A Igreja e o espírito de Francisco

por Paulo Roberto Silva (14/01/2014)

A eleição de João XXIII plantou a semente que levaria a um surpreendente Bergoglio

papa

“Como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de são Pedro? Ele primeiro não teve que ser indicado bispo, e arcebispo, e cardeal, até ser finalmente eleito como papa? Ninguém tinha consciência de quem ele era?” Essas são interrogações ouvidas por Hannah Arendt da camareira do seu hotel em Roma, durante os funerais do Papa João XXIII. Registradas no livro de ensaios Homens em tempos sombrios, as mesmas caberiam no ano de 2013, diante do fenômeno que está sendo o Papa Francisco.

Aliás, este é o tipo de surpresa que um observador moderno costuma ter diante de certos personagens católicos, embora sejam mais comuns do que parecem. Dados os chavões com que se busca classificar e rotular o catolicismo enquanto fenômeno social e histórico, figuras como Joana d’Arc, Francisco de Assis, Chesterton, J.R.R. Tolkien, só para citar alguns, desafiam o lugar comum.

Fato é, na verdade, que este fenômeno social chamado catolicismo é algo que apresenta uma dificuldade razoável de compreensão pelo observador moderno. Não que os antecessores fossem melhores neste quesito. Mas os modelos mentais construídos após o Iluminismo, especialmente nas ciências sociais, não conseguem dar conta da complexidade do “ser católico”. Como resultado, as análises sobre os fatos relacionados ao ambiente eclesiástico costumam pecar, na maioria das vezes pela superficialidade, mas em geral pela imprecisão.

Para se compreender adequadamente o que significa o fenômeno “papa Francisco”, precisamos olhar para 2 mil anos de história buscando entender o que significou para pessoas tão diferentes em tempos tão distantes reconhecer-se como parte de uma mesma Igreja. Só assim poderemos compreender quanto Francisco tem de novidade, e quanto tem daquilo que define o “ser católico” enquanto um fenômeno social.

1.

De todos os clássicos das ciências sociais, quem melhor aprofundou o fenômeno religioso, sem sombra de dúvida, foi Weber. Tocqueville apenas tratou da religião como elemento de legitimação ou não das instituições políticas, seja em Da Democracia na América, seja em O Antigo Regime e a Revolução. A frase mais conhecida de Marx sobre a religião, “o ópio do povo”, consta em um de seus primeiros textos, a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e parece fortemente influenciada por Ludwig Feuerbach – este sim um crítico da religião. Por fim, As Formas Elementares da Vida Religiosa, de Durkheim, avança pouco sobre a religiosidade das sociedades complexas modernas.

O mesmo não se dá com Weber. Além da mais conhecida A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber produziu os ensaios “Sociologia da Religião” e “Dominação Política e Hierocrática” – presentes em Economia e Sociedade – e o conjunto de artigos Ética Econômica das Religiões Mundiais, alguns deles publicados em português em Ensaios de Sociologia. Há também indicações de sua sociologia econômica espalhadas em outros ensaios, como Ciência como Vocação e Política como Vocação. Nestes trabalhos, Weber traça um panorama de tipos ideais dando conta de uma ampla gama de manifestações religiosas, do animismo mágico mais primitivo ao que ele chama de religiões mundiais, da ascese ocidental à mística oriental, da completa ausência de sacerdócio do puritanismo à burocracia confuciana de estado, quase nada escapa ao sociólogo alemão.

Contudo, ele jamais produziu um texto exclusivo sobre o cristianismo católico. A um leitor da Ética Protestante, pode parecer – como pareceu a diversos autores sérios, como o sociólogo norte-americano Peter Berger – que ele via o catolicismo como uma etapa incômoda e mal assentada entre o profetismo ético judaico e a reforma protestante. Contudo, uma leitura atenta do conjunto da obra desfaz essa percepção: há uma visão interessante e positiva do cristianismo católico permeando sua sociologia da religião, mas não só: em seu ensaio “A Dominação Não Legítima (Tipologia das Cidades)” – no volume dois de Economia e Sociedade – ele mostra como a burguesia nascente nas comunas italianas foram buscar na sistematização do Direito Romano promovida pela Igreja Católica a regularidade jurídica necessária aos negócios e que faltava à dominação feudal.

Mais ainda: a maior parte dos conceitos da Sociologia da Religião de Weber parecem ter sido retirados da doutrina católica: sacerdócio, graça de estado, carisma, bens de salvação, entre outros, são conceitos que existem tanto na sociologia weberiana quanto na teologia católica, e com significados semelhantes. Mesmo a definição de Igreja – uma empresa que detém o monopólio dos bens de salvação e que se pretende universal – parece se aplicar à Igreja Católica mais que a qualquer outra. Ou seja, havia sim, em Weber, a preocupação em caracterizar o catolicismo como um fenômeno social complexo. Contudo, por um motivo que desconhecemos, o ensaio sobre catolicismo falta à Ética Econômica das Religiões Mundiais.

