A Bíblia no cinema

O "Noé" de Darren Aronofsky é mais convincente do que o grotesco "Êxodo" de Ridley Scott.


Noé, de Darren Aronofsky, e Êxodo: deuses e reis, de Ridley Scott, são dois filmes baseados em histórias do Velho Testamento levadas ao cinema e que estiveram em exibição no Brasil em 2014. O filme de Aronofsky entrou o ano em cartaz, e o de Ridley Scott teve sua pré-estreia agora às vésperas do natal.

Na maioria dos casos em que alguém transforma uma obra literária em cinema o filme fica bem pior que o livro. Acho, por diferentes motivos, que este também é o caso nestes dois filmes. O grande problema de transformar literatura em cinema é que roteirista e diretor precisam preencher com sua imaginação uma série de coisas que no livro ficam a cargo do leitor. E tem também as longas considerações sobre os sentimentos e o caráter dos personagens, algo difícil de fazer aparecer num filme, porque num livro o narrador pode desenvolver isso por escrito em forma de explicações, enquanto no filme as coisas simplesmente acontecem visualmente, e a parte sentimental precisa ser traduzida pelo comportamento dos atores, expressões faciais e, principalmente, fotografia e trilha sonora.

As narrativas da antiga literatura sagrada dos hebreus, embebidas em tradições religiosas ainda mais antigas do Meio-Oriente, são ricas justamente por deixarem muitíssimas lacunas nas histórias, de modo que o preenchimento dos pontos vagos vem durando milhares de anos de serviços dos comentadores de diversas tradições, dos midrashim às modernas pregações televisivas neopentecostais.

Qualquer tentativa de finalizar a história, dar-lhe um acabamento em forma de obra fechada, com começo-meio-e-fim, está fadada ao fracasso das simplificações. E não deixa de ser o que acontece nestes dois filmes.

Aronofsky se sai muito melhor que Scott. Segundo deduzo, parece que os dois filmes devem ter suscitado críticas dos líderes religiosos de plantão, por suposto desrespeito à “verdade” sagrada, que estaria contida na narrativa bíblica conforme as traduções modernas lidas sem nenhuma imaginação e com uma perigosa literalidade. Afinal, faz 100 anos que o fundamentalismo construiu sua versão autorizada de cristianismo, excludente de todas as demais, justamente pretendendo que as histórias sagradas fossem entendidas como narrativas factuais. Ou seja, o fundamentalista se identifica como cristão por acreditar que aquelas histórias aconteceram do jeito que estão escritas, e uma das principais preocupações dos autores que escreveram os panfletos com os “fundamentais” da fé foi garantir o copirráite do Pentateuco para Moisés.

Assim, eu diria que fazer filmes com histórias do que os cristãos chamamos de Velho Testamento é deveras salutar e essencial. Tanto quanto fazer filmes sobre o regime norte-coreano ou o Islã, mesmo com todos os riscos que isso sempre representa [Obs.: este post começou a ser escrito pouco antes do atentado ao Charlie Hebdo, tragédia que aumenta a força do que estou dizendo]. Risco maior é deixar que grupos religiosos ou políticos exclusivistas possam se arvorar como donos da verdade sobre alguma coisa.

Feitas estas ressalvas, posso agora dizer mais sobre os dois filmes como obras cinematográficas, e sobre suas relações com as obras literárias que os geraram.

noe

O Noé de Aronofsky é muito rico como obra artística e como narrativa fílmica, uma vez que não pretende apresentar uma história crível ou verossímil. Sequer se preocupa em ser muito fiel à narrativa do Gênesis. Aliás, uma história contada em poucos versículos, nos capítulos 6 a 9 do primeiro livro da Bíblia, cheia de elementos misteriosos, nada explicados e nada explicáveis.

O filme apresenta personagens humanos muito ricos, especialmente o Noé interpretado por Russell Crowe – um homem que discute com Deus como o Jesus e o Caim de dois livros de Saramago. Outra escolha que parece muito acertada ao interpretar uma história tão rica e complexa, é que Aronofsky preferiu não representar Deus. É quase como se ele só existisse na imaginação de Noé — ou talvez possamos pensar que Noé fosse até mesmo um alucinado, como suas atitudes em alguns momentos do filme deixam transparecer.

Por outro lado, partes que não existem no relato do Gênesis são inventadas no filme com um razoável empobrecimento da história, como o encontro da mulher de Noé com o idoso Matusalém (representado por Anthony Hopkins). Ou como os personagens mencionados em Gn 6:4, que nas traduções para português mais usadas pelos evangélicos são chamados de “nefilins” (termo hebraico traduzível como “caídos”), mas que na King James está simplesmente como “gigantes” e na versão de Lutero como “Zeiten Tyrannen auf Erden” (algo como “tiranos dos tempos das terras”: no filme são anjos de luz aprisionados em calcário. .Pior ainda é a entrada clandestina de Tubalcaim na Arca.

