Dimensões de um rolé

Mais cedo ou mais tarde, acabaria aparecendo uma nova discussão interminável sobre os subterrâneos das relações sociais no Brasil.

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Desde o fim do ano passado tenho tido vontade de abordar o fenômeno do rolezinho, que tomou de assalto (sem trocadilho) os jornais e as redes sociais, até mais do que os shopping centers em que acontecem. No mínimo, a comoção em torno do rolezinho é mais uma guinada na série de novidades da esfera pública no Brasil desde junho, ou mesmo antes. Só por isso, o rolezinho, ou melhor, o “caso rolezinho” – para incluir aí toda a mitologia que se formou em torno dele – é algo interessante. Que adolescentes, particularmente nas periferias, gostam de shopping não é novidade para ninguém. Que a internet, sobretudo Facebook e quetais, permite agregar muita gente em muito pouco tempo, tampouco se descobre agora. Que uma linha imaginária divide os espaços de circulação nas cidades brasileiras, menos ainda. Qual é o interesse, então?

É que, de repente, tudo isso aparece junto, numa mistura de provocação involuntária com manifestação de empoderamento. Gera reações de pavor, de prepotência judicial, de (mais uma vez!) violência policial, de gozo acadêmico. Mexe com o desejo e o imaginário de todo tipo de gente e atinge em cheio vários elementos críticos da vida que a gente vai levando (mesmo com todo o problema, todo o sistema, toda Ipanema) no Brasil. O que era simplesmente rolezinho torna-se “caso rolezinho”. Deixa de ser mais um exemplo de como a pirâmide social está se deslocando no Brasil e torna-se agente desse deslocamento, num plano muito mais profundo (e perigoso): aquilo que começou como diversão involuntariamente subversiva já está se tornando forma voluntária de afirmação de uma subjetividade social (e política, claro).

Mais cedo ou mais tarde, acabaria aparecendo uma nova discussão interminável sobre os subterrâneos das relações sociais no Brasil, incluindo não só o fosso social (o simbólico, cada vez mais preponderante sobre o real), mas também a atuação dos magistrados, a ação da polícia, a gramática da intervenção de políticos e comentaristas da imprensa. Mas é notável como uma única palavra, um diminutivo digno de Vinícius, condensou tanta coisa em tão pouco tempo (e espaço)!

Mas o que me motivou a finalmente sentar e escrever alguma coisa sobre o “caso rolezinho” (de rolé se você for carioca, de rolê se for paulista) foi a seqüência que começou com a surpresa em Guarulhos; chegou à liminar do Itaim; passou pelas imagens de policiais paulistas recolhendo garotos (que, até onde se sabe, não cometeram crime algum), como se fossem conduzi-los para um campo de concentração; e chegou à comparação quase auto-evidente com o apartheid. Algo me incomoda nessa história de apartheid. Não deixa de ser uma boa analogia, mas é muito insuficiente. Por dois motivos: primeiro, o campo da analogia é só um bom começo, nada mais: “isto é horrível, porque lembra aquilo, que já concordamos ser horrível”. Só que também é um terreno muito confortável: “denunciamos a semelhança da realidade brasileira com um caso internacional famoso. Agora podemos tocar a vida”. Segundo, e por causa disso, essa analogia tem o defeito de obliterar a riqueza de fluxos dos quais essa seqüência rolezinho-pavor-liminar-repressão-indignação é um nódulo. Como resultado, uma cadeia poderosa de ação e reação aparece como um bloco de realidade estanque, sem quê nem por quê, fechado em seu lugar do mundo, imutável e inescapável. Se pararmos por aqui, estamos a um passo do fatalismo e do conformismo.

Por isso, valeria a pena organizar alguns elementos da querela. Primeiro: o fato de que esta disputa em torno do rolezinho se segue à seqüência de um ano agitadíssimo no Brasil, com manifestações de rua, caso Amarildo, conflitos com a polícia, disputas de pauta política: isso quer dizer algo ou é coincidência? Onde está ou deixa de estar o teor político do “caso rolezinho” (ou até do próprio rolezinho)? Só lembrando que, enquanto acontecia só em Guarulhos e Itaquera, as notícias eram colocadas debaixo da dobra. Depois é que virou manchete…

Segundo: apartheid? Tudo bem, mas a diferença pode ser mais reveladora que a semelhança. O apartheid era um sistema de segregação bastante explícito, fundado sobre uma ordem política muito evidente e mediada por uma legislação inequívoca. No Brasil há quem queira até mesmo discutir se o racismo existe… Mas quando as relações recalcadas vêm à tona, como no “caso rolezinho” (mais especificamente, da repressão ao rolezinho), as manifestações simbólicas, as expressões verbais e a linguagem das liminares é que falam mais claramente sobre o que está em jogo no país. Uma segregação não escrita é muito diferente de uma escrita e talvez seja mais perniciosa.