O que mais se aproxima dele é a Dominação Política e Hierocrática. Nele, contudo, o que existe não é uma sociologia do catolicismo, mas do sacerdócio enquanto estrutura burocrática. O que para Weber era uma uma e mesma coisa: o autor define que a hierocracia se transforma em Igreja:

1) quando se desenvolveu um estamento especial de sacerdotes profissionais, com salário, carreira, deveres profissionais e conduta (extraprofissional) regulamentados, e separado do “mundo”; 2) quando a hierocracia manifesta pretensões de dominação “universalistas”, isto é, superou pelo menos a vinculação à casa, ao clã e à tribo, mas, em sentido pleno, somente depois de caírem também as barreiras étnico-nacionais, isto é, quando existe um nivelamento religioso completo; 3) quando o dogma e o culto estão racionalizados, assentados em escritos sagrados e comentados, e constituem sistematicamente, e não apenas à maneira de uma habilidade técnica, um objeto da instrução; 4) quando tudo isto se realiza numa comunidade com caráter institucional, pois o ponto que tudo decide e cujos resultados são estes princípios, desenvolvidos em grau muito diverso de pureza, é a separação entre o carisma e a pessoa e a vinculação deste à instituição, especialmente: ao cargo, pois a “Igreja” distingue-se da “seita”, no sentido sociológico da palavra, pelo fato de se considerar a administradora de uma espécie de fideicompromisso dos bens de salvação eternos, oferecidos a cada um.

Ou seja, o catolicismo weberiano consiste na institucionalização do cristianismo originário sob a forma de um sacerdócio organizado de maneira hierocrática. Em nenhum outro momento esta definição aparece tão explícita. E é ela que se torna a armadilha de Weber perante o fenômeno católico. Porque a face institucional é apenas uma parte da sociabilidade religiosa maior que podemos definir como “ser católico”.

O foco institucional de Weber se explica. Habermas, ao analisar a teoria da racionalização de Weber, destaca o fato de que, ao invés das ciências, este se concentrou no direito e das instituições. Por isso, o catolicismo em Weber é relevante no sentido em que, ao estruturar-se como sacerdócio hierocrático, forneceu ao Ocidente um avanço no sentido de uma dominação burocrática, ou seja, impessoal e determinada pelo direito.

Contudo, algumas coisas tendem a escapar a essa definição. Por exemplo, a formalização do dogma em uma exaustiva teologia sistemática, destacado por Weber como característica especial do catolicismo romano, convive com a baixa exigência intelectual e mesmo moral do católico, que convive tranquilamente não só com o erro, mas com o comportamento inadequado. Na Ética Protestante, Weber propõe uma solução a este problema a partir do sacramento da confissão: ao permitir o perdão a todo momento, o católico estaria livre da tensão moral a que estava submetido o protestante, o qual – pelo menos nas confissões mais rigorosas – só pode ser perdoado de seus pecados uma vez na vida, por ocasião do batismo.

Mais ainda: toda a teoria weberiana do carisma está baseada na sua sociologia da religião. Na Dominação Política e Hierocrática, Weber retoma este tema, ao tratar da reiterada rotinização do carisma, ou seja, a capacidade de uma ordem hierocrática transformar o profeta carismático em sacerdócio, institucionalizando-o. O fato é que Weber deixou escapar na religião um fenômeno que identificou na democracia partidária: a institucionalização do carisma enquanto elemento de dinamização das instituições. O líder de partido, embora deva estar sujeito à burocracia partidária, precisa ser um líder carismático, para mobilizar os funcionários do partido pela fidelidade à sua pessoa, mais do que o cumprimento de uma regra escrita – característica da dominação carismática segundo Weber.

Ora, assim como na democracia o estado de direito – dominação burocrática – convive com a promoção de lideranças de perfil carismático, também no catolicismo o profeta carismático não é simplesmente aceito, mas também incentivado e de certa forma protegido, mesmo que em posição de conflito com a hierocracia. Está fresca na mente do católico advertências fortes do Evangelho a favor do profeta – em João 16,2, Jesus não poderia ser mais claro: “virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus.” Diante das dificuldades criadas pelo clero a Santa Teresa de Ávila, São Pedro de Alcântara disse que ela sofria da “contradição dos bons”, e fez referência exatamente a este texto para se explicar.

Entretanto, não se deve culpar Weber por mirar nos aspectos meramente institucionais ao tratar da Igreja Católica. Afinal, a análise exclusivamente institucional também se expande aos círculos teológicos, e não apenas para dissidentes como em Igreja, Carisma e Poder de Leonardo Boff. Também o alto clero tende a acreditar que apenas eles são A Igreja.

