Comportamento

Mais ciência sobre armas, por favor

por Carlos Orsi (29/01/2013)

O Brasil tem 10% das armas dos EUA, mas uma taxa de homicídios com armas de fogo seis vezes maior

Treinamento de tiro

— Mulher treina tiro em Missouri, EUA (Ashley Jost/Index) —

A questão da posse (e porte) de armas de fogo pela população civil é uma que causa grandes paixões dos dois lados do debate. Como costuma acontecer com todo grande problema polêmico de política pública, as posições costumam preencher um amplo espectro que vai do apelo aos princípios ao apelo às consequências.

Nos dois extremos, a coisa tende a assumir um aspecto que é muito bem definido pela frase latina fiat justitia ruat caelum, “faça-se a justiça mesmo que o céu caia”: a busca inflexível por princípios a despeito das consequências está na base de muita tragédia grega; já a preocupação extremada com consequências pode levar à conclusão de que a prisão ideal é também a sociedade ideal, onde cada um tem sua cela própria, a comida e o tratamento médico são garantidos e, não menos importante, os uniformes listrados evitam qualquer tipo de ostentação de desigualdade social.

No caso da posse de armas, os princípios em jogo parecem ser o da autonomia do indivíduo (cabe ao cidadão maior de idade decidir o que é melhor para si) e da autodefesa (toda pessoa tem o direito de lutar para proteger a própria vida); no campo oposto, há o princípio de que a vida humana é sagrada e, portanto, coisas feitas para eliminar seres humanos são abominações que não deveriam existir.

A menos que estejamos dispostos a defender esses princípios até que “o céu caia”, no entanto, é fácil ver que eles têm limites — por exemplo, se eu concluir que “o melhor para mim” é ter um tanque de gás sarin guardado no banheiro, as autoridades provavelmente estarão autorizadas a discordar, e com veemência.

Quanto à dedução, por princípio, de que armas de fogo não deveriam existir, há uma pensata interessante de Sam Harris a respeito, mas, em resumo: elas existem, então temos de lidar com elas. E, se não existissem, ainda teríamos dentes, unhas e músculos, assim como martelos, pernas de cadeira e chaves de fenda.

O limite de um princípio nasce das consequências de sua aplicação, e o que torna a questão das armas especialmente complexa é que as consequências não são lá muito claras.

As campanhas por desarmamento voluntário no Brasil costumam apelar para histórias dramáticas de vítimas de acidentes com armas de fogo ou de brigas tolas, onde a presença da arma transformou o que seria, no máximo, um olho roxo num homicídio. Por mais deploráveis e chocantes que sejam esses eventos, no entanto, é sempre importante lembrar que uma simples enumeração de casos isolados não equivale a um conjunto de dados estatisticamente válidos. Ou, na frase de efeito que funciona melhor em inglês, the plural of anecdote is not data.

Mas, então, onde estão os dados? O DataBlog, do jornal britânico The Guardian, criou uma tabela com uma série de informações sobre posse de armas e taxas de homicídio entre vários países do mundo. Há muitas nações para as quais faltam dados mas, entre as que têm informação completa, as disparidades são notáveis.

Por exemplo: os Estados Unidos são o país mais armado do mundo, com uma média de 89 armas para cada 100 habitantes. Em compensação, sua taxa de homicídios praticados com arma de fogo, ajustada pelo tamanho da população, é baixa — menos de 3 — bem menor, por exemplo, que a de países muito menos armados, como Brasil (8 armas por 100 habitantes, taxa de homicídio 18) e África do Sul (12,7 armas por habitante, taxa de homicídio 17). O país mais armado da América Latina é o Uruguai, com 32 armas para cada 100 habitantes, e sua taxa ajustada de homicídios com arma de fogo é, assim como a americana, menos de 3.

Resumindo, o Brasil tem 10% das armas dos EUA, 25% das armas do Uruguai, mas uma taxa de homicídios com armas de fogo seis vezes maior que a desses dois países. De fato, nos 12 dos 15 países mais armados do mundo para os quais há dados completos na tabela do Guardian, a taxa de homicídio por arma de fogo fica abaixo de 1. As únicas exceções são os já citados EUA e Uruguai.

Então a solução é armar a população “de bem” para assim acabar com o crime? Não exatamente. A Inglaterra, que tem uma das leis de posse de armas mais restritivas do mundo — até mesmo policiais precisam de autorização especial para carregar armas — tem uma taxa de homicídio por arma de fogo quase vestigial, de 0,07. O Japão, com uma proporção de 0,6 arma por 100 habitantes, tem uma taxa ainda menor, de 0,01.

Dos 15 países de menor taxa de homicídio com armas de fogo para os quais há dados completos, dez têm menos de 10 armas por 100 habitantes, sendo que três deles têm menos que uma arma por 100 habitantes. As exceções mais evidentes são Islândia (zero homicídio, 30,3 armas), Noruega (0,05 homicídio, 31,3 armas) e França (0,06 homicídio, 31,2 armas).

Usando os dados do jornal britânico para comparar os números de países onde havia dados disponíveis tanto para taxa de homicídio relativa à população quanto para a taxa de posse de armas por 100 habitantes (108 de um total de 185), obtive o seguinte gráfico:

Gráfico

O coeficiente de correlação, caso alguém esteja se perguntando, é fracamente negativo: -0,102, o que sugeriria, de modo muito leve, que mais armas estariam, de algum modo, ligadas a menos mortes. Dada a disparidade das fontes de informação e a necessidade de cortar quase 40% da amostra, por conta dos dados incompletos, a conclusão torna-se duplamente fraca. Daí, a necessidade de se fazer mais ciência a respeito.

O que nos traz a uma notícia curiosa: no fim da semana retrasada, mais de 100 cientistas americanos assinaram uma carta pedindo maior financiamento público de pesquisas sobre violência causada por armas de fogo. De acordo com pesquisadores do Crime Lab da Universidade de Chicago, estudos na área têm sido bloqueados por “questões políticas”.

De acordo com a nota, um movimento parlamentar contra esse tipo de estudo se formou em meados dos anos 90, quando o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) passou a tratar a questão da violência por armas de fogo como um “problema evitável de saúde pública”, o que causou forte reação no lobby pró-armamentos. A partir daí, a liberação de verbas para o CDC ficou condicionada à cláusula de que o dinheiro “não poderia ser usado para defender o controle de armas”.

Isso é mais ou menos como dizer que a verba destinada às pesquisas sobre bactérias não pode ser usada para defender o uso de antibióticos. O que a norma faz é vetar, de antemão, uma conclusão a que estudos cuidadosos poderiam chegar, de forma honesta. Não é assim que a confusão que cerca o debate vai se resolver.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.