A figura do homem que discute (ou briga) com Deus é mesmo talvez uma das preferidas da literatura sagrada, bem como sucesso garantido na literatura em geral, como atestam o Jesus e o Caim de Saramago, ou, um outro bom exemplo, o Tevye de Um violinista no telhado.

O Moisés de Ridley Scott poderia ser colocado talvez no mesmo patamar, e o filme teria qualidades comparáveis ao de Aronofsky, além do mais porque também toma liberdades parecidas com a narrativa, o que enriquece a obra cinematográfica.

Mas o problema é que a história que Aronofsky escolheu para filmar tem a vantagem de ser muito mais vaga, em tempos imemoriais e em lugares que não necessariamente existiram de fato. Já o tema escolhido por Scott é muito mais perigoso, por ser uma narrativa mais ancorada numa possível existência histórica. No mínimo, o pano de fundo do Egito dos faraós e a geografia que vai do Nilo ao deserto da Arábia passando pelo Mar Vermelho são bastante reais.

E o filme de Scott tropeça justamente na pretensão de historicizar sua narrativa fílmica. Me parece bastante convincente o incrivelmente bem cuidado retrato visual do Egito dos faraós, embora para meus olhos o uso do 3D seja excessivo e muito cansativo no início do filme (depois melhora, ou será que são meus olhos que se acostumaram?). Mas as tentativas de dar uma sustentação histórica real aos mitos fundadores da nação judaica esbarram em problemas variados de consistência.

exodus

Scott preenche os vazios da narrativa bíblica sobre a vida de Moisés na corte de faraó – até aí nada demais, seu filme fica parecido com a animação já feita pelos Estúdios Disney para a mesma história (suspeito que com melhor resultado). Mas pesa a mão quando tenta apresentar a ação de Moisés como a liderança de uma sublevação escrava que a narrativa bíblica nunca pretendeu que ocorresse. Seria como se Scott tentasse imputar aos hebreus escravizados no Egito um fervor patriótico só desenvolvido nos tempos dos macabeus (quando talvez essas narrativas começaram a ganhar forma definitiva nos escritos sagrados), ou um zelo religioso violento só encontrado nos tempos da Judeia romana. Ou ainda uma ousadia de resistência que os judeus abandonaram por milênios para tentar viver em paz como cidadãos de segunda classe ou moradores de guetos nas civilizações muçulmanas e cristãs, e que só retomaram com o sionismo militante do século XX. Ou seja, é como se os hebreus dos tempos de faraó fossem os zelotas da fortaleza de Massadas no século I da era cristã, ou os heróis do Cerco de Varsóvia na guerra de 1939-45.

Se Scott estivesse tentando fazer como Saramago em Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Caim, e imprimindo uma verossimilhança histórica para depois entrar com uma ironia fina e iconoclasta, talvez ficasse melhor do que o que ele fez. Moisés organiza uma resistência guerrilheira, mas não é isso que liberta os hebreus, e sim pragas ainda mais inacreditáveis do que as da narrativa do Êxodo. Isso mostra que a criatividade de Hollywood para embelezar narrativas ideológicas ou míticas é ainda maior que a dos escribas que deram forma aos textos sagrados conforme o interesse de consolidação das monarquias de Israel.

Do mesmo modo, a passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho aproveita a maré baixa e o caminho natural que até hoje existe no fundo deste mar, mas o afogamento das tropas do faraó vem com um formidável maremoto de exagero desproporcional. Tudo bem se Scott fizesse isso como Saramago, para dar mais força às pretensões de ironia iconoclasta. Mas não é nada disso, ele parece acreditar na história que está tentando contar, o que faz o filme ficar muito fraco esteticamente.

Para coroar as bobagens feitas pelo diretor, podemos colocar como absurdo máximo a maneira como Deus aparece para Moisés no filme. Não explico mais aqui para não atrapalhar quem quer assistir o filme. Basta eu dizer que Scott se aproxima do nível de criatividade, por exemplo, de um William Young (autor de A cabana) em retratar o divino. A tentativa de simplificar Deus acaba sendo a única coisa realmente ofensiva do filme – embora deste pecado Scott não seja mais culpado que os fundamentalistas.

Para resumir, um comparativo: Aronofsky com seu Noé abusa da imaginação e produz um relato inverossímil, que por isso mesmo pode ser convincente como arte; Scott com seu Êxodo abusa da pretensão de verossimilhança histórica, e acaba produzindo uma caricatura grotesca, nada convincente.

Amálgama




André Egg

Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).


Amálgama






MAIS RECENTES


  • Diogo

    Sobre a passagem pelo Mar Vermelho, no filme não foi devido à maré baixa que eles atravessaram. Você não deve ter notado mas um asteroide (ou meteorito) caiu do céu no mar. Isso aparece quando ele estava deitado e vê uma estrela cadente passando. Quando amanhece o mar estava aberto.