Autor inédito no Brasil, Trevor assume o compromisso de celebrar a vida como ela é, em suas alegrias e tristezas, e dar voz ao cidadão comum.
“Usaria qualquer coisa para contar uma história, qualquer coisa que a fizesse funcionar”. É o que dizia William Trevor (1928- ) em entrevista ao The Guardian em setembro de 2009, vinte anos após um silêncio quase intransponível que o manteve à distância dos holofotes literários e midiáticos. Sua última entrevista significativa havia sido em 1989, quando uma impressionada repórter do Paris Review o interpelava acerca de sua extraordinária capacidade para criar diferentes personalidades em seus personagens, uma característica que, não se sabe se por falta de melhor definição ou por ser, de fato, o adjetivo mais certeiro, chamou simplesmente de “diabólica”. Dizia Mira Stout, a entrevistadora: “Como você pode saber tanto sobre como essas pessoas vivem? Parece com um ventríloquo que projeta sua voz em qualquer coisa”. A resposta foi ao mesmo tempo uma síntese de sua própria obra e de sua forma de trabalho: “Ora, parece-me que a única maneira de chegar lá é através da observação. Escritores registram tudo, lembram-se de pequenos detalhes. É uma forma de estar constantemente lembrando”.
Pode-se dizer que ler William Trevor é isso mesmo: um exercício do olhar. Ser leitor de seus livros é ser um pouco detetive, analista, ater-se às pequenas minúcias. É mirar através de uma lente de aumento a realidade cotidiana dos desafortunados, nua e crua. Wiliam Faulkner, o nobelizado de 1949, dizia que o elemento essencial para todo escritor é a observação. Outras duas categorias também figuram como fonte de inspiração e matéria-prima: imaginação e experiência. Em geral, uma delas será a mais desenvolvida, ocupando lugar de destaque na complexa genética literária que decidirá os rumos da prosa de cada autor. Tivesse conhecido William Trevor, certamente Faulkner seria impelido à criação de uma quarta categoria para aqueles que, dotados de criativa sensibilidade, ostentam a rara habilidade de equilibrar imaginação, experiência e observação.
Há um paralelo possível com outros escritores já consagrados no Olimpo da literatura, sobreviventes ao teste do tempo – como Anton Tcheckov. As ruas da Rússia czarista tomam a forma do Reino Unido contemporâneo que, passados cem anos, padece dos mesmos dilemas. A transposição dessas questões para outra cultura e outra época levanta uma questão importante: ao contrário do que apregoa nossa frenética era tecnicista, a história parece locomover-se em slow motion no que concerne aos valores humanos. Trevor assume o compromisso de celebrar a vida como ela é, em suas alegrias e tristezas, e dar voz ao cidadão comum. Por isso é, de fato, um contador de histórias. Seus personagens não corroboram o arquétipo do romance pós-moderno: o indivíduo atormentado por uma existência sem sentido que busca em seu próprio relato uma ressignificação para sua vida. Não. Para Wiliam Trevor os dilemas são produto da história. Ele afirma: “Minha ficção pode, vez ou outra, lançar luz sobre aspectos da condição humana, mas eu não o faço conscientemente: sou um contador de histórias”.
Mas em que momento a literatura contemporânea esqueceu-se dessas vozes para ater-se a imbróglios intelectuais sem fim? Não é que os personagens de Trevor sejam desprovidos de profundas preocupações existenciais. Eles estão, antes, preocupados com o emprego inexistente, com a visita iminente de um abusador sexual ao orfanato, com o que comer. Como a Rússia de Tcheckov, a Inglaterra de Dickens e o Brasil do século XXI.
Irlandês de nascimento, corpo e alma, o autor vive na Inglaterra desde 1954. Mas não trilharia desde cedo o caminho das letras. Seu primeiro romance veio apenas em 1964, aos trinta e seis anos de idade, após flertar com a carreira de escultor durante boa parte de sua juventude. Com o nascimento de seu primeiro filho e as dificuldades financeiras Trevor abandonou a escultura e arrumou trabalho escrevendo anúncios para empresas de publicidade, sempre prestes a ser mandado embora. “Eu era extremamente ruim”, diz. Foi nessa época que passou a escrever suas primeiras histórias, acompanhado de sua fiel máquina de escrever e doses cavalares de chá – para nunca mais parar.
O início de sua formação literária foi essencialmente através das ficções de mistério e histórias de detetive. Aos dez anos queria escrever thrillers, mas a ideia de se tornar um escritor ficou suspensa durante mais de duas décadas até o lançamento de The old boys. Antes disso Trevor havia publicado A standard of behavior, romance hoje renegado pelo próprio autor, escrito para aumentar a renda em um período de grande pobreza. Mas com a visibilidade de The old boys e as publicações seguintes finalmente pôde concentrar seus esforços exclusivamente naquilo que era sua verdadeira vocação: a escrita.
O recluso contador de histórias surpreende ao conduzir com maestria histórias que poderiam facilmente enveredar pelos caminhos do melodrama nas mãos de um escritor incauto. A narrativa tende a mostrar a que veio desde o início. Assim começa Death in summer: “Após o funeral, o intervalo que a tragédia trouxe toma uma diferente forma.” Dois capítulos mais tarde somos apresentados a Pettie, a amarga protagonista, e por meio da prosa límpida de Trevor já é possível identificar os desarranjos mentais que culminarão no evento central do romance.
Em 2012 foi um dos principais nomes na sempre acirrada disputa pelo Nobel de literatura. A casa de apostas Ladbrokes, reduto de jogadores que ano após ano apostam generosas quantias de dinheiro no nome dos possíveis ganhadores, tinha o nome de William Trevor alçado ao topo da lista, atrás apenas de Mo Yan, o contestado vencedor, e do superstar japonês Haruki Murakami. Vale ressaltar: o Nobel nunca revela quem são seus concorrentes, o que torna as possibilidades bastante amplas e um terceiro lugar ainda mais admirável.
Ainda que o público brasileiro não esteja familiarizado com seu nome, podemos encontrar edições em português para alguns de seus livros. Portugal possui algumas disponíveis, como A viagem de Felícia e Amor e verão (traduzidos do original por José Miguel Silva e Isabel Castro Silva, respectivamente). No estrangeiro, no entanto, Trevor já é figura respeitada há muitos anos. Tendo recebido inúmeros prêmios por seus romances, o autor faz maior sucesso justamente nas narrativas curtas – sendo considerado por muitos o maior contista vivo. Uma rápida busca no site Goodreads revelará o fato: os maiores escores de William Trevor são suas coletâneas, em especial After Rain, de 1996.
Quanto a nós, brasileiros, seguimos na expectativa por algum de seus trabalhos. E que a sua influência seja salutar para uma geração habituada a conflitos interiores e que almeja atacá-los em suas origens socioculturais mais profundas. Não importa o século e a localização geográfica do problema em questão. Importa registrar nas páginas da história os porquês e os comos de nossas falhas na tentativa de extirpá-los, e que a literatura seja capaz de denunciar a realidade sem pudores. Como dizia Walter Benjamin: todo documento de cultura é um documento de barbárie.