2.

Logo, a leitura weberiana do fenômeno católico deixa pendente uma resposta para uma pergunta: o que une em uma mesma sociabilidade pessoas tão diferentes quanto o profeta carismático e seus detratores, patrão e escravo, Filemon e Onésimo, Chesterton e o Cura d’Ars, dom Helder Câmara e Plínio Correa de Oliveira? A mera pretensão universalista da Igreja weberiana não é suficiente – ela precisaria, de alguma forma, ser aceita e reconhecida pelos seus fiéis.

A palavra adequada para definir essa relação parece ser identidade. De fato, os católicos mais diferentes se reconhecem como parte de uma mesma “comunidade”, de um mesmo “povo de Deus”. De fato, a Igreja se refere a si mesma com nomes que se referem a esta identidade: Povo de Deus, conforme a Lumen Gentium, comunidade, corpo místico de Cristo, comunhão.

A figura do corpo místico é interessante. Foi usada por Paulo para definir justamente esta unidade na diversidade que caracterizaria o catolicismo: um só é o corpo, mas muitos seus membros (1ª Carta de Paulo aos Coríntios 12,12). E o que se segue é justamente esta ênfase na identidade com o corpo apesar das diferenças: o pé não pode querer ser mão, nem o olho pode querer ser ouvido. Em linguagem contemporânea, Paulo apresenta uma visão sistêmica ou funcionalista da Igreja.

Mas mais do que isso. A identidade do católico com sua Igreja parece superar até mesmo o conflito entre católicos. Um grupo pode julgar o outro como católico incoerente, ou católico mais ou menos, mas todos frequentam a mesma missa. Não há sequer local de culto separado – embora um grupo possa preferir determinada paróquia e outro grupo outra.

Para exemplificar: no depoimento de uma refugiada palestina na cidade paulista de Mogi das Cruzes, publicado na revista Piauí, ela descreve inclusive um estranhamento com a própria liturgia:

“Pude perceber que o ritual, embora parecido ao da Jordânia, tem uma diferença fundamental. Lá, o padre coloca a hóstia sagrada diretamente na boca dos fiéis. Aqui, o padre a entrega na mão das pessoas. Achei estranho. Quem garante que as mãos estão limpas? Também notei que muita gente comunga sem véu sobre a cabeça. Na Jordânia isso é impensável. É um sinal de desrespeito com Cristo.”

Contudo, essa identidade supera inclusive o estranhamento litúrgico/cultural:

“Nessa ida à igreja, antes de encerrar a missa, o padre fez um sinal e chamou minha família para subir no altar. Cumprimentei o sacerdote e ele nos apresentou aos fiéis pedindo que nos recebessem de braços abertos. Fomos aplaudidos num gesto incrível de carinho e amor. Quando retornamos aos nossos lugares, minha mãe começou a chorar. Perguntei o que tinha acontecido e ela disse: ‘Ficamos anos entre nossa gente e nossos parentes, e eles nunca fizeram conosco o que esse povo que nos viu hoje pela primeira vez fez. É impressionante.’”

Apesar das diferenças culturais, sociais, litúrgicas, os católicos brasileiros e palestinos se identificaram como parte de uma mesma identidade religiosa. Uma identidade que se molda principalmente no reconhecimento litúrgico: um católico reconhece um dos seus entre aqueles que se reivindicam como batizados, que frequentam a mesma missa, ainda que de forma não frequente, que se casam na igreja, e que compartilham das mesmas devoções. Dadas essas condições extremamente básicas, um frequentador da Renovação Carismática que toca guitarra reconhecerá como um dos seus um membro dos Arautos do Evangelho, trajado de roupas marrons e coturnos militares.

Por outro lado, um católico da Renovação Carismática raramente reconhecerá como um dos seus um neopentecostal – exceto no contexto do diálogo ecumênico – apesar das semelhanças no jeito de rezar e viver a fé cristã. Entre católicos e não-católicos os elementos que servem para alimentar a identidade também atuam na diferenciação. Reginaldo Prandi, em seu estudo sobre a Renovação Carismática – Um Sopro do Espírito – mostra como a figura de Nossa Senhora atua, neste caso, como diferenciador entre carismáticos e neopentecostais.

Esta identidade capaz de gerar uma solidariedade entre os mais diferentes católicos e diferenciá-los dos não católicos é similar a que aglutina os membros de uma mesma nação, apesar de suas diferenças. Assim, da mesma forma, Renan Calheiros, Jorge Paulo Lehmann e Amarildo se consideram brasileiros, apesar das profundas diferenças sociais e estruturais entre eles. Este aspecto, inclusive, nos ajuda a compreender a dificuldade de Weber: a mesma aparece no capítulo sobre a nação do ensaio Comunidades Políticas, de Economia e Sociedade.