Terceiro: o “caso rolezinho” é incompreensível se não entendermos que o rolezinho acontece em shopping centers. Shopping Centers! É um fenômeno urbano, que diz respeito a cidades brasileiras construídas de uma maneira muito particular. Nelas, a circulação é excludente e o comércio tende cada vez mais a uma restrição espacial que é, também, uma modalidade de controle dos fluxos: questão cibernética e econômica, tudo bem. Mas, a rigor, ainda mais social e, no limite, política. O problema da urbanização brasileira se mostra em todo o seu caráter explosivo no “caso rolezinho” e isso também precisa ser discutido, sobretudo quando o modelo de fortificação do comércio (sim, shoppings são fortalezas, muito mais que templos, embora fortalezas sejam templos), destinado na origem a manter em segurança a elite contra a periferia, está sendo replicado na periferia também: quem é o segregado dos shoppings de Itaquera? Quem é o segregador?

Quarto e talvez mais importante: o desejo, o desejo, o desejo. Tudo que acontece no plano da vida em comum (sim, habitamos o mesmo território e circulamos na mesma economia: temos uma vida em comum!) é ambíguo e equívoco. Nos últimos dez anos, o Brasil atravessou um enorme processo de, como se costuma dizer, “inclusão”. Incompleto e falho, sem dúvida. A principal crítica que se faz a esse processo é dizer que foi uma inclusão “apenas pelo consumo”. Crítica justa, claro. Mas com um limite que precisa ser explicitado e explorado: é a “inclusão pelo consumo” numa “sociedade do consumo”. O que isso quer dizer? É uma inclusão, então, no coração do sistema? Talvez o “caso rolezinho” ajude a entender isso um pouco melhor.

Um quinto ponto poderia ser o uso da mídia digital como forma de mobilização e coesão, o conceito de “flash mob” e assim por diante, mas é melhor deixar isso para outra hora.

1. Do bumba ao shopping

Para muitos, o rolezinho é essencialmente político, desde a primeira convocação até o último refrão de Daleste entoado em coro diante do Giraffas. É sinal de que o fogo de junho não se apagou, se me permitem uma frase cafona. Será mesmo? Uma maneira de levantar este ponto seria perguntando assim: que argumento poderia ser forte o suficiente para afastar a ideia de que é coincidência que o “caso rolezinho” venha ao final de um ano marcado por: luta contra o aumento da tarifa de transporte público; mobilização no caso Amarildo; luta dos professores por um plano de carreira; rejeição do teleférico na Rocinha, em nome de saneamento; protesto contra o massacre na Maré; resistência a remoções em Jacarepaguá e na Mangueira; revolta contra policiais que assassinaram um adolescente em Guarulhos, e assim por diante? Como é que o rolezinho se encaixa nisso tudo?

Como bem explica este excelente texto (excelente, mas deixa passar o desenvolvimento do assunto para muito além dos primeiros rolezinhos; entraram em ação a polícia, o judiciário e alguns movimentos sociais, não é pouca coisa), o rolezinho em si não é uma manifestação com intenções políticas. Pelo menos na origem. Um evidente subtexto político está surgindo agora, depois de tudo o que aconteceu – (exemplo), mas isso não altera em retrospecto o sentido do “flash mob da periferia”, como andam dizendo. A exceção fica por conta daquele episódio no Rio Sul, mais de década atrás, que não tem relação direta com o que está acontecendo agora. Restaria afirmar que o gesto em si já é político, no sentido de que dizer-se consumidor numa sociedade de consumo que lhe nega o acesso até mesmo a essa categoria é um ato de palavra e de potência, que produz a exigência de uma reconfiguração do quadro de forças numa sociedade. Sobre isso, remeto a outros textos.

Mesmo assim, isso tem pouco a ver com todos aqueles episódios anteriores de que falei, a não ser pelo fato de que, desde junho, o país inteiro está com os pelos eriçados, procurando sinais da próxima perturbação nesse nosso sistema tão falho. E o “caso rolezinho” veio bem a calhar nesse ambiente de expectativa. Não ouso dizer que a explosão de pulsões que tomou conta do país no ano passado tenha “inspirado” grupos de jovens a experimentar grandes eventos no shopping. Prefiro sugerir uma abordagem pelo ângulo da dimensão que o tema tomou na esfera pública: imprensa, redes sociais, conversas de bar, reuniões políticas, judiciário, executivos estaduais, academia. Falar não do rolezinho, mas do “caso rolezinho”, me parece mais fecundo.

Depois que aumentos de passagens foram revogados, ainda em junho, e depois que a dinâmica política mais ampla se perdeu (“a extrema direita vai seqüestrar as pautas – sim ou não?”), aquele surto de mobilização no país pareceu ter se acalmado. Deixou de ser assunto: no Rio, a pauta ficou muito concentrada na figura do Cabral, embora o que está em jogo seja infinitamente mais amplo do que o rosto de um político; o fenômeno dos Black Blocs desviou inteiramente o foco daquilo que realmente importava e nos colocou numa discussão anódina sobre violência; o caso Amarildo chegou a um termo, vá lá, menos insatisfatório do que estamos acostumados, então o tema da brutalidade policial saiu um pouco de cena.

