucional,sem que fosse escolhido pela população.Além do mais é ridículo querer comparar a violência de grupelhos de guerrilheiros com a violência do aparato repressivo do estado,utilizado para acabar com o que restava de oposição ao regime,repito,ilegal.
    O segundo argumento revela bem o tipo de democracia que a elite brasileira e a classe média mais,digamos,tradicional acha ideal.Para esse pessoal a democracia ideal é aquela que deve garantir o bem estar para mais ou menos 20 milhões de pessoas,como diz Mino Carta,e fazer com o que estado esteja sempre a seu serviço.Jango foi derrubado porque propunha inclusão social e algumas reformas que fizessem nossa sociedade ser mais justa e igualitária.Mas no Brasil quem defende esse tipo de coisa logo é tachado de radical,esquerdista,comunista etc,tanto é verdade que,pelo pouco que fez,Lula sofre todo tipo de preconceito e ataques.
    Só vamos ser uma democracia de verdade quando passarmos nosso passado a limpo e para isso precisamos investigar,sem medo,o que ocorreu nesse período negro do Brasil.

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