A guerra fragmentada como terror é a completa ausência de sentido maior
“Os homens estão mais parecidos
com seu tempo do que com seus pais.”
Guy Debord
“Que odeiem, desde que temam.”
Cícero
1.
Abro o jornal do meu tempo, as redes sociais, onde as notícias perambulam de maneira caótica (mas não sem sentido), e vejo que o ISIS esteve a publicar um novo vídeo íntimo de sua barbárie. Sinto-me como quem acompanha a vida de um famigerado assassino numa minúscula tela diante do escuro. Uma espécie de Zeke Hawkins do filme Invasão de privacidade. Dessa vez, o jogo é comandado por quem se deixa filmar. Para o terror de hoje, a morte só pode adquirir significado diante da imagem de horror, numa estética feita para causar mal-estar.
Só é aquilo que parece ser. O lema do Ocidente nos dias atuais foi bem entendido e incorporado pelo Estado Islâmico em seu ressentimento. O vídeo veio na semana seguinte aos atentados em Paris efetuados pela Al-Qaeda do Iêmen. Ambos os grupos terroristas são jihadistas. O jihadismo, inspirado no Wahhabismo, busca a fé perfeita e idealizada dos primeiros dias de Islã contra os apóstatas de hoje. É uma ideologia política moderna (e salvacionista) obviamente antiocidental. Todavia, em sua expressão mais crítica (ISIS),ela não só se estrutura em redes, como usa ativamente todos os meios disponíveis no mundo moderno: filmagens, ataques virtuais, podcasts, mídias sociais, tudo que a inovação tecnológica pode oferecer.
Estes aspectos, para além do discurso ordinário, parecem ser sempre desprezados na maior parte das análises feitas após o espetáculo terrorista em Paris. Como em 2001, após o 11 de Setembro, há os triunfalistas (que insistem na superioridade do progresso da civilização), os multiculturalistas (uma desculpa que vocaciona seu ressentimento com os pais ocidentais) e os anti-Islã (que enfatizam aspectos gerais do islamismo). Em comum, os três grupos tratam o problema do “terrorismo islâmico” reforçando o segundo termo.
Seria eminentemente uma questão de fundamentalismo na defesa do Islã, resumindo-se aos radicais de uma religião que resolveram sair por aí matando em nome de Allah. Os três grupos destacam o choque civilizacional (que existe) em diferentes polos. Enfoca-se demais o discurso do envolvido, suas razões ou aspectos imediatos, e se esquece da estrutura que suporta a prática e da imitação do que se quer superar. Pois, se a liberdade de expressão construída no Ocidente foi atingida, é também da essência da provocação conter algo que nos tange.
Minha perspectiva é outra. O problema do terrorismo é o terrorismo. Mais antigo do que o Ocidente, este assumiu facetas mais significativas em nossos tempos, o que em si já indica que o fenômeno não pode ser reduzido às doutrinas religiosas. Numa ótima entrevista após o 11 de Setembro, René Girard lembrou duas coisas fundamentais. A primeira é que o “terrorismo islâmico” não pode negar em absoluto o Ocidente, pois na “rivalidade mimética” se imita algumas formas do adversário. Diz o francês: “a competição é o desejo de imitar o outro, a fim de obter a mesma coisa que ele ou ela tem, e, caso necessário, pela violência”. Afinal, eles utilizam nossas armas: espetáculo, redes, internet, fragmentação.
A segunda é que, na leitura dos escritos de Bin Laden, lhe chamou atenção a alusão ao bombardeio americano do Japão. Para Girard, Bin Laden pertencia a uma dimensão que transcendia o Islã. Diz ele: “Sob o rótulo de Islã, encontramos uma vontade de reunir e mobilizar o terceiro mundo daqueles frustrados, as vítimas em suas relações de rivalidade mimética com o Ocidente”. O francês lembra que nas torres também havia muitos estrangeiros, e que o planejamento e sofisticação do ataque não pode ser feito sem se tornar também um pouco americano.
A barbárie perpetrada pelo terrorismo islâmico atinge não só o Ocidente, mas principalmente muçulmanos, cristãos, yazidis, curdos. Todavia, ele não é só uma ideologia política, mas está inserido em um espaço e em uma espécie de psicologia. O fato de milhares de jovens europeus se atraírem pelo ISIS sem nunca terem tido antes qualquer ligação com o Islã deveria inquietar o Ocidente.