Daí por diante, restou no ar a questão: “como vai ser na Copa?”, como promessa de mais mobilização e conflito; mas também, talvez, um pouco como resultado da frustração pelo pouco avanço das pautas políticas e de um certo clima de desmobilização (clima enganoso, talvez? Ficou um gostinho de quero mais?). Também subsistiu o doloroso espanto com a facilidade dos governos nas três esferas de simplesmente prometer um aumento na repressão, sem satisfação quase nenhuma para a população. Não houve reformulação da atuação das polícias. Não houve aumento da participação social nas decisões públicas. Não houve ganhos na relação entre o Estado e as periferias. Ficou alguma coisa de 2013? Todos se perguntam.

A julgar pelo “caso rolezinho”, ficou a sensação de que ainda havia muito a vir pela frente. Como se cada um buscasse um novo estopim de mobilização nacional. Uma nova causa comum, como tinha sido o aumento da passagem de ônibus. Ou uma nova causa de conflito ideológico. A partir desse ponto, pouco importa o que seja o rolezinho em sua origem. Não estamos mais tratando de rolés juvenis, mas de um “caso rolezinho”, como se fosse o caso Dreyfus ou o atentado da rua Toneleros. O que importa, a partir desse momento, é perceber quais são os nervos que são tocados pela seqüência dos acontecimentos. E, neste caso, são muitos: o sectarismo social, a segregação racial, o medo da classe média que se sente acuada, o desejo de consumir e o consumo como manifestação de ascensão social, a liberdade de juízes de expedir decretos (OK, é só uma liminar) de acordo com seu humor do momento, a atuação da polícia, o espaço ambíguo e rigidamente controlado do shopping center, a privatização da segurança, a incapacidade dos comentaristas da imprensa de enxergar o que está em jogo, presos que estão a uma estrutura social do passado…

Isso vai bem mais longe que a ideia de um apartheid, o que nos traz ao próximo ponto.

2. Nosso Mandela não será jurista, mas MC

Um contexto mais amplo deve ser mencionado, já que andam falando de apartheid. E também já que eu mencionei de passagem a ideia de que antes mesmo da repressão jurídica e policial, antes mesmo de marcarem “rolezinhos de protesto”, havia um componente político importante na mera vontade de marcar grandes encontros em shoppings. Tudo isso, somado à sede por novidades enormes no plano do confronto social, sinaliza para um momento particular no percurso da sociedade brasileira. Um momento de transição marcado por um tipo particular de dúvida, ou de ambigüidade: um momento “trágico”, no sentido clássico do termo.

Explico. Segundo uma interpretação da tragédia grega que particularmente me atrai muito, existe um momento na história dos atenienses – e, por que não dizer, de todos os povos – em que noções muito fundamentais, como justiça, lei, poder, entram em crise. É uma crise dos conceitos, das palavras, daquilo que todos usam para expressar as bases da coletividade em que vivem, mas que significa coisas diferentes para cada um, para cada grupo, cada classe, cada faixa etária, profissão, gênero, etnia, o que for. É o momento trágico por excelência, de tal maneira que não se pode separar o trágico do político. Antígona, de Sófocles, seria o melhor exemplo: tanto ela quanto o rei usam a palavra “lei” (nomos) para se referir a coisas opostas, conflitantes, irreconciliáveis (a lei formal e a lei dos costumes; o escrito e o não escrito). Ambos invocam os deuses para justificar suas posições. Nenhum dos dois pode voltar atrás, sob pena de implodir sua própria ideia da justiça e, com isso, condenar-se a viver dali por diante indefinidamente sob o signo da injustiça. Como sublinha Jean-Pierre Vernant, os atenienses do período trágico viviam o momento da instauração de seu sistema legal, mas não em bases revolucionárias ou épicas. Era uma ruptura histórica, mas bastante particular: um momento de dúvida, indecisão e ambigüidade.

O apartheid não é nada disso e seu fim, tampouco. Foi instaurado por uma seqüência de leis; a classificação das raças era oficial (além de branco e negro, tinha também o grupo dos indianos, dentre os quais figurou por um tempo ninguém menos que Gandhi, embora antes do apartheid); os espaços de cada um eram delimitados, inclusive em termos de profissões permitidas e proibidas; casamentos interraciais foram proibidos em 1949; havia passes para os negros que fossem trabalhar nas áreas brancas; os tribunais e agentes de polícia estavam instruídos sobre os procedimentos referentes às leis do apartheid. O regime foi derrubado por uma mobilização política e social que já conhecemos e foi substituído por um outro corpo de legislação. Tudo isso sem o componente essencial daquilo que seria o momento trágico (tanto que a história de Mandela, por exemplo, é narrada normalmente com uma levada épica): a indecisão, a dúvida, a ambigüidade.

