Análises sobre a nova classe média mostram o desconhecimento sobre as periferias
Não é por falta de esforço, mas a tal ascensão da nova classe média é algo que ninguém ainda entende direito. Apesar do volume de produção científica sobre o tema, o fato é que não há ainda uma explicação que não deixe margens a surpresas, de Russomannos a rolezinhos.
O assunto já surgiu de tentativas de se explicar uma surpresa: como um Lula desgastado pelas denúncias do mensalão e sob ataque constante da grande imprensa conseguiu vencer as eleições de 2006. Os textos de André Singer sobre o lulismo partiram de estudos anteriores que apontavam, em maior ou menor grau, para o mesmo fenômeno: havia uma camada social em ascensão econômica, cujo comportamento político começava a ganhar autonomia em relação às classes sociais mais ou menos superiores.
Desde então, a compreensão do fenômeno social “nova classe média” vem pautando o debate político e econômico nacional, e vindo sempre a reboque de novas surpresas e fenômenos misteriosos. Pauta religiosa na eleição de 2010, crescimento do consumo, Russomannos, manifestações de junho, black blocs, rolezinhos, cada um destes fatos dá um nó nos analistas de jornal – e mesmo nos acadêmicos – ao mostrar uma faceta desconhecida da “nova classe média”.
Junte-se a isso o fato de que determinadas análises chegam apenas para referendar uma ideia preconcebida do analista. Assim, o economista de banco que vai a Davos dizer que “quando os pobres sobem para a classe média, o voto não está mais atado a benefícios sociais” incorre no mesmo erro do sociólogo do PSTU que viu no rolezinho uma reedição da desobediência civil de Rosa Parks direcionada aos shopping centers. Ambos estão olhando não para o fenômeno social em si e seus significados, mas buscando argumentos para defender sua própria política.
Desta mistura de desconhecimento e wishful thinking, surgem alguns mitos que valem a pena ser destacados para melhor desmitificarmos:
- Há uma única “nova classe média”. Não, há varias, e não só porque o corte de renda mistura classes diferentes, como lembra Jessé Souza. Há processos de diferenciação dentro da periferia entre pessoas que se inserem da mesma forma na estrutura social. Este texto explica isso de forma magistral. Mais do que a divisão burguesia x proletariado, temos na periferia um padrão similar ao que Norbert Elias identificou em Os estabelecidos e os outsiders.
- A ascensão social muda os interesses políticos da nova classe média. Sim e não. Sim, se consideramos que, uma vez satisfeitas certas necessidades básicas, outros problemas aparecem – da falta de emprego à qualidade do transporte para ir ao trabalho, por exemplo. Mas não, o sujeito da classe C emergente não se tornará um poliglota amante de vinhos só porque melhorou de renda. Pelo contrário, ele leva suas disposições sociais consigo – e isso inclui religião, futebol e gosto musical.
- O discurso da ordem é contra a nova classe média. Como já expliquei em outra ocasião, não, a classe C emergente reúne os elementos mais conservadores da sociedade, e isso não tem nada a ver com uma alienação. É do interesse de uma ampla parcela dos moradores da periferia medidas como Rota na Rua ou proibição de bailes funks. Diferentemente de quem mora nos Jardins ou em Higienópolis, são eles que encaram de frente os bailes funk ou a alta criminalidade. Por isso, não se pode dizer que o funk é a expressão cultural da periferia sem completar que a rejeição cultural ao funk é fenômeno cultural da mesma periferia.
- Os mais pobres apoiam a corrupção. Não. A rejeição à corrupção é tão grande entre os mais pobres quanto entre os mais ricos. O problema aqui é a atenção á necessidade direta do sujeito da periferia. No passado recente, essa necessidade era atendida por meio do clientelismo, mantido por políticos conservadores. Agora, as políticas sociais conseguem atendê-las de forma mais direta. A oposição no Brasil ainda não conseguiu provar ao eleitor mais pobre que ela tem real compromisso com as políticas sociais, por isso a aprovação de Dilma permanece alta mesmo com a prisão dos mensaleiros. Não se trata de apoio à corrupção, mas de comprometimento com quem atende agora os interesses mais imediatos dessa parcela da sociedade.
Poderia citar outros mitos aqui, mas acredito que estes acima ajudam a dar uma ideia do problema que estamos enfrentando. Aqui trata-se de usar Marx ao contrário. Os intelectuais perdem muito tempo tentando transformar o mundo, mas o que importa é entendê-lo.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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