A revolta obstinada contra a realidade é a parte integrante (como outra face da moeda) do tédio e banalidade do mundo moderno. Criar a ordem futura por um passado idealizado (e tornado em absoluto), ou criar a ordem futura (e perfeita) em nome da justiça ideal ou do paraíso individual, guardam entre si uma forma idêntica: o desejo em superar os limites da estrutura da realidade, transfigurá-la, recriá-la em imaculada concepção. Eric Voegelin chamava de “fé metastática” toda tentativa de eliminar as tensões da existência. O seu substrato é sempre uma ideologia (secular ou religiosa) que sugere a possibilidade do ser humano sair do entremeio terrestre. Em síntese, a busca pelo absoluto ou paraíso na terra.
Em um texto do ano passado, especulo a respeito do homem revoltado. Para o homem revoltado, nunca se trata de defender uma causa, mas de vivenciar essa luta, identificar-se com ela, entregar sua paixão pessoal e seus impulsos, em nome, não da causa (mera desculpa), mas de uma fantasia histérica, fruto de um impulso incontrolável para fugir do tédio e da banalidade. Para realizar essa fantasia, ele entrega seu coração, sua liberdade e, se precisar, sua vida. Nele, encontramos a acídia, ou seja, o cansar de si mesmo. Estes indivíduos frágeis, que não compreendem as nuances da realidade e os limites impostos por ela, sonham com uma harmonia perdida, esplendor que, para se realizar, só pode ser também um “sonho de domínio”, numa tentativa de comunhão para se auto-afirmar desesperadamente. Por isto, os regimes totalitários, imbuídos pela revolta, sempre explodiram o cotidiano, e, contra a banalidade da vida burguesa, implantaram o estado de terror e guerra contínuos.
Se, no Ocidente, com o hipermoderno, essa revolta tornou-se mais volátil, entrando pela cultura e não por um “assalto ao poder”, no mundo muçulmano ela tende a fragmentar a guerra, intensificando os interstícios da ordem ao agir num mundo paralelo à política instituída, impondo o terror psicológico.
Em Da guerra, Carl von Clausewitz demonstrou que a guerra era a continuação da política por outros meios. O aparato técnico-militar, a inovação tecnológica, as estratégias definidas, o cálculo racional das possibilidades e a moral em torno do uso da força só poderiam ser colocados à disposição de um aparato político. Por isto, a guerra é a administração da força em seu sentido extremo. E, sendo assim, se sabe com clarividência a força que será utilizada, mas jamais a extensão e intensão da reação. Portanto, são dois elementos da guerra: a) a reação a cada ato de agressão, b) a imprevisibilidade dos limites dessa reação.
O terror é uma tática que fragmenta a guerra. Quando os revoltados o utilizam, junto com todo aparato técnico e simbólico, mostram que são muito mais filhos do seu tempo do que homens do passado dissonantes de uma evolução pré-determinada, de nome progresso, ao contrário do que imaginam os liberais mais triunfalistas.
Walter Laqueur lembra que a história do terrorismo é muito antiga, mas, antes do século XX, havia uma espécie de consciência moral em não atingir civis ou famílias. Os alvos prediletos eram chefes de estado, pessoas que concentravam boa parte do poder instituído. O terrorismo contemporâneo é cada vez mais espetáculo do terror, encontra-se por toda parte, quer mais causar impressões imediatas de medo e pânico do que atingir algum resultado objetivo. Quando atinge a liberdade de expressão, não espera que isto resulte em algum evento decisivo, tão-somente provocar espanto e temor, e estas são os instrumentos do seu poder político fragmentado.
As atividades e estrutura do terrorismo de hoje são descentralizadas, dependendo do fator surpresa. Isto, num momento onde as guerras concentradas, com invasão territorial e grande aparato humano e tecnológico, tornam-se muito custosas e potencialmente perigosas.
Neste sentido, o terrorismo contemporâneo fragmenta também a política e o cotidiano que lhe circunda. O terror atinge, em especial, a honra da continuidade. Ele destrói a tradição mesmo quando a utiliza como desculpa da revolta perene. O código de honra do terrorismo tradicional ameaçava figuras públicas com o poder na mão, mas não ameaçava civis indiscriminados, tampouco suas esposas e filhos. Desde tempos imemoriais os homens vão à guerra, não por machismo, nem somente por questões biológicas, mas porque a mulher e sua prole representam a continuidade na vida, o semear dos frutos, a base que deve sustentar valores e tradições no tempo, estruturando e mantendo a ligação entre as gerações vindouras e as de outrora. Quando se dirigem à batalha na defesa do seu ser, mantém a esperança de que no lar, mulher, filhos e anciãos repousariam em proteção. A vida poderia se interromper, mas atravessaria o rubicão do tempo através de seus laços na família.
