Livro sobre a cientologia levanta a questão do quanto as democracias ocidentais estão dispostas a tolerar em nome da “liberdade de religião”
A imagem dos profetas fundadores de religiões parece melhorar com a distância. Zoroastro e Moisés são quase universalmente reverenciados como grandes sábios; Jesus e Maomé, que chegaram mais tarde, têm lá seus críticos ferozes, mas no geral comandam amplo respeito – em certas partes do mundo, de fato, é crime falar mal dessas augustas personagens. Já Joseph Smith, que fundou o mormonismo no século 19, não é levado a sério por ninguém de fora de sua igreja: de acordo com a mais influente biografia já publicada, No Man Knows My History, de Fawn McKay Brodie e Peter Dimock, ele era um estelionatário que acabou acreditando nas próprias lorotas.
Esse princípio – de que, quanto mais próximo de nós na história está o profeta, pior ele parece – é confirmado, com honras, pela história de Lafayette Ronald (“L. Ron”) Hubbard, prolífico escritor da Era de Ouro da ficção científica norte-americana, criador da técnica de autoajuda conhecida como Dianética e, depois, da Igreja da Cientologia.
O livro A Prisão da Fé, de Lawrence Wright, publicado no Brasil ano passado pela Companhia das Letras, é menos uma biografia de Hubbard que uma história da igreja que ele fundou e da ligação umbilical dessa igreja com as celebridades de Hollywood. O fio condutor de boa parte da narrativa é a jornada pessoal do cineasta canadense Paul Haggis, ganhador de três Oscars (dois de roteiro e um de diretor) de fiel cientologista a apóstata da fé.
Tendo Haggis como bússola, Wright, jornalista da revista New Yorker, produziu um livro cheio de interessantes anedotas sobre Tom Cruise e John Travolta, dois atores que também são devotos cientologistas, e foi possivelmente de olho no público ávido por fofocas de cinema que a editora brasileira estampou na capa o blurb “Cientologia, Celebridades e Hollywood”. Mas o livro contém muito mais que isso.
Primeiro, o perfil de Hubbard, que ocupa a parte inicial do livro. Wright investiga vários dos mitos que Hubbard construíra para si – inclusive o de que havia sido herói da Marinha durante a 2ª Guerra Mundial – e descobre que há muito pouca substância em cada um deles. Do relato, fica a forte impressão de um homem apavorado com a ideia de se mostrar incapaz de viver à altura das próprias expectativas e que, por isso, escolheu tecer uma teia de mentiras – para si mesmo e para os outros. Um homem psicologicamente desequilibrado, que detestava psiquiatras, um mitômano que, quando via sua tessitura de falsidades ameaçada, transformava-se num tirano ciumento e paranoico.
O livro cita longamente da chamada “autobiografia secreta” de Hubbard, uma série de aforismos confessionais que teriam sido escritos pelo fundador da Cientologia no fim dos anos 40. Quando esse documento veio à tona, a igreja inicialmente tentou suprimi-lo, declarando-o “privado”, mas a posição atual da instituição, segundo Wright, é de que Hubbard nunca escreveu o texto. De qualquer forma, eis alguns trechos: “Sei escrever”. “Minha mente ainda é brilhante”. “Masturbação não é pecado ou crime”. “Você nunca ilustra o que está dizendo com histórias inventadas”. “Você não teme o que qualquer mulher pode pensar sobre sua conduta na cama”. E assim por diante.
Segundo, há a exposição da cosmologia “secreta” da igreja – o mito de Xenu, o ditador galáctico que usou bombas H para explodir vulcões na Terra e eliminar bilhões de rebeldes que haviam sido capturados em todo seu império, graças aos esforços de psiquiatras e fiscais de renda (duas categorias profissionais pelas quais Hubbard nutria muito pouco apreço). As almas desses rebeldes, infestando os corpos dos habitantes da Terra, seriam as causas de todos os problemas mentais da humanidade.