Mas essa ambigüidade está presente no Brasil e se revela com muita clareza em diversos pontos. Já foi assim na época das manifestações e é mais ainda com o rolezinho. Por exemplo, nesses textos todos que estou referenciando, é interessante observar como cada um tenta representar o quadro inteiro dos acontecimentos de maneiras completamente diferentes, mas usando os mesmos fatos, as mesmas palavras. Num texto, o rolezinho (e não o “caso rolezinho”, é importante frisar) é fruto de uma classe em revolta; no outro, é a aparição de uma classe esquecida. Aqui, é a expressão da vontade de participar através do consumo. Acolá, é só o consumo, como imagem vazia de uma participação impossível. Já o “caso rolezinho” aparece em uns como clamor contra a segregação; em outros, como descoberta de uma segregação que apenas se intuía; em mais alguns, como explosão de uma pulsão repressiva que “a classe média” ou “as elites” (termos que, surpreendentemente, estão se tornando sinônimos) não conseguem mais segurar. E por aí vai.

De outro lado, lê-se que a agressividade inerente ao súbito encontro de milhares de jovens, num lugar em que isso era inesperado, é o prenúncio de uma revolução ou de uma catástrofe civilizacional. A ausência, ou quase ausência, de atos criminosos explícitos (roubos a lojas, espancamentos de clientes ou vendedores, depredação de vitrines…) é frustrante para quem quer do rolezinho mais do que ele pode dar. Acontece que o ponto não é esse. O que quer que o rolezinho (e, mais uma vez, não é o “caso rolezinho”) signifique, não vai mudar grande coisa se, como diz a liminar, misturando alhos com bugalhos, “um grupo de delinqüentes se infiltrar”. Como não vai mudar se um cliente entrar em desespero e metralhar adolescentes numa praça de alimentação, ou se o governador decretar um toque de recolher para menores de idade (São Paulo tem um governador que não me deixaria surpreso se fizesse isso), ou qualquer outra coisa. Aconteça o que acontecer, os elementos principais já estão na mesa: a vontade de consumir, o espaço sectário do shopping, o desconforto entre classes sociais e cores de pele, e a reversão disso tudo pelo simples gesto de ir até o shopping e pela simples presença dos jovens no espaço que era prescrito a outros grupos.

Uma coisa, porém, aconteceu, e que é típica disso que estou chamando de “momento trágico”: a famigerada liminar de 9 de janeiro, obtida pela WTorre (que, com um pouco de sabedoria, poderia simplesmente ter deixado o momento passar e o assunto morrer – mas aí a falha trágica estaria em falta, não?). Toda a ambigüidade desse momento decisivo (leia-se: crítico) está expressa na linguagem empregada para justificar o deferimento da liminar. Ao opor a garantia constitucional do direito de manifestação à garantia do direito de propriedade e do livre exercício da profissão, o juiz faz duas coisas: primeiro, explicita o fato de que, pensem o que pensem os jovens que queiram ir conhecer os shoppings da WTorre (ou seja, simplesmente dar um rolé, um rolezinho ou um rolezão, pouco importa), do ponto de vista do poder público, representado pelo juiz, o rolezinho é, sim, um fenômeno político – uma manifestação. Com uma canetada, a Justiça inscreveu no plano da realidade uma polissemia que, até então, estava restrita ao plano do imaginário – dos comentaristas acadêmicos, doidos para ver o rolezinho se transformar em “Jornadas de Junho 2: o retorno”, e dos freqüentadores de shopping, que se sentiam ameaçados nem tanto fisicamente, e mais simbolicamente: “a expressão deste espaço que é prescrito para mim está sendo posta em dúvida. Se este espaço passar a ser para todos, o que restará para mim”? Muito mais do que um apartheid, o que o magistrado criou, sem perceber, foi a dimensão política da disputa, em termos de ambigüidade trágica.

Segundo: ao listar as garantias constitucionais que lhe pareciam estar em jogo no pedido da WTorre, o magistrado escolheu o direito de propriedade, o direito de exercício da profissão e o direito de manifestação, mas deixou de fora o direito de circulação: ir e vir. Ato falho? Aqui também existe um subtexto muito ambíguo: é bem verdadeira a afirmação de que o shopping center é um espaço privado, embora de uma natureza bastante estranha – é um espaço razoavelmente “aberto”, que supostamente “substitui” as ruas, que ficaram tão perigosas e sujas… por algum motivo. Também ninguém discorda que, em espaços privados, o proprietário tem o direito de deixar entrar ou bloquear quem ele bem entender – como acontece nas recepções de prédio comercial no Brasil, onde temos de dar documento, tirar foto…

Mas quando juntamos essas duas afirmações e a confrontamos com os acontecimentos das últimas semanas, surge a sensação de desconforto. Será que o shopping center é, ou deveria ser, ou finge ser, ou tenta ser, ou gostaríamos que fosse (e assim por diante) algo mais que um ambiente privado? Qual é, afinal, a relação entre essas construções mastodônticas (e feias, muito feias) com a cidade como um todo e a população que a habita? O que acontece quando esse espaço privado se vê obrigado a produzir critérios para decidir quem pode ou não entrar?