Esta identidade básica não inclui os elementos que, do ponto de vista de um observador externo, caracterizam o “ser católico”: especialmente os elementos de doutrina moral, como as questões do aborto, da relação homossexual, da camisinha. Um estudo do Centro de Estatística Religiosa e Informações Sociais, relacionado à CNBB, mostra que entre os católicos é alto o índice dos que não se confessam, que acreditam em reencarnação, ou mesmo que descrevem a Deus como um “ser superior”, tirando o caráter de pessoa que o define na doutrina católica.

Por este motivo, caracterizar o sucesso ou o fracasso na Igreja nos termos do sucesso ou do fracasso da pauta moral da Igreja na sociedade é um equívoco. Um sujeito não deixará de ser católico porque se divorcia, é homossexual ou toma anticoncepcional. Mas deixará de sê-lo no momento em que deixar de dar importância às romarias a Aparecida, ou de buscar os sacramentos na Igreja para si ou para os filhos. Porque são essas últimas atitudes que definem a identidade católica em si.

3.

Na Idade Média, quando a cultura ocidental estava impregnada de cristianismo, definir o que significaria “ser católico” estava longe de ser um problema. Todos eram, em certo grau, católicos. Erwin Panofsky aponta que neste período certas verdades sobre Deus e o cosmos estavam colocadas a priori pela própria cultura, de forma que mesmo um artista e um filósofo não viam necessidade de colocá-las em dúvida.

O mesmo não se pode dizer no período antigo ou do posterior à Reforma. Diante da cultura grega, e depois, com o protestantismo e o Iluminismo, a Igreja teve que buscar as raízes de sua identidade, e defini-las diante de um mundo em crise. E, curiosamente, as soluções que se colocaram foram muito diferentes entre si.

Na sua clássica polêmica com o paganismo, A Cidade de Deus, Agostinho consolida uma visão do cristianismo que se consolidou durante os cinco séculos anteriores. Ele parte da classificação das religiões estabelecida pelo filósofo Marco Terêncio Varrão: a mítica, narrada por poetas; a política, relativa às instituições e cultos do estado, e a natural ou a natureza do divino tal como se manifesta na natureza da realidade. À religião natural, Varrão chamava verdadeira religião, e afirma se tratar da Filosofia. Agostinho aceita a classificação de Varrão, e identifica a verdadeira religião com o Cristianismo, única religião cujos princípios estariam alinhados com a Filosofia clássica.

A identificação do Cristianismo com a Filosofia, que pode soar estranha aos ouvidos modernos, era plenamente reconhecida no tempo de Agostinho. Nas Confissões, ele afirma ter encontrado as verdades de fé católicas nos textos dos platônicos. Contudo, essa identificação entre platonismo e cristianismo não se deu sem luta: dois séculos antes, em sua polêmica com o filósofo pagão Celso, Orígenes de Alexandria pedia licença ao público cristão para demonstrar os fundamentos platônicos da fé cristã.

Com uma diferença: apenas o cristianismo era capaz de transformar os pecadores em homens virtuosos. Enquanto os grupos estoicos e outras escolas filosóficas de seu tempo só aceitavam membros que desmonstrassem previamente sua virtude, os cristãos aceitavam os pecadores. Assim, a Igreja se identificava com a filosofia na doutrina, mas era menos elitista e mais aberta ao povo comum.

Orígenes e Clemente fizeram parte do início da escola neoplatônica mais influente no mundo romano dos séculos III ao V, a de Plotino. Embora este estivesse em oposição ao cristianismo crescente, suas obras influenciariam o debate teológico posterior, e chegariam ao tempo de Agostinho como intrinsecamente ligados à doutrina da Igreja. Mas não de forma tão confortável. Tertuliano, por exemplo, seria um dos que se oporia a esta tendência, reforçando o seu credo quia absurdum.

Ratzinger vê nessa identificação entre fé e filosofia mais do que um acaso na história das ideias. Em Fé, Verdade e Tolerância, publicado pouco antes de sua eleição papal, ele aponta a defesa da razão como um objetivo comum entre filósofos e cristãos, diante de um período em que a religião tradicional estava a serviço de um império em decadência moral. Tanto a Filosofia quanto a Igreja ofereciam ao cidadão romano do tempo um ambiente virtuoso diante de uma sociedade em corrupção crescente. Por isso, surpreende-se Ratzinger ao ver que, no Iluminismo em diante, fé e razão tenham se colocado em campos tão opostos. Para ele, a combinação de fé e razão poderia proteger ambas de seus perigosos excessos, como o fundamentalismo.

