A equipe de "Charlie" fazia seu trabalho com a força da charge
Em filmes antigos de guerra, do tipo que retratavam soldados napoleônicos com seus casacos azuis e faixas brancas cruzadas no peito, uma cena era recorrente: a do oficial que ordena a seus comandados que disparem o canhão contra as tropas inimigas com o grito de “Charge!”. Quando o filme era dublado, o grito que ouvíamos podia ser traduzido como “Carga”. Não foi por coincidência que o gênero mais combativo de humor gráfico, onipresente em qualquer jornal digno do nome, tenha tomado de empréstimo esse termo bélico em francês. A charge é o desenho que carrega nos traços e nas atitudes para criticar políticos e empresas, figuras religiosas e laicas, usos e costumes da sociedade onde quer que haja um chargista com a liberdade necessária para atuar.
Tal associação foi feita e mantida inalterada também em nossa língua, mesmo tantos anos passados desde o tempo em que deixamos de nos influenciar pelos franceses e passamos a entrar definitivamente na esfera cultural dos Estados Unidos. A França, com suas tradições iluministas, pátria da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, é o país que, ao lado do Japão, mais reconhece e apoia a importância de tudo relacionado aos quadrinhos. O jornal Charlie Hebdo era uma das estrelas dessa tradição honrosa de contestar através do humor a tudo e a todos. Reunidos pelo editor-chefe Stéphane Charbonnier, ele próprio um chargista de talento, estava um elenco de artistas mundialmente reconhecidos, como Charb, Cabu, Tignous e Wolinski.
Charlie Hebdo comprava brigas em suas corajosas páginas, que podemos comparar em termos brasileiros ao que foi o jornal O Pasquim nos tempos de nossa última ditadura ou à revista Chiclete com Banana (na qual fui apresentado a Wolinski no começo dos anos 90 em texto assinado por Angeli) nos governos Sarney e Collor.
Uma das brigas mais constantes e rumorosas do jornal francês, que provocava tanto críticas quando admiração, era a de ir contra os preceitos islâmicos que proibem que se faça desenhos do profeta Mohamed, autor do Corão. Já haviam sido alvos de uma bomba, após uma dessas publicações. Felizmente a explosão não feriu ninguém e nem fez os jornalistas e humoristas pararem com seu trabalho. E a equipe do hebdomadário fazia esse trabalho com a força da charge, usando da mais contundente sátira que somente a liberdade de imprensa permite a um artista usar para se expressar e com isso contestar o mundo onde vive.
Fazia. Porque agora tanto o editor Charbonnier, quanto seus artistas Charb, Cabu, Tgnous e Wolinski, entre um total de doze vítimas fatais divulgadas enquanto escrevia este texto, estão mortos, após um novo e muito mais violento atentado. Foram assassinados. Seus assassinos invadiram a sede da publicação, em Paris, mascarados e armados com metralhadoras e uma bazuca. Um ataque do terror anônimo e violento contra o humor e a liberdade de imprensa. Balas usadas contra a peça de humor que tomou seu nome de empréstimo dos tiros de canhão. O assassinato real contra o recurso que justamente substitui a violência pela inteligência.
Desde o assassinato do cartunista e quadrinista brasileiro Glauco, criador do Geraldão, em 2010, não me chocava tanto com a notícia da morte de algum artista ligado ao humor gráfico. Mas o atentado ocorrido neste Sete de Janeiro é infinitamente mais grave, porque alimentado pela intolerância que quer se impor à força. Pela violência que nega a existência do outro. Forças do obscurantismo contra as quais só podemos usar uma arma: a liberdade.
Romeu Martins
Jornalista formado pela UFSC. Desde 2009, tem publicado contos de ficção científica, fantasia e terror, tendo participado da primeira coletânea nacional dedicada a Sherlock Holmes.
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