A própria liminar é um exemplo claro de equivocidade: se um espaço privado tem naturalmente o direito de decidir quem entra e quem não entra, então para quê uma liminar? Bastava exercer esse direito e dizer: “você não, você sim”. Ou então: se o shopping não é um espaço público, por que não tem uma recepção com catracas na entrada? Se a liminar diz que o “rolezaum” está proibido, com que base a polícia poderá parar alguém no shopping que declare, com toda simplicidade, com todo cinismo, não fazer parte de “rolezaum” nenhum, apesar de estar no meio de um grupo enorme de gente? (A resposta a essa pergunta pode ser ainda mais desconfortável.) E por aí vai. Dispositivos como o shopping existem justamente para ativar e desativar, de acordo com as necessidades percebidas, os mecanismos que controlam o funcionamento de uma determinada configuração do campo social e da economia. O momento trágico explicita esses mecanismos, na medida em que são operadores justamente da ambigüidade em que estamos embebidos.

Em outras palavras, para resumir a questão da comparação com o apartheid e com a tragédia grega, notadamente Antígona, existe um conflito quase invisível entre regimes de legitimação, que tornam o “caso rolezinho” anda mais interessante, ao colocar o conjunto da sociedade diante da obrigação de decidir. É importante notar que, como em Antígona, existe um conflito entre uma lei não escrita (vou chamar de “legitimidade”) e uma lei escrita (a constituição). Do ponto de vista do brasileiro, é “legítimo” existir um espaço de consumo reservado a alguns e inacessível para outros. É “legítimo” os consumidores entrarem e saírem quando quiserem, mas o segurança enxotar as crianças maltrapilhas que se aventurem ali (embora possa “ficar meio chato”). Afinal, aquilo “não é” a rua, é “outra coisa”: uma coisa nebulosa, perfeita para subversões como a do rolezinho. Ao contrário do que acontecia no apartheid, não tem uma linha sequer na lei brasileira sobre o direito de excluir alguém de estar em um ou outro espaço de consumo ou de qualquer outra natureza. Não existe nada parecido com um critério racial, social ou qualquer outro. No entanto, o inconsciente do brasileiro toma esses critérios informais como “legítimos”, e isso só fica mais ou menos claro quando alguém produz um texto tortuoso de liminar que dá carta branca a uma empresa para exercer essa triagem.

3. Ai de ti, Alphaville

O que nos traz para a questão urbana. Achei interessante encontrar, tanto na liminar quanto em comentários na imprensa, a ideia de que o shopping “não é o lugar adequado” e que os jovens que queiram passear e cantar suas músicas deveriam ir “para um parque”. Essa afirmação é errada do começo ao fim. O parque é exatamente o lugar em que isso não pode acontecer, pelo menos no Brasil. O parque, no Brasil, é quase uma concessão da realidade urbana a um ideal de cidade levemente baseado na Europa. Concessão pela metade, claro, o que explica por que os parques são tão mal cuidados. Qual é o efeito auto-afirmativo de ir ao Ibirapuera, no Brasil? Do ponto de vista do rapaz que põe seu melhor tênis e seu melhor boné, qual é a menina que vai ficar caidinha por ele quando ele canta funk ostentação no viveiro Manequinho Lopes?

Outra possibilidade seria tomar as ruas, mas as ruas são justamente onde as pessoas mais excluídas já estão, pelo menos no seu horário de trabalho. A transgressão acontece no sentido oposto: quando os filhos da classe média tomam as ruas, atrapalham o trânsito dos seus pais (e irmãos) e dão a entender que gostariam de viver de outra maneira, numa cidade menos sectária e isolada: numa cidade, de fato. A questão do “atrapalhar o trânsito” foi tão importante no começo das manifestações justamente porque a relação originária que o brasileiro, de remediado pra cima, tem com a rua é através do trânsito. Não é com a calçada, não é com as vitrines de lojas, no mais das vezes. O trânsito representa, no imaginário do brasileiro, uma proporção descomunal do espaço público como um todo, porque a tendência dominante é restringir o espaço público tanto quanto possível: pouco resta além do trânsito. Basta ver o que querem fazer com o vão do Masp!