Contudo, desde a Reforma até o Concílio Vaticano II, o movimento básico da Igreja foi se defender das ameaças externas. A Igreja do Concílio de Trento não era mais o movimento jovial e arrojado que desafiara os costumes do Império Romano nos três primeiros séculos da era cristã. Havia se constituído uma hierarquia – Weber diria “uma hierocracia” – estranhada pelo poder político e por riquezas. Ao mesmo tempo, não havia necessidade de missão ou apostolado – todo mundo se considerava católico.

Com a Reforma protestante, o primeiro desafio da Igreja foi definir o que seria e o que não seria católico. Por isso se universalizou a missa tal como se celebrava em Roma, instituiram-se os seminários para os padres e publicaram os catecismos. O projeto de Igreja que nascia em Trento esperava que a identidade católica exigisse mais que o reconhecimento dos sacramentos e de devoções comuns.

Contudo, a Igreja Católica do século XVI estava rica de dinamismo e de capacidade de se renovar. Dois líderes carismáticos se destacam neste período, ambos espanhóis: Teresa de Ávila e Inácio de Loyola. Teresa promoveu a reforma da Ordem do Carmo e, mais ainda, traçou um vigoroso caminho de espiritualidade que impressionaria inclusive uma discípula de Husserl na Alemanha dos anos 1920, Edith Stein. Inácio de Loyola fundou a ordem religiosa mais dinãmica e controvertida de seu tempo, a Companhia de Jesus, cuja disciplina ascética e capacidade missionária geraria preocupações entre autoridades políticas no século XVIII e resultariam na sua suspensão.

Mas as ameaças contra a Igreja só fizeram crescer. Primeiro foi a Reforma Protestante, que dividiu a cristandade européia entre católicos e não católicos. Depois foi o jansenismo, corrente rigorista com forte influência na França. Após a Paz de Vestfália e sob influência indireta da reforma anglicana, governos nacionais passaram a querer tutelar a Igreja em seus próprios territórios. Essa tendência ficou conhecida por galicanismo na França, pombalismo em Portugal e josefismo no Império Austríaco. Por fim, a Revolução Francesa e o Iluminismo colocaram em questão não apenas a Igreja, mas a religião em si.

Se a capacidade intelectual dos jesuítas permitia que eles travassem debates de igual para igual com opositores da Igreja, aos poucos o alto clero e a Santa Sé passam a preferir abordagens mais seguras. Os séculos XVIII e XIX viram o florescer da devotio moderna, uma tendência a manifestações emocionais de devoção iniciada no final da Idade Média, com as devoções ao Sagrado Coração e à Imaculada Conceição. Por outro lado, a Igreja se encastela ainda mais, com o Concílio Vaticano I e a condenação de diversas bandeiras levantadas pelas revoluções liberais, como a liberdade religiosa.

4.

Se a Igreja tratou de se defender dos perigos da modernidade, ela também acabou se afastando do homem moderno. Este diagnóstico estava bastante claro a certos católicos no século XIX, que trataram de buscar um novo sopro de jovialidade para a Igreja. As principais frentes de batalha foram a Inglaterra e a Alemanha, dois países governados por monarcas protestantes.

Na Inglaterra, os católicos veriam seu Renascimento por dentro da Igreja Anglicana. Clérigos ligados à universidade de Oxford desencadeariam o movimento tractariano, com o objetivo de resgatar as raízes católicas do cristianismo anglicano, e acabariam por se tornarem eles mesmos católicos romanos. O principal expoente deste movimento, o cardeal John Henry Newman, seria o responsável por uma teoria teológica que marcaria o Concílio Vaticano II: a de que a doutrina cristã, embora tenha sido plenamente revelada por Jesus Cristo, evolui o decorrer no tempo de forma que é possível haver novas abordagens. O discípulo mais famoso de Newman seria nada menos que Joseph Ratzinger, a principal influência sobre a constituição Dei Verbum, no Concílio, e posteriormente o papa que beatificaria o cardeal inglês.

Após os tractarianos de Oxford, uma nova onda de conversões aconteceria entre intelectuais ateus. Iniciada pelo romancista G. K. Chesterton, os novos católicos incluiriam C. S. Lewis, T. S. Elliot e j. r. r. Tolkien. Diferentemente de seus irmãos do continente, os católicos ingleses se destacavam por suas relações próximas com lideranças socialistas e a intelectualidade ateia – Chesterton era amigo pessoal de Bernard Shaw e H. G. Wells.

Na Alemanha protestante, os católicos acabariam por se destacar por sua capacidade criativa. Diferentemente de seus irmãos austríacos, que estavam no poder, os católicos alemães estavam sob a monarquia protestante da Prússia. Por isso, se organizaram politicamente de forma autônoma, no Partido do Centro Alemão, em oposição a Bismark. Como retaliação, Bismark submeteu os católicos a uma dura perseguição, a Kulturkampf.

