Não cabe ao judiciário, sem a utilização de critérios objetivos, decidir se determinado lugar é próprio ou impróprio para uma manifestação.
1. O mesmo de sempre: Constituição e Democracia; ou: do Direito
Desde 1988¹ , o Brasil convive com a existência daquilo que o professor Lênio Streck chama de “baixa constitucionalidade”: a violação dos direitos dos cidadãos através do cumprimento de leis. Pode parecer meio paradoxal se não entendermos como funciona um Estado Democrático de Direito. Neste tipo de Estado, temos uma hierarquia das normas: aquelas inscritas na Constituição são superiores àquelas que vêm nas leis ordinárias. No fenômeno da “baixa constitucionalidade”, ou são cumpridas leis inconstitucionais, ou utilizam-se de modo inconstitucional leis perfeitamente válidas. Enfim, cumprem-se formalmente as leis para descumpri-las materialmente, ou seja, no seu sentido constitucional.
É o que acontece no caso dos “rolezinhos”. Existe uma atuação inconstitucional da polícia reprimindo a manifestação e, ainda, uma atuação inconstitucional do judiciário concedendo liminares que limitam, desarrazoadamente, o direito constitucional de reunir-se.
O direito de reunião vem afirmado no art. 5º, XVI, da Constituição, com a seguinte redação: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”. Como pode ser visto, não existe uma diferenciação entre espaço público ou privado na disciplina do direito de reunião: não interessa se o local é de propriedade pública ou privada, mas sim se ele é aberto ao público ou não. Diante disso, podemos afirmar a impossibilidade de criminalização dos chamados “rolezinhos”, bem como da proibição de sua realização pelos argumentos utilizados nas liminares concedidas a shoppings em São Paulo.
As tentativas de criminalizar-se o movimento deram-se com base ou na lei das contravenções penais (especialmente os artigos 42 e 65 do Decreto-Lei 3.688/41), ou através de prisões “para averiguação”. Essas prisões, proibidas pela Constituição, são resquícios da Ditadura Militar, servindo para estigmatizar e amedrontar. Toda prisão necessita de uma justa causa, isto é, de uma situação que a justifique; sendo apenas duas as possibilidades: flagrante delito ou mandado de prisão expedido por juiz.
Quanto às contravenções penais, a lei inteira deveria ser declarada inconstitucional, já que viola princípios do Direito Penal democrático, como aquele da intervenção mínima (ou Direito Penal como último recurso) e o da secularização do Direito Penal (consubstanciando-se na separação entre Direito e Moral, isto é, na eliminação de preceitos meramente morais do Direito Penal, encaminhando-se de um Direito Penal de autor para um Direito Penal dos fatos). Assim, não foi recepcionada tal lei, bem como as contravenções de perturbação do sossego.
Em relação às liminares, seus principais argumentos são que: o shopping é um “espaço impróprio” para essas reuniões; e que “pequenos grupos se infiltram nestas reuniões com finalidades ilícitas”. Em primeiro lugar, não cabe ao judiciário, sem a utilização de critérios objetivos, decidir se determinado lugar é próprio ou impróprio para uma manifestação, sendo necessário para isso a produção de provas (aferir se a capacidade do local comporta a manifestação, por exemplo). Outro enfoque possível é criticar a necessidade do juiz em “purificar” o ambiente do shopping como local aberto ao público, mas inadequado a manifestações públicas (um bom exemplo dessa abordagem pode ser lido aqui). Em segundo lugar, o fato de pequenos grupos terem se infiltrado em outras manifestações semelhantes anteriores não impede, por si só, a realização desta; pelo contrário, impele a responsabilização individual de cada pessoa pelos seus atos, nunca de todos pelos atos de alguns.
Além disso, a adoção de medidas adicionais pelos shoppings, embora sejam comuns nas decisões liminares, não se furtam da análise da legalidade ou da constitucionalidade dessas medidas. Assim, os shoppings não podem impedir a entrada de certas pessoas, isto é, não podem discriminar certas pessoas em relação a sexo, idade, cor, classe social, origem, credo, etc. Por isso, não podem barrar adolescentes desacompanhados (violando o art. 16, I do Estatuto da Criança e do Adolescente), ou pessoas provenientes de certas localidades, por exemplo.
Isto sem contar que duas das decisões que analisamos (em relação aos shoppings Metrô Itaquera e JK Iguatemi) são idênticas, o que já mostra o nível de comprometimento intelectual e democrático do juiz da segunda decisão. E também que ambas incorrem no humor involuntário: ressaltam que não estão pretendendo impedir o direito de manifestação e concluem deferindo a liminar para impedir o direito de manifestação dos réus!
2. Ética, Estética e Política
Podemos estabelecer uma diferença importante entre a abordagem filosófica e aquela sociológica ou antropológica: enquanto a Filosofia busca captar o movimento, isto é, captar o acontecimento em sua natureza a-histórica e virtual, as Ciências mantêm-se na atualidade dos estados de coisas, no presente das efetuações, no mundo empírico. Assim, o pensamento de tipo filosófico é aquilo que Nietzsche chamava de intempestivo. Uma boa abordagem de cunho sociológico dos “rolezinhos” está feita, por exemplo, neste texto. O que pretendemos aqui é uma abordagem filosófica.