Não só restringir: também trocar o espaço público por versões “ersatz”, por verdadeiros simulacros. O condomínio fechado é um exemplo, com suas ruas internas, seguranças particulares (substituindo a polícia, cuja função, no Brasil, é bem outra), com – aí sim – jardins e parques, quadras, piscinas. (Aliás, se o conceito de “clube” já era um espaço privado, ainda assim era um espaço infinitamente mais comum do que os condomínios atuais, a ponto de parecerem espaços públicos. Até porque os clubes também tinham uma função para a sociedade: promover o esporte, a arte, o lazer, a consciência cívica etc.) Os grandes complexos de escritórios, idem: entro pela garagem, saio pela garagem, lojas e alimentação no térreo e assim por diante.

Mais do que qualquer outra coisa, o shopping center encarna esse modo de vida seccionado, sectário, em que a própria ideia de urbanidade desaparece, soterrada por dispositivos de moradia, consumo, trabalho e lazer inteiramente predeterminados e controlados, de tal maneira que o acaso, o encontro fortuito, a confrontação com a diferença, são quase impossíveis. O shopping center é o ambiente “em comum” que fecha de madrugada. É o espaço de lazer, compras, alimentação, em que não há trânsito, chuva ou barulho. Aliás, sobre o barulho, subsiste apenas aquele que é controlado: anúncios de promoções em alto-falantes, música ambiente (geralmente ruim) e assim por diante. É o oposto de tudo que possa ser considerado uma experiência urbana.

Por isso, é perfeitamente natural, eu diria até mesmo que é evidente, que qualquer manifestação de autoafirmação e potência no âmbito social brasileiro vai começar ou terminar no shopping center, ou passar por ele em algum momento. Mais ou menos como, depois de um jogo no Maracanã, as torcidas vão lotar a praça de alimentação do shopping Tijuca. Mais ou menos como, quando a chuva começa a se anunciar durante o verão, as avenidas se esvaziam, os taxis somem, os shoppings lotam. Se cada vez mais os cinemas, os restaurantes e até os teatros ficam dentro de shoppings, o espaço onde alguém demonstra que participa da sociedade tal como ela é hoje no Brasil – consumista, sectária, anti-urbana – é necessariamente o shopping. Aliás, recomendo este texto.

Por outro lado, a presença dos jovens da periferia no shopping tem o efeito de esvaziar o próprio propósito do shopping, ou seja, derrotar o conceito de shopping. Se o shopping existe para ser sectário, de que adianta ele existir quando entra aquele que deveria ficar fora? E não é só isso: a ideia de que o shopping “não é o lugar adequado” denuncia o desejo, bastante fantasioso por sinal, de estabelecer de forma irrevogável um ambiente protegido e isolado contra tudo que pertença à esfera pública entendida em sentido estrito. Mas esse desejo só consegue se realizar até certo ponto, porque quando esse ambiente busca substituir aquele espaço público, formas substitutas daquilo que pertence ao espaço público começam a aparecer: seja o trânsito na escada rolante, sejam as condições climáticas irrespiráveis no ar condicionado, seja o barulho das madames ao celular, seja o rolezinho.

E isso só tende a se expandir quando o abismo da renda, que era a justificativa (ou seja, aquilo que tornava “legítimo”) do sectarismo, começa a se estreitar. As massas de pessoas periféricas que passam a ter poder de consumo passam também a querer realizar esse poder. Primeiro, isso aparece pela construção de novos shopping centers ali mesmo onde, pouco tempo antes, nunca se poderia esperar um shopping! Lugar de pobre, quero dizer. Mas esses lugares não são tão pobres assim… Só que a desigualdade existe tanto em Itaquera quanto no Itaim, senão mais: micro-sectarismos surgem antes mesmo que a última maçaneta seja colocada na porta do banheiro. “Famílias” versus “jovens arruaceiros”… E pensar que “família”, pouco tempo atrás, designava a zona sul! Ou seja, para que o shopping continue sendo shopping, é preciso encontrar outro meio de justificar, de “legitimar” o sectarismo. Aqui é que a cobra pode fumar, aqui é que Antígona pode enfrentar Creonte, aqui é que vemos nossas ambigüidades e nossos recalques.

Uma última palavra sobre isso: é claro que o problema vai muito além do mero shopping center. A cidade toda está construída assim. Não é à toa que, com perdão suposto de Rubem Braga, chamei este item de “ai de ti, Alphaville”. Não é pouca coisa o Guardian ter incluído Alphaville na lista de muros da vergonha no mundo. E tivemos sorte de que eles ficaram só em Alphaville. Muro é o que não falta por aqui. Mesmo a ineficiência do transporte público, o preço da passagem, o ônibus que não passa de madrugada, tudo isso compõe uma espécie de muro funcional. Vamos convir: a lógica de “legitimação” que justificou a construção dessas nossas cidades em que as ruas são cemitérios de automóveis e as calçadas são abismos de gente está ultrapassada. A crise urbana do Brasil já começou e não é simplesmente o “nó do trânsito”.