A experiência política do Partido do Centro, na oposição a Bismark, aproximou os católicos alemães dos movimentos operários. Desta forma, em aliança com a social-democracia, mas também disputando com ela corações e mentes dos trabalhadores, os católicos alemães viriam a formular o início do que seria a Doutrina Social da Igreja, e influenciariam a encíclica Rerum Novarum.

No mundo de tradição católica, trava-se uma dura disputa entre o tradicionalismo ultramontano – referindo-se à Roma, cidade “além dos Alpes” em relação aos outros países europeus – e o modernismo, a versão católica do que judeus e protestantes chamariam liberalismo. Apesar de parecer simpático a um observador moderno, o modernismo tinha a mesma conformação elitista do ultramontanismo, apenas com sinal contrário. Tratava-se de um cristianismo aburguesado, sem cruz e sem martírio.

O modernismo católico foi condenado pela encíclica Pacendi Dominici Gregis, de Pio X. Mas entre os extremos do modernismo e ultramontanismo, um espírito jovial e renovador move a Igreja. Poderíamos chamá-lo de espírito do Concílio Vaticano II, mas sem erro também poderíamos chamá-lo de Espírito de Francisco.

5.

A polêmica entre modernismo e ultramontanismo se insere nos países de tradição católica, onde ainda abundam as sinecuras disponíveis para o clero, mesmo que sob o risco permanente da revolução. Nos outros casos, os católicos não podem simplesmente escolher entre uma fidelidade formalista à tradição ou a sua negação. Na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, América Latina, Leste Europeu, Oriente Médio ou nas áreas de missão na África e Ásia, os católicos tinham que encontrar o seu próprio caminho combinando a fidelidade a Roma e a resposta aos problemas concretos de suas localidades.

Isto porque nestes países havia a combinação de duas condições que faltavam aos europeus de longa tradição católica. Primeiro, o cargo eclesiástico ou a pertença à Igreja estava longe de se configurar um privilégio. Enquanto nos países de tradição católica o alto clero se batia em defesa de seus interesses, em muitos casos nos outros países estava em jogo a própria vida. Para os católicos destas regiões, a perspectiva de uma carreira eclesiástica não estava colocada da mesma forma que nos países católicos. Pelo contrário, a única motivação que os fiéis poderiam ter era a promessa do Evangelho: ter cem vezes mais aquilo que abandonavam, com perseguições, e a vida eterna (Mateus 19,29)

Segundo, a condição outsider do catolicismo nestes países colocava os católicos em contato com os setores mais modernos da sociedade local, os quais não viam a Igreja como inimigo. Esta acabava sendo uma posição privilegiada para se construir um posicionamento ao mesmo tempo ortodoxo e em diálogo com a modernidade. Por exemplo, entre as contribuições da Igreja Greco-Melquita ao Concílio Vaticano II está a celebração da missa em língua comum e a flexibilização no uso da batina, reflexos da experiência cristã inserida na sociedade islâmica.

Mesmo na América Latina e no Leste Europeu, países de tradição católica mas submetidos a condições sociais e políticas especiais, o cenário era mais parecido com os lugares de catolicismo minoritário. No Leste Europeu, as sucessivas invasões dos exércitos da Tríplice Aliança, dos nazistas e do Exército Vermelho fizeram com que países de longa tradição católica como Hungria, Eslováquia, Croácia e principalmente Polônia buscassem na religião sua identidade nacional. Na América Latina, a desigualdade e a extrema pobreza levaram parcela relevante dos católicos a uma crescente postura de crítica social.

Nos países de tradição católica, os carismáticos do caminho do meio também existiam. Poderíamos citar o círculo neotomista de Maritain na França, o Opus Dei e sua proposta quase herética para a época de santidade no mundo do trabalho na Espanha, Tiago Alberione e sua proposta de apostolado da comunicação social na Itália, o trabalho social do cardeal Cardijn na Bélgica, para ficarmos em alguns exemplos. Contudo, eles eram minoritários.

Neste ambiente, Roma adotou até o Vaticano II uma postura ambivalente. Por um lado, a cúria foi se posicionando como um polo criador de dificuldades para a modernização e, especialmente, de manutenção do status quo. Entretanto, o papa em si acabou sendo o principal veículo de reformas pontuais. De Leão XIII a Pio XII, pequenos ajustes foram acontecendo, como a reforma do Direito Canônico, o estímulo à comunhão frequente e a revisão do missal.