Os “rolezinhos” são encontros promovidos por adolescentes ou jovens adultos dentro de shoppings, com finalidades específicas e banais (“beijar, zoar, curtir a galera, ouvir funk, andar do lado contrário nas escadas rolantes” etc). Entretanto, a reação das pessoas, dos estabelecimentos, dos jornais, do judiciário, das polícias, enfim, da sociedade a esses encontros nos mostra que existe algo a mais que está escapando.
Parece que a volta de certas pessoas em locais abertos ao público traz consigo um sentido distinto daquele de uma simples volta, exigindo uma reação distinta. Assim, nosso problema pode ser exposto da seguinte maneira: como um passeio pode produzir confronto? Um confronto ocorre sempre entre duas forças de sentido contrário quando existe o aparecimento de uma nova força – criativa, portanto – que resiste ao movimento das forças que já estavam conformadas em determinado espaço. Logo, nosso problema pode ser também formulado de outra forma: como pode um encontro banal resistir? Ou, considerando que a resistência de uma força a outra é o que dá o sentido político a determinadas ações humanas, o problema pode ser assim colocado: como dar uma volta (“dar um rolé”) pode constituir-se em um movimento político?
Um shopping é um espaço privado aberto ao público que, assim como qualquer outro espaço (público ou privado), funciona segundo certas regras, escritas ou não. Regras escritas como a lei 7.716 de 1989, que proíbe a recusa de atendimento; regras não escritas como possíveis proibições de jogar lixo no chão ou o modo como o espaço é dividido. Mesmo que não conheçam as regras, escritas ou não escritas, as pessoas sabem quais são essas regras porque as regras não se confundem com eventuais leis que possam trazê-las inscritas. De acordo com David Hume, as regras têm sua essência na relação que mantêm com as instituições – elas determinam o papel e o funcionamento destas – sendo apenas comportamentos naturalizados pelo hábito e pela experiência. A ação do hábito é nos levar a esperar sempre os mesmos efeitos, sempre os mesmos comportamentos: a imaginação afetada pelo hábito transforma costumes em regras. Assim, as instituições são determinadas de certo modo pela ação de determinadas forças. Em um shopping, as regras determinam uma dada ordem, uma dada instituição, conformada para permitir e estimular o consumo.
Os “rolezinhos” são organizados por jovens que ouvem determinada música (o “funk ostentação”, vertente de certa música produzida no país que é chamada de funk, mas que funk não é) que valoriza a posse de certos objetos aos quais ela atribui um poder específico: possibilitar a ostentação. Esses objetos são vendidos nesses shoppings e é bem provável que a maioria das pessoas que participam dos “rolezinhos” já tenha entrado antes lá para comprá-los. Portanto, quando esses jovens entram naqueles ambientes sozinhos (ou em pequenos grupos) para comprar esses objetos, sua atitude não apresenta sentido distinto da ordem estabelecida nos shoppings.
Entretanto, os “rolezinhos” apresentam um sentido diferente que, embora indizível, é percebido por todos aqueles que estão presentes e pela sociedade em geral. A caracterização inicial como “arrastão” não consegue dar conta de um movimento no qual o crime ocorre de modo completamente incidental, assim como em qualquer manifestação. O confronto não se produz entre classes sociais, já que aqueles shoppings são localizados nas periferias de São Paulo e seus freqüentadores são, provavelmente, da mesma classe econômica, talvez vizinhos daqueles jovens. Tampouco é um confronto entre a civilização e a barbárie, ou entre a ordem e a bagunça, já que a percepção do movimento como bagunça é secundária à caracterização da ordem do shopping como civilização. Em outras palavras, o “rolezinho” só pode aparecer como bagunça porque transgride as regras do shopping, mas não que ele não tenha suas próprias regras, sua própria ordem.
O sentido político aparece na resistência de um grupo com novos comportamentos, com novas regras, em relação às regras do velho, do mesmo. O bando do “rolezinho” extravasa as possibilidades do shopping, isto é, ele transborda as fronteiras daquele lugar aparecendo como o inesperado, como a emergência do novo que foge às regras e às esperas do tradicional shopping. Desse modo, o “rolezinho” constitui-se como um movimento político a partir dessa resistência ética e estética de determinados grupos oriundos de camadas pobres e periféricas da sociedade brasileira em relação a outras forças que os querem conformados, fracos e impotentes.
Neste sentido, a inexistência de “pautas” ou “reivindicações” vem da sua absoluta desnecessidade, isto é, da ausência de uma consciência do caráter político de tal movimento pelos seus participantes. Melhor assim; dizemos com Marx – e contra Marx – que a consciência deve ser uma falsa consciência, isto é, que a emergência do novo político atravessa os próprios corpos desses jovens, não podendo ser contido por “alienações”.
Assim, o sentido político do “rolezinho” está dado nas próprias manifestações e nas mais diversas reações a essas manifestações, sendo possível – e melhor até – falarmos mesmo em um “caso rolezinho”, como disse meu colega aqui de Amálgama, Diego Viana.
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¹ Isso porque não havia instituições, legalidade ou ordem durante a ditadura: pouco do que vinha na Constituição valia; leis eram ignoradas ou não valiam para todos; direitos não eram certos e etc. Isso sem contar a ignomínia dos atos institucionais.
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