50 anos de “A Love Supreme”

Depois de ter estudado com Charlie Parker e ombreado com Miles Davis, Coltrane atingiu a maturidade criativa e técnica em "A Love Supreme".

lovesupreme

Lá pelo meio de 1964, John Coltrane se isolou no andar de cima de sua casa, num quarto pouco usado, com papel, caneta e o saxofone. Ele queria fazer anotações sobre a música que ouvia dentro de si. Só aparecia para apanhar comida e parecia muito compenetrado. Quando pareceu ter terminado o trabalho, desceu as escadas com uma inusitada serenidade, segundo sua esposa Alice:

“Parecia Moisés descendo da montanha, foi lindo. Ele desceu, e havia uma alegria, uma paz em seu rosto, uma tranquilidade. Eu disse: ‘Conte-me tudo, faz uns quatro ou cinco dias que a gente nem se vê…’. Ele respondeu: ‘Esta é a primeira vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto’”.

Três meses depois, em 9 de Dezembro, Coltrane entrou no Van Gelder Studio, New Jersey, com McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria) para gravar, em uma só noite, numa sessão única, os pouco mais de 30 minutos de A Love Supreme, o mais impressionante disco de jazz já gravado -, rivalizando apenas com o A Kind of Blue (1958), de Miles Davis, que conta, inclusive, com a participação de Coltrane. A Love Supreme seria lançado em fevereiro de 1965, impressionando músicos, fãs, não-fãs e a crítica – nem todos favoravelmente.

Já tinha ouvido falar do disco quando o comprei, em 1999, achando que era uma peça de soft-jazz para namorar – afinal, um disco com o nome de “Um Amor Supremo”! Mas o tal amor é a Deus e o disco foi concebido e é vendido, desde sua gravação, como uma peça de louvor ao divino. Sua base musical é o jazz modal (que não segue uma escala de tons específica) e o free jazz, com momentos ácidos e estridentes – diferente do que pode imaginar o ouvinte usual de discos de meditação ou new age com essa mesma intenção espiritual.

Tecnicamente, o disco tem três músicas: no lado A: “Acknowledgement” (7´47”), gravada em um único take e com o único registro em disco da voz de Coltrane, sussurrando o mantra-refrão) e “Resolution” (7´22”), gravada em sete takes; no lado B: “Pursuance/Psalm” (17´53”), que foi gravada de uma só vez, também em take único – a divisão da música se deve ao fato de, num determinado momento, Coltrane usar seu sax tenor como se fosse sua voz, como se pronunciasse um salmo – o texto que ele mesmo escreveu, louvando e agradecendo a Deus, e que vinha na contracapa da edição original do disco.

Malcolm X seria assassinado no momento que o disco chegava às lojas. No mês seguinte, enquanto o disco ia sendo ouvido e comentado, Martin Luther King liderava a Marcha sobre o Alabama, saindo de Selma. A Love Supreme parecia fazer parte do surgimento de uma consciência negra. Coltrane viveria, a partir do disco, como uma espécie de guru místico, não apenas para os fãs de jazz. Não por acaso, há até uma Igreja de São Coltrane. Até hoje, muitos se impressionam com a força espiritual do disco, mas a força musical é ainda maior e influenciou grandes nomes, em vários estilos musicais ou etnias, do clássico ou rock.

A linha de baixo que conduz o refrão de “Acknowledgement”, somada à frase repetida por Coltrane, com o nome do disco, já foi chamado de proto-rap – não por acaso, influenciou Gil-Scott Heron, o precursor do rap e do hip-hop. O pessoal flower-power da época podia não conhecer nada de jazz, mas conhecia A Love Supreme: era o disco que os universitários antenados ouviam, junto com Bob Dylan ou Grateful Dead. James Brown, Marvin Gaye e Jimmi Hendrix eram fãs do disco. Santana e McLaughlin gravaram músicas e discos inspirados pelo álbum. Interpretações e versões abundam. O disco é um dos dois únicos de jazz que fazem parte da lista dos 200 discos essenciais do Rock and Roll Hall of Fame. Patti Smith e Bono Vox não param de citar o disco. Durante o Grammy de 2001, Santana e Joni Mitchell iam anunciar o prêmio de Disco do Ano – antes de abrirem o envelope, gritaram que o álbum do ano era… A Love Supreme – que tinha acabado de ganhar uma edição remasterizada. (Quem levou o Grammy, de verdade, foi o U2.)

Depois de ter estudado com Charlie Parker e ombreado com Miles Davis, Coltrane atingiu a maturidade criativa e técnica em A Love Supreme. Ele morreria três anos e meio depois, aos 40 anos, vítima de um câncer de fígado, dizendo que acreditava em todas as religiões. Fazia dez anos que ele estava livre do vício da heroína e do álcool.

Dentre os fãs ilustres de Coltrane e de seu grande álbum, está Barack Obama, que tem uma foto do músico, assinada pelo fotógrafo Jim Marshall, em sua sala pessoal na Casa Branca. Nesses 50 anos do disco, ele mantém a sua força. Se você não conhece, vale a pena tentar.

(Quem quiser saber mais sobre a história desse disco fabuloso, em detalhes, procure por A Love Supreme: A criação do álbum clássico de John Coltrane, de Ashley Khan, lançado aqui pela Barracuda.)



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