O que permitia ao papa ser o meio de transmissão das expectativas do povo católico dentro da cúria era, surpreendentemente, o conclave. Embora um observador externo seja tentado a ver no colégio dos cardeais uma espécie de nomenklatura soviética milenar, os cardeais que estão fora da cúria acabavam, de certo modo, tornando-se correia de transmissão do mundo extra-Roma para dentro do Vaticano. Isso mesmo no período pré-Vaticano II, quando o peso da Itália entre os cardeais ainda era majoritário. O fato é que os cardeais que estavam à frente de suas dioceses tinham que lidar com problemas reais de pessoas reais, algo muito distante da cúria romana.

Pois foi este colégio eleitoral que escolheu o cardeal Roncalli como papa João XXIII em 1958. E, desta forma, plantou a semente que 55 anos depois levaria um surpreendente Bergoglio ao trono de São Pedro.

6.

João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, que trouxe à ortodoxia católica o diálogo inter-religioso, o protagonismo dos leigos, o compromisso social, a renovação litúrgica e o diálogo com a modernidade. A partir do sucessor de João XXIII, Paulo VI, o colégio dos cardeais foi de tal forma ampliado e internacionalizado que colocou a figura do papa em uma posição cada vez mais alinhada aos anseios do católico comum e menos ao da burocracia da cúria romana. Não à toa, desde 1978 não houve nenhum outro papa italiano.

João Paulo II saiu de uma Igreja fora de qualquer zona de conforto, submetida a um terrível estado policial comunista, para sacudir o confortável mundo do catolicismo ocidental. Bateu de frente com o marxismo, mas também se bateu com tradicionalismo, ao excomungar a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X. O que o polonês Woytila queria era uma Igreja militante, aberta aos jovens e as famílias. Não à toa, visitou o México anticlerical, encontrou-se com os sindicalistas brasileiros em plena ditadura, reuniu-se com Fidel Castro, desafiou Brejnev e George W Bush. Sim, é verdade, encontrou-se com Pinochet e condenou os padres sandinistas na Nicarágua.

A eleição do teólogo Joseph Ratzinger foi uma tentativa dos setores mais carreiristas da cúria de retomar o controle da situação. Tímido e mais afeito ao debate intelectual, Ratzinger teve que enfrentar algumas das maiores crises da Igreja, como os diversos escândalos de pedofilia pelo mundo e as suspeitas de lavagem de dinheiro sobre o Instituto para as Obras da Religião, o banco do Vaticano.

Contudo, os momentos cruciais do papado de Bento XVI talvez estejam em seu último ato. O vazamento de documentos secretos do Vaticano expôs ao mundo, católico e não católico, um flanco relevante ainda não enfrentado no processo de aggiornamento iniciado no Vaticano II: a reforma da cúria. E a surpreendente renúncia do papa acabou por sinalizar que as condições para se enfrentá-la estavam colocadas.

Afinal, nunca em nenhum outro tempo passaria pela cabeça de um funcionário da Santa Sé optar por um ato de desobediência explícita em nome de sua própria consciência, como declarou Paolo Gabriele ao jornalista Gianluigi Nuzzi, a quem entregou os documentos vazados. Mesmo figuras de enorme influência no mundo católico, ao mesmo tempo ortodoxas e capazes de chamar o próprio papa à responsabilidade, como Bernardo de Claraval ou Catarina de Sena, nunca estiveram tão próximas dos aposentos papais quanto o mordomo Paolo Gabriele.

7.

O conflito entre progressistas e conservadores que se seguiu ao Concílio Vaticano II ofuscou a real contraposição que caracterizava a Igreja Católica desde a Contra Reforma: a oposição entre o simples fiel inserido no meio do mundo e o alto clero. Para o simples cristão, o apego formal às tradições que caracteriza o tradicionalismo e o conservadorismo de um Lefebvre não dá conta dos desafios reais que um católico precisa enfrentar ao estar inserido na modernidade. Mas tampouco o progressismo de um Hans Küng consegue levar em conta as simples devoções que sustentam a fé do povo mais simples.

Um cardeal com consciência do problema era o próprio Bergoglio, como apresentou, já papa, em entrevista à revista jesuíta Civiltà Cattolica:

O confessor, por exemplo, corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas.

O redirecionamento do foco da Igreja das polêmicas morais e teológicas para a cura das feridas do povo cristão, em si mesmo, é a maior revolução que a Igreja poderia sofrer. Para isso alertavam os carismáticos do caminho do meio desde o século XIX. Este era o foco do Concílio Vaticano II, ao afirmar que

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. (Gaudium et Spes)

O vaticanista alemão Andreas Englisch, em seu primeiro livro sobre Francisco, aponta duas atitudes de Bergoglio que causavam horror na curia romana: a insistência de mandar os padres de Buenos Aires para os bairros mais pobres, e a recusa de ter uma governanta para serviço pessoal – privilégio desfrutado por todos em Roma, inclusive o papa. A cobertura jornalística de Englisch se caracteriza justamente por ser crítico a Roma – basta ler o livro sobre Bento XVI para se ter certeza disso.