O terceiro ponto de interesse é a descrição minuciosa do uso da máquina da Cientologia para destruir vidas – começando pelo caso, já clássico, de Paulette Cooper. Autora da primeira grande reportagem investigativa sobre a igreja, intitulada The Scancal of Scientology, Cooper foi impiedosamente perseguida por membros da igreja. Citando Wright: “Foi seguida, grampearam seu telefone, abriram dezenove processos contra ela. Seu nome e número de telefone eram escritos em banheiros masculinos (…) Uma mulher, imitando a voz de Cooper, fez ameaças ao secretário de Estado Harry Kissinger e ao presidente Gerald Ford numa lavanderia Laundromat, e um cientologista que por acaso estava presente informou o FBI”. Ela acabou indiciada por crime federal e perjúrio. Anos mais tarde, uma batida do FBI em escritórios da Cientologia revelou documentos que comprovavam que a igreja havia orquestrado uma “Operação Apavorar” com o objetivo de fazer Cooper ser presa ou internada como louca. Eles quase obtiveram sucesso: ela entrou em depressão grave.
E também há a descrição de como a igreja destrói muitos seus fiéis: submetendo-os a humilhações, trabalho em condições degradantes, violência psicológica e, até mesmo, física. Nos trechos em que aborda esses casos, assim como nos que tratam das relações entre a igreja e celebridades, o livro assume uma característica quase kafkiana: enquanto o texto principal apresenta depoimentos de vítimas, testemunhas, cita documentos apresentados em ações judiciais, as notas de rodapé enunciam, metodicamente: “os advogados do Sr. Cruise negam que tal evento tenha ocorrido”, ou “A igreja nega que tal prática exista”. O leitor se vê, de repente, confrontado por duas realidades paralelas.
A Prisão da Fé traz, ainda, um perfil do atual líder supremo da Cientologia – que ascendeu após a morte de Hubbard – David Miscavige. A impressão geral que fica é a de um homem com as mesmas limitações e patologias de Hubbard, e nenhuma de suas qualidades, como carisma e imaginação.
É perfeitamente possível ler o livro de Wright como a denúncia de uma instituição específica, suas práticas e métodos, mas ele abre, também, espaço para uma denúncia maior, e mais grave: o tanto que as democracias ocidentais estão dispostas a tolerar em nome da “liberdade de religião”. Hubbard lutou muito para ver sua igreja reconhecida como tal – por causa das isenções fiscais, mas também por causa do manto de imunidade constitucional que recais sobre toda religião organizada.
Foram apelos à liberdade religiosa que salvaram a Cientologia de ser financeiramente extinta quando uma ex-fiel, que se sentiu fraudada, buscou reparação pecuniária na justiça, nos anos 80. E foi a “liberdade religiosa” que permitiu que a igreja submetesse centenas – milhares? – de fiéis a “penitências” que nada mais eram que turnos exaustivos de trabalho em condições de fazer corar a bancada ruralista. As descrições dessas penas foram, ao menos para mim, os trechos mais penosos de ler, construídos com base em depoimentos de vítimas.
Em tempos recentes, alguns historiadores a antropólogos têm argumentado que os chamados “cultos” – ou “novos movimentos religiosos”, nome que inclui manifestações como a Cientologia ou a Igreja da Unificação, de Sun Myung Moon – são criticados não por serem abusivos ou absurdos, mas por serem novos. Afinal, por que ETs armados com bombas H seriam mais absurdos que anjos com espadas de fogo? E qual igreja garante plenos direitos trabalhistas ao clero e aos leigos voluntários? Leigos voluntários, afinal, são “voluntários”, certo? Quanto a cortejar celebridades, não nos esqueçamos de que a primeira grande vitória do cristianismo foi a conversão de um imperador romano.
O livro de Wright não levanta, e nem pretende levantar, questões assim, mas estas foram as perguntas que me acompanharam durante toda leitura: será que Hubbard não nos parece tão pequeno, falso e infeliz apenas porque estamos muito mais perto dele, na história, do que dos fundadores de seus grandes concorrentes? E será que sua igreja é realmente tão mais mesquinha, manipuladora e mercenária do que as outras – ou apenas muito mais nova?
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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