O atentado em Paris e o sequestro do Islã

A força retórica do fundamentalismo destruiu de modo avassalador as heranças milenares da Civilização Islâmica.

Meca, Arábia Saudita

O atentado em Paris, com a morte dos cartunistas do Charlie Hebdo, reacendeu a discussão sobre o fundamentalismo no Islã. Ainda sendo notório que grande parte da violência religiosa moderna se origina no discurso radical muçulmano, a realidade é mais complexa do que uma rápida tentativa de simplificação. O islamismo é hoje refém do terrorismo e a relação entre a secularização e o fundamentalismo é proporcional.

O fanatismo islâmico como hoje é conhecido tem a sua origem no wahhabismo, isto é, a reforma concebida por Abd Al-Wahhab no século XVIII, e que foi transformada em bandeira política pela família Saud. Com o surgimento da Arábia Saudita, a seita wahhabita inicia a sua expansão missionária em todo o mundo muçulmano e também no Ocidente. Mesquitas e centros islâmicos são construídos com a generosidade dos reis da família Saud e se tornam faróis do anacronismo. Entretanto, este fundamentalismo reformado, que durante o seu surgimento foi condenado como heresia pelas grandes escolas de jurisprudência sunitas, se tornou na força ideológica dos mais variados movimentos terroristas, da Al-Qaeda ao Estado Islâmico.

O mundo muçulmano, além disso, também se viu invadido pelo secularismo ocidental. Em países como Turquia, por exemplo, o aumento do pensamento liberal europeu fomentou o fortalecimento do discurso radical. Nesse sentido, secularistas e fundamentalistas vivem numa relação de retroalimentação. A forte presença política dos wahhabitas – ou “salafistas”, como preferem ser chamados em referência aos “salafis”, as três primeiras gerações de muçulmanos – incrementa a bandeira liberal. Ademais, o crescente apogeu do liberalismo também revigora a paixão pela pureza religiosa “primitiva”.

Na Europa, a comunidade islâmica inglesa e francesa tem uma história já secular. A imigração de muçulmanos para esses países tem o seu início durante a conquista das novas colônias. Paquistaneses na Inglaterra e argelinos na França. Contudo, o aumento de imigrantes nas últimas décadas e a expansão do discurso fundamentalista no Ocidente criou o meio mais eficiente para a radicalização dos muçulmanos europeus. Além disso, a secularização cada vez crescente do islamismo ocidental, um fenômeno vivido pelo cristianismo em décadas passadas, reforça a fanatização da identidade do fiel islâmico.

O atentado de Paris possibilita uma dupla reflexão. Por um lado é necessário reconhecer como o sunismo se tornou refém do discurso wahhabita. A força retórica do fundamentalismo destruiu de modo avassalador as heranças milenares da Civilização Islâmica. Até mesmo o Islã africano, conhecido pelo seu caráter místico, pela simplicidade e pela tolerância, é hoje um epicentro do fanatismo, seja com o Boko Haram na Nigéria ou com a “circuncisão” feminina na Somália. A escola Maliki de jurisprudência, amplamente estabelecida na África, vem sendo sistematicamente substituída pela cosmovisão “salafista”, abrindo as portas para o terror.

Por outro lado, a relação entre a secularização e o Islã é complexa. Na perspectiva muçulmana não existe uma distinção entre o secular e o profano. Muhammad era o Profeta e o líder político. Os seus sucessores detinham a autoridade militar e religiosa. A tentativa de reproduzir no mundo islâmico o ideário político ocidental possibilita um rompimento radical de mentalidade, o que se torna, por sua vez, em combustível para o fundamentalismo. A secularização forçada da Turquia com Attaturk ou da Pérsia com Pahlevi criou mais ressentimento do que unidade social. Os muçulmanos europeus se tornam em alvos privilegiados da sedução terrorista sempre que se veem expostos à desconstrução identitária.

Uma cortina de fumaça é agora lançada. O Islã se torna alvo principal de análises de conjuntura, mas os verdadeiros responsáveis pela disseminação ideológica do terror, os sauditas, continuam encarnando o papel de aliados no Oriente Médio. A Arábia Saudita acolheu a Irmandade Muçulmana, ajudou na fundação do Talebã. O Catar, que também é wahhabita, recentemente acenou uma aliança com o Hamas. O Rei Faisal foi o grande missionário, construindo mesquitas e enviando sheikhs wahhabitas para todos os cantos do globo. Contudo, a criatura saiu do controle e a própria Arábia Saudita se viu como alvo da Al-Qaeda e pouco querida pelo Estado Islâmico. O estrago já estava feito. O sunismo foi sequestrado e o Islã tradicional se tornou numa caricatura obscena que não foi feita por Charles Hebdo, mas por Wahhab e por Saud.

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  • João Philippe Lima

    Arábia Saudita, Catar e os outros petroestados árabes do Golfo Pérsico em menor grau, são os grandes responsáveis pela disseminação do fundamentalismo islâmico pelo mundo. Duvido que o Islã ultraconservador e reacionário dos Wahabitas teria se espalhado pelo mundo e se transformado nessa ameaça se esses países não estivessem financiando a construção de mesquitas, centros comunitários e veículos outros de propagação dessa ideologia. O caminho para combater o extremismo islâmico passa necessariamente por coibir a influência desses países e do islã que eles disseminam mundo afora. Enquanto os líderes mundiais não fizerem nada a respeito, vai continuar a mesma coisa.