Por isso, considerando a votação que Bergoglio já havia tido no conclave que elegeu Ratzinger, Tarcício Bertone e Giuliano Amato, respectivamente secretário de estado e prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, trabalharam para formar um colégio eleitoral capaz de tornar a eleição do cardeal argentino impossível. Também por isso, foram surpreendidos com a eleição do papa Francisco.

Bergoglio teve uma trajetória peculiar mesmo para um cardeal latino-americano da primeira década do século XXI. Não era alguém que tinha passado tempo em Roma antes de ascender, não se destacava como professor de teologia nem era alguém de trânsito fácil na hierarquia. Foi superior da Companhia de Jesus na Argentina logo após ordenado sacerdote, em plena ditadura.

Enquanto o clero local se dividia entre os mais radicais da teologia da libertação – chamados no país de padres villeros, uma versão platina dos padres operários da Europa – e os que buscavam compor com o regime, tinha o desafio de conciliar a opção pelos pobres com a recusa à violência política. Apesar de ter dado proteção a diversos perseguidos do regime, ficou sobre ele a suspeita de que teria contribuído com a prisão de dois jesuítas, suspeita que foi bastante aproveitada pelos Kirchner quando, já arcebispo de Buenos Aires, posicionou-se como crítico do governo.

Após sua passagem neste cargo, assumiu posições periféricas na ordem até sua nomeação como bispo auxiliar de Buenos Aires, em 1992. Sequer conseguiu concluir seu doutorado em Freising. Nestes períodos, afirma ter feito seu verdadeiro mestrado em pastoral, conhecendo de perto os mais pobres da Argentina, seus sofrimentos e misérias. É neste período que se desenvolverá o estilo austero e simples que caracteriza o seu papado. Por exemplo, em sua conversa com o rabino Abraham Skorka, publicada no livro Sobre o Céu e a Terra, retiramos uma atitude interessante em relação ao ateísmo:

Quando me encontro com pessoas ateias compartilho com elas as questões humanas, mas não toco de cara no problema de Deus, exceto no caso de falarem comigo sobre o assunto. Quando isso acontece, eu lhes conto por que acredito. O humano é tão rico para compartilhar, para trabalhar, que tranquilamente podemos complementar mutuamente nossas riquezas.

Justamente por este estilo, sua ascensão ao cardinalato foi surpreendente. Contou com a simpatia de três pessoas bastante diferentes dele – o seu antecessor Quarracino e os papas João Paulo II e Bento XVI. A simpatia de Ratzinger, inclusive, protegeu-o dos golpes armados no interior da cúria romana, de acordo com Englisch.

Por sua trajetória peculiar, Bergoglio se cacifou perante os cardeais como o candidato mais indicado à sucessão de Bento XVI. O clero de fora de Roma, que desde sempre tinha que lidar com os problemas reais de pessoas reais, espera respostas para lidar com situações como os católicos divorciados, os casos de pedofilia, a crise de fé no mundo ocidental, o risco de vida para católicos em lugares como Oriente Médio, Paquistão e China. E, com o Vatileaks, espalhou-se a revolta nos cardeais não italianos, os quais decidiram que era hora de um basta.

8.

O primeiro ano do papa Francisco sinaliza para duas tendências estruturantes. Uma delas é o um impulsionamento da Igreja rumo àqueles cuja identidade católica está por um fio – divorciados, gays, pobres das periferias, cidadãos correntes que vivem sua crise de fé. A Igreja deve estar em busca destas pessoas. Por isso, na exortação apóstólica Evangelii Gaudium, afirma:

Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. (…) O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. (…) Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas.

Ou seja, reafirma-se o foco nas pessoas. Por isso, insiste que a Igreja não seja apenas voltada para si mesmo, mas tenha em mente as alegrias e esperanças dos homens e mulheres de hoje. Na entrevista do papa ao Fantástico, essa percepção se coloca quando ele menciona a evangélica portenha que guardava uma imagem de Nossa Senhora no armário.

A outra é uma reforma da curia, mas não apenas dela. Trata-se de uma revisão de postura do clero como um todo. A comissão para reformar o IOR e a incerta em um estacionamento para ver os carros dos padres fazem parte de uma mesma proposta: uma igreja mais pobre, como já defendia o outro Francisco, sete séculos antes.

Entretanto, deve ficar claro ao observador moderno que Francisco é um carismático do caminho do meio. Ou seja, não se deve esperar dele revisões na ortodoxia, à moda do progressismo pós Vaticano II. Mas também não se pode esperar o conservadorismo formalista que se opõe ao progressismo. O papa deverá atuar na combinação da ortodoxia doutrinária com a flexibilidade pastoral para tentar encontrar um jeito de lidar com os desafios do catolicismo na modernidade.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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