4. Tudo aquilo que o malandro pronuncia

Este item é o mais importante porque é onde pretendo tratar de um tema presente nas entrelinhas de tudo que li até agora sobre o “caso rolezinho”, mas que é raramente explicitado. Uma boa exceção é este texto essencial, ou pelo menos a primeira metade dele. Uma ideia semelhante, mas com vetor invertido, aparece também no primeiro texto que linquei, acima. Se me perdoarem um pouco de deleuzianismo, eu diria que todo confronto social se assenta em grande medida sobre uma base de conflito de desejos, ou melhor, um conflito sobre mecanismos de atualização e simbolização dos desejos. O “caso rolezinho” deixa isso muito claro.

Por um lado, o desejo de se valorizar através do consumo, como se expressa em frases como “as marcas deveriam nos pagar para fazer propaganda, porque nós as amamos. Sem marca, você é um lixo”. Note-se que a ideia de “ser um lixo” é uma presença importante e a escapatória dessa perspectiva pavorosa está disponível mediante um ícone social preciso, que se adquire através do dinheiro, esse vetor de informação tão eficaz. Seria fácil associar o “amor à marca” a essa capacidade de afastar do “ser um lixo”, mas o mais importante é a presença dessa palavra: “amor”, eros, libido, pulsão, princípio que põe em movimento. O que o rapaz citado pela antropóloga está dizendo é de uma importância enorme: as marcas, com suas etiquetas de preço, sua enorme visibilidade e o investimento em publicidade, organizam, estruturam, sistematizam, uma gigantesca economia libidinal que atravessa a subjetividade de uma infinidade de gente: dão forma ao seu amor, ao seu tesão. Falo mais sobre isso um pouco mais abaixo.

Outra citação importante no texto da antropóloga: “uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente”. Por um lado, este “ser visto como gente” ressoa muito profundamente com o “sem marca, você é um lixo”. Está em ação o mesmo mecanismo de agenciamento, que corporifica e sobredetermina os gestos que permitem passar do lixo à gente, da invisibilidade à visibilidade. Por outro lado, esse mecanismo faz sinal também para o fato de que a própria visibilidade é um mecanismo a ser construído. Ser visto, mas “como gente” – essa noção de gente tem conteúdo, não é um universal metafísico. “Ser é ser percebido”, já dizia Berkeley, séculos atrás. Então se trata de ser visto por quem? E como? É só uma visão ou tem todo um reconhecimento por trás? Essas perguntas pressupõem um tabuleiro e as respostas que você dá, ou seu entorno, se você mesmo não tiver a potência de responder, define a posição no tabuleiro. Querer ser visto por um mundo cujo centro já está determinado significa associar-se a esse desenho de mundo, mais como objeto da visão do centro do que como sujeito que se faz o centro que vê. Também volto a isso.

Antes, quero trazer mais uma citação, para mostrar como mesmo essa manifestação de desejo que subscreve ao princípio da configuração social conhecida como “consumismo” implica algum tipo de ruído no sistema, mais precisamente no mecanismo de expressão do valor social. A autora conta que um funcionário da Nike se envergonha de sua marca ser usada por aquilo que chama de “marginais” (palavra também cheia de nuances no Brasil). Existe todo um sentido por trás do mecanismo de sobredeterminação do desejo e esse sentido passa longe da apropriação por jovens de classe baixa. Pelo contrário, uma das funções desse dispositivo é marcar tanto quanto possível a diferença em relação ao resto. Quando o resto se apropria do ícone, o gestor do mecanismo fica envergonhado – mas o mais correto seria ele ter dito “embaraçado”. Mais uma vez, a disputa saiu do campo do imaginário e entrou no simbólico. Não à toa, outras citações no texto revelam a classe alta assinalando o “mau uso” do símbolo, o gesto equivocado de pagar em dinheiro e assim por diante.

Um breve excurso pela questão do consumo como meio de inclusão. Não há dúvida de que ele seja falho e extremamente limitado, um dos pontos mais questionáveis do segundo governo Lula, e que será a origem de muitos conflitos daqui por diante. (Mais questionável ainda é o governo Dilma, que se recusa ferrenhamente a dar qualquer passo além desse tipo de inclusão.) Apesar de tudo, o consumo não é uma inclusão completamente vazia, como a crítica poderia fazer parecer. A inclusão pelo consumo é a inclusão numa sociedade tal como ela é – uma sociedade do consumo. Tem, pelo menos, o mérito de levantar a questão do caráter simbólico do consumo, mas também exerce um papel fundamental na já mencionada visibilidade e na subjetividade daquele que passa a consumir. Quando um sujeito que está usando uma marca diz que “sem marca você é um lixo”, ele também está dizendo: “viu? Eu não sou um lixo”. O que acontece quando ele é tratado como tal? E mais: aquele que já viveu a experiência de não ter acesso ao consumo (e provavelmente se sentia um lixo) vai querer tudo, menos voltar àquela condição. No mínimo, as posições no tabuleiro estão mudadas. Acho que tudo que se passou em 2013 é uma demonstração disso. A inclusão pelo consumo, é claro, nunca foi e nunca será uma estratégia verdadeiramente transformadora. Mas só quem já está incluído (e inclusão na sociedade de consumo, infelizmente, é consumo) pode começar a ser o sujeito de algum tipo de transformação. Antes disso, ele só quer inclusão – leia-se, consumo.

