O sistema quântico com temperatura absoluta negativa na escala Kelvin, desenvolvido por pesquisadores alemães, servirá para estudar estados exóticos da matéria, como um gás com pressão negativa.
O ano-novo no Brasil (e em particular no Rio de Janeiro) é sempre uma época animada para mim. Para além das comemorações da época, das resoluções de sempre e de muitas festas em família, há o calor do verão. Ele pode ser abjeto, como no último dia 26 de dezembro, quando alcançou o maior valor medido em um século na cidade, ou pode ser muito agradável se você está numa praia com brisa fresca na Região dos Lagos.
Foi nessa alternância entre conforto e modorra que encontrei um curioso artigo na revista Science, neste 4 de janeiro. Ali se dizia que pesquisadores alemães (Braun, Schneider, et al.) tinham conseguido montar um sistema quântico com temperatura absoluta negativa – e isso na escala Kelvin, aquela mesma que a gente aprendeu na escola que começa no tal do Zero Absoluto e só pode assumir valores positivos. Foi o que bastou para alguns amigos no Facebook me perguntassem sobre essa história de temperatura negativa e como um negócio desses seria possível.
Primeiro é preciso definir o que a gente quer dizer com “temperatura”. Não é um conceito tão simples quanto parece (nada na física é). Intuitivamente poderíamos dizer que a temperatura é uma medida da energia interna de um sistema. Sabemos que essa energia pode fluir de um sistema para outro – chamamos isso de transferência de calor – mas a temperatura não é uma medida do calor de um corpo. Tudo o que podemos medir é a energia desse sistema, e daí atribuímos a ele algumas propriedades.
Como se sabe, qualquer coisa em nosso dia-a-dia é feita de moléculas e átomos. Sabemos desde os tempos de escola que essas partículas estão em constante movimento dentro das substâncias que elas formam. Faz sentido, portanto, definir que a temperatura de um corpo seja uma medida da energia de movimento dessas moléculas. E aqui tempos o primeiro problema: como há um número gigantesco de moléculas num corpo macroscópico qualquer e como cada uma delas tem uma velocidade diferente, como dizer qual deve ser a “molécula-padrão” para aferirmos a temperatura?
Felizmente, os físicos perceberam que quando queremos medir uma propriedade observável de uma quantidade tão gigantesca de qualquer coisa, podemos usar o valor médio dessa propriedade sem perda de generalidade. Ou seja, não importa se algumas moléculas de água dentro de um copo estão quase paradas enquanto outras estão se movendo muito rápido, contanto que a grande maioria delas apresente mais ou menos a mesma velocidade. E é este valor médio que vamos usar para aferir a temperatura.
Tudo muito bem, tudo muito bom até aqui. Mas uma pergunta se faz imediatamente: é possível pensar num valor mínimo de energia de movimento para moléculas e átomos? Um valor para o qual todo o movimento cessaria? Foi justamente este raciocínio que levou William Thomson, Lorde Kelvin, a criar a escala termométrica absoluta que leva o nome de seu título de nobreza. Na escala Kelvin, esse ponto de menor energia de movimento possível foi chamado de Zero Absoluto, e equivale mais ou menos a -273 °C em nossa escala Celsius de todos os dias.
Ora essa, mas se a escala Kelvin é absoluta e tem seu ponto zero quando as partículas estão em seu menor valor de energia de movimento, o que diabos é isso de temperatura absoluta negativa de que estávamos falando? Aí entra em cena (sempre ela) a mecânica quântica, com uma ajudinha da Entropia.
O raciocínio que desenvolvemos acima vale para sistemas em que se pode ter valores arbitrariamente grandes de energia de movimento. Pegue uma amostra de gás, por exemplo: podemos aquecer o gás à vontade, podemos acelerar suas partículas constituintes até quase a velocidade da luz. Não há limite superior previsto para sua energia de movimento. Mas há alguns sistemas estritamente quânticos que possuem tal limite. Uma coleção de átomos enfileirados num fio, cada um girando como um pião (se me permitem a liberdade linguística), estão orientados de acordo com o sentido desse rodopio. Alguns vão girar no sentido horário, outros no sentido anti-horário. Como cada sentido de rodopio representa um grau de liberdade de movimento para os átomos, e como é possível atribuir uma energia de movimento para cada um desses graus de movimento, este é um exemplo de sistema em que há uma energia mínima (todos os átomos rodopiam “para baixo”, no sentido horário) e uma energia máxima (todos os átomos rodopiam “para cima”, no sentido anti-horário).
E aqui vem o pulo do gato: pela definição formal, esses dois extremos de energia possuem entropia mínima. Faz sentido, se lembrarmos que popularmente a entropia é entendida como uma medida da “arrumação” de um estado microscópico. Existe uma infinidade de maneiras de arrumarmos uma grande quantidade de átomos com rodopios para cima ou para baixo, mas apenas uma maneira de arrumar todos os átomos rodopiando para cima e apenas uma maneira de arrumar todos os átomos rodopiando para baixo. Ocorre que em qualquer sistema, a entropia, a temperatura e a energia estão interligadas – a taxa de variação de entropia com respeito à energia é igual ao inverso da temperatura. Em português, isso significa que, se a energia aumenta e a entropia aumenta, a temperatura é positiva. Mas, se em algum momento a entropia atingir um valor máximo e ainda for possível aumentar a energia interna do sistema – girar o sentido do rodopio dos átomos no fio, por exemplo – então a temperatura absoluta assume um valor negativo. De fato, pelas estritas regras matemáticas que governam o fenômeno, tudo se passa como se a temperatura atingisse um valor infinitamente quente, para então “dar a volta” e aparecer com sinal negativo, aproximando-se de novo do Zero Absoluto. A temperatura absoluta negativa é, de certa forma, mais quente do que infinitamente quente e, se for possível colocar um sistema térmico com temperatura negativa em contato com um sistema com temperatura positiva, o calor vai fluir do primeiro sistema para o segundo.
Este é um efeito puramente quântico e que depende de condições muito específicas. Vale notar que a temperatura absoluta negativa aqui não é a grandeza macroscópica com a qual estamos acostumados em nossos termômetros, mas uma aferição limitada a determinados graus de liberdade de movimento de um sistema térmico. O fenômeno é conhecido há bastante tempo, aliás, e o que os pesquisadores alemães alegam ter conseguido foi uma técnica diferente. Aparentemente, o sistema deles vai ser interessante para estudar outros estados exóticos da matéria, como um gás com pressão negativa e por aí afora.
E no nosso mundo cotidiano, especialmente no verão carioca, a temperatura segue alta, mas menor do que infinita… por mais que não pareça!