Brasil

De passaportes e de leis

por Carlos Orsi (21/01/2013)

Em termos de evolução da liberdade religiosa nós estamos perdidos entre os séculos XVI e XVIII

Valdemiro e sua senhora

“Todos os homens serão livres para professar e, por meio de argumentos, defender suas opiniões em questões de religião, e essas opiniões de modo algum irão diminuir, aumentar ou afetar suas capacidades civis”.

A frase acima não é de nenhum neoateu radical, mas faz parte do Ato de Estabelecimento da Liberdade Religiosa da Virginia (EUA), proposto por Thomas Jefferson em 1779, mas aprovado apenas em 1786. A redação avança, em alguns pontos importantes, para além de outra peça histórica de legislação sobre liberdade religiosa, o Édito de Torda, assinado pelo rei João Sigismundo da Transilvânia em 1568: “Nenhum dos superintendentes ou outros abusarão dos pregadores, nem ninguém será desprezado por sua religião por ninguém, de acordo com os estatutos, e não se permite que ninguém ameace quem quer que seja, com a prisão ou perda de cargo, por causa de seus ensinamentos”.

O Édito de Torda veda a perseguição religiosa, e o faz de forma limitada: a íntegra do decreto deixa claro que a liberdade garantida ali é limitada aos pregadores do cristianismo; já o texto de Jefferson fala de “opiniões religiosas”, o que inclui do paganismo ao ateísmo e à adoração de deuses astronautas ou de LOL Cats, e veda também o privilégio religioso: ele proíbe não só que o Estado prejudique uma pessoa por conta de sua fé (ou ausência de), mas também que a privilegie: “Essas opiniões de modo algum irão diminuir, aumentar ou afetar suas capacidades civis”.

O que a concessão desbragada de passaportes diplomáticos pelo Itamaraty a líderes religiosos, sejam prelados católicos ou empresários do televangelismo, mostra, portanto, é que em termos de evolução da liberdade religiosa nós, brasileiros, estamos perdidos em algum ponto do caminho entre os séculos XVI e XVIII.

Não que o caminho seja fácil: a lei de Jefferson levou quase dez anos para ser aprovada, e antes que ela passasse outro grande líder histórico da luta pela separação entre Estado e religião, James Madison, teve de se bater contra uma peça legislativa que buscava criar, na Virgina, um imposto para garantir o sustento dos disseminadores da religião cristã (levando-se em conta que o passaporte diplomático sai do dinheiro dos contribuintes… Bom, deixa pra lá).

Na luta contra a lei do imposto cristão, Madison redigiu seu épico Memorial e Advertência contra Taxações Religiosas, texto que, temo, em breve terá de ser traduzido, adaptado para a realidade local e lido em voz alta nas casas legislativas do Brasil, supondo-se que seja possível encontrar algum político com tutano para fazê-lo. Escrito do ponto de vista de um cristão e dirigido a outros cristãos, ele constrói um caso meticuloso contra a subvenção pública da atividade religiosa: “Um governo justo (…) será melhor sustentado ao proteger cada Cidadão no desfrute de sua religião com a mesma mão igualitária com que protege sua pessoa ou sua propriedade; ao nem violar os direitos iguais de uma seita, e nem permitir que uma seita viole os de outra”.

Numa passagem mais inflamada, Madison compara a subvenção pública da religião a uma forma de perseguição: “[O imposto] degrada, da igualdade entre os cidadãos, todos aqueles cujas opiniões a respeito de religião não se dobram às da autoridade legislativa. Distante como possa ser, em sua forma atual, da Inquisição, difere dela apenas em grau.”

Alguém poderia se sentir tentado a reduzir a questão a um simples problema de democratização do privilégio. Essa é uma solução bem brasileira — nas palavras de Millôr Fernandes, “ou se instaura a moralidade, ou nos locupletemos todos”.

Em resumo: se rolar um passaportezinho de primeira classe para todos os pastores, todos os bispos, pais-de-santo e monges budistas, para as lideranças GLBT, para os presidentes das LiHS e da ATEA e (por que não?) para este blogueiro e sua senhora, não ficaríamos todos numa boa?

Não, não ficaríamos. A função do passaporte diplomático é facilitar o trânsito internacional de pessoas que representam oficialmente o país, não comprar a boa vontade dos líderes de grupos de pressão organizados. Devia ser óbvio. Pena que, pelo jeito, não é.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.