Com o que chegamos ao cerne da questão do desejo e seus mecanismos de sistematização. Para isso, gostaria de citar um caso que é em tudo oposto ao “caso rolezinho”. Onde o rolezinho é só um passeio, esse caso foi efetivamente violento, tudo que os profetas do Apocalipse anti-rolezinho temem. Onde o rolezinho é uma manifestação de alegria e potência, esse caso foi a manifestação de ódio e rancor em estado puro. Estou falando dos saques e incêndios de Londres e outras cidades inglesas em 2011.

Resolvi citar esse evento tão oposto ao rolezinho por um único motivo: há um ponto curioso e essencial em comum. Quando diversas cidades do Reino Unido foram tomadas por bandos de jovens, muito além do controle da polícia (que demorou dois dias para retomar as cidades), o que eles fizeram? Por acaso marcharam até o centro, ocuparam as sedes de rádios e TVs, mandaram o primeiro-ministro para o exílio, destituíram os comandantes das forças armadas? Por acaso tomaram algum palácio de inverno? Destruíram fábricas, bancos, postos de gasolina ou outros símbolos do poder econômico? Nada disso. Além de confrontos e incêndios de carros, eles saquearam lojas de roupas e de eletrodomésticos.

Pense nas revoltas populares do século XIX, era industrial, mas ainda não consumista. Pense nos luditas, nos ataques a fábricas, no enforcamento simbólico de industriais, na destruição de carregamentos de mercadorias prontas para embarcar. O símbolo aqui é a luta contra a proletarização, e apenas parcialmente como o capital enquanto tal. No século XXI, ao contrário, o símbolo é a luta pelo consumo, contra o abismo nos níveis de consumo. De desejo de emancipação ao desejo de apropriação: mas desejo, sempre desejo.

Nada mais diferente do que olhar vitrines ou quebrá-las, experimentar bens ou tomá-los pura e simplesmente. Mesmo assim, querer apenas estar perto das mercadorias, na grande catedral (ou fortaleza) do consumo, pacificamente; ou querer possuí-las, ainda que à força (os tênis de marca são as novas sabinas a raptar?), resultam de uma modalidade de participação no campo social cujo princípio é o mesmo. Por trás desses dois fenômenos, encontramos os mesmos agenciamentos do desejo, mediado por todo um maquinário de determinação, que envolve até mesmo uma boa parte da necessidade de segregação que persiste. Se o fenômeno resultante vai ser uma festa combinada pela internet, uma explosão de violência, um ato político ou ainda uma outra coisa, isso vai se definir por outras circunstâncias, entrando em outros circuitos de causalidade. O que nos interessa, a esta altura, é o que está no ponto originário, e isso é um princípio de ordem das pulsões fundado sobre o consumo.

Mas isso também não esgota o problema. Primeiro, resta o fato de que o consumo não sistematiza a atualização das pulsões apenas dos jovens periféricos, mas de toda a sociedade. Ao final, o que resta dessa história toda é que o rolezinho, do ponto de vista de quem não participa deles, mas sente que pode ser tomado de roldão por um, explicita para cada membro da sociedade-de-consumo aquela mesma fronteira explicitada pelos jovens do texto citado acima, entre “ser lixo” e “ser visto como gente”. Resulta também que ainda não inventaram o mecanismo perfeito, de tal maneira que, quando a diferenciação pelo consumo e pelo sectarismo espacial começa a não funcionar mais a contento, é preciso invocar outros sistemas: a repressão policial, por exemplo, a retórica tortuosa de algum magistrado, ou ainda os puros e simples gritos de raiva – esses, os mais honestos.

Só que o mais importante a reter, me parece, é que a pulsão que está sendo mediada pela forma-consumo e simbolizada pelas marcas é uma pulsão inteiramente desses jovens. Se existe um “caso rolezinho” é porque “dar um rolé no shopping” deixou de ser um sonho digno de Shangri-lá. Além do mais, tenho a séria impressão de que o primeiro prerrequisito para não ser consumista, no mundo em que vivemos, é ter consumido. O não-consumista é alguém que “esnoba” o consumo porque “prefere” algo diferente, “algo melhor”. O que não tem nem pé de comparação com “não poder consumir” e com isso, milagrosamente, “desejar algo diferente”.

Some-se a isso a paulatina saída das sombras de todos os nós a desatar no Brasil, a explicitação da crise urbana, a evidência cada vez maior da nossa segregação, e temos um cenário notável de autoafirmação crescente. Como o sistema político, a mídia, o Judiciário e a “opinião pública” não estão preparadas para lidar com isso, vamos ver no que vai dar. Acho que vai ser interessante.



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