Com a fragmentação da guerra, ou seja, com ela “na porta da nossa casa”, não há o que vencer, pelo simples fato de inexistir nela substância. A guerra fragmentada como terror é a completa ausência de sentido maior, é o espetáculo da brutalidade de existir, da violência sem mediação. Não permite proteção, indiscrimina família, nem possibilita a travessia do rubicão do tempo. Agora, o campo de batalha virou qualquer lugar a qualquer hora, tornou-se fluído como o tempo do cotidiano. A família pode ser explodida, de repente, numa torre americana, numa sinagoga em Londres, num trem em Madri ou num prédio qualquer em Paris. É a guerra picotada contra o sentido maior da realidade, como no Ocidente se faz através da cultura.
O terror não quer conquistar o espaço, mas gerar um efeito psicológico — na verdade, contra o sentido de existir. O terror dissemina o pânico na sociedade, provocando uma mudança de comportamento. E a reação a ele, em suas extensões, ainda é desconhecida, mas não improvável.
2.
A sociedade do espetáculo de Guy Debord é um livro muito falado, mas geralmente por caricaturas. A incompreensão do sentido dado pelo autor ao termo “imagem” advém do preciosismo dialético de seu hegelo-marxismo (com Hegel na frente). Embora eu não esteja de acordo com sua base intelectual, um conceito sempre me chamou atenção. Não no seu livro, mas em outro texto, de 1988, “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”. Vinte anos depois da euforia de 68 (que leio como Pascal Bruckner: o símbolo de uma nova fase da modernidade), Debord reflete a respeito de uma nova forma de poder, o poder integrado.
Anteriormente, teríamos o poder concentrado, que seria burocrático, centralizador, estatizante, seriam as antigas ditaduras comunistas; e o poder difuso, um pluralismo que oferece as diferenças numa equivalência-geral, correspondendo às democracias liberais. O poder integrado seria a junção entre o concentrado e o difuso. O coração desse poder mora na incontestabilidade absoluta que a noção de meios e interesses adquiriu dentro do conceito de cultura e natureza. Neste sentido, o poder integrado é globalista por excelência.
Encontra-se por toda parte, macaqueia a ideia de unidade, e quer fazer de si a medida de todas as coisas. As políticas elaboradas por ONU, UNESCO e demais entidades são apenas uma pequena amostra disso. É a realização de uma pretensa perfeição.
Mais desgarrado de suas crenças ideológicas, Debord afirma que o fim da divisão do trabalho (basicamente a definição de comunismo por Marx na Ideologia alemã) é um “júbilo carnavalesco” não tão improvável do próprio espetáculo. Pois o desaparecimento da competência verídica (que prefiro encarar como a verdade) representa o princípio mesmo do poder integrado, como administrador de um tempo fragmentado jogado ao léu dos desejos de impérios pessoais (daí preponderância dos meios e interesses). Boa parte da nova esquerda cultural celebra isto, dando o nome de “empoderamento”.
Debord afirma também que não é mais possível distinguir entre o agente secreto e o revolucionário profissional, pois o segredo generalizado é uma das características do poder integrado. As outras são: a inovação tecnológica, a fusão econômico-estatal (no fundo, o bom e velho socialismo – em todas suas tipologias – nunca passou disso), a mentira sem contestação, e o presente perpétuo.
Um dos elementos mais importantes é a supressão do passado, com o empobrecimento da experiência e da memória, que acarreta a falta de imaginação histórica. Quando esta não é suprimida pela vontade de poder proporcionada pelos desejos sempre imediatos e renovados, é instrumentalizado em nome da ideologia política. A crença no presente perpétuo como referência é típica do que chamo de cultura do repúdio, que almeja sempre o “começar de novo”, esvaziando a experiência pela imediaticidade do momento. Ela se contrapõe ao espírito da história contido na frase de Tucídides: “uma aquisição para sempre”. Se o presente é a medida de todas as coisas, o real vira uma percepção momentânea. E o valor vira pose. E um grande déficit de história impossibilita qualquer ordem da sociedade e sua condução.
Hoje existem milhares de aparatos técnicos e psicológicos que facilitam vários níveis de controle. O grande perigo da reação ao “terrorismo islâmico” é cairmos num tipo de rivalidade mimética, onde o Islã vira o bode expiatório e forja um tipo de pertencimento farsesco e caricato que amplie o poder integrado. Ou, por outro lado, que o multiculturalismo ingênuo e o laicismo destruam definitivamente a base de nossa civilização.
O problema do terrorismo é uma ameaça que se põe global, tornando-se uma bela tentação para aumento do poder transnacional. Neste sentido, enquanto rivalidade mimética, poderemos também estar a imitar um estado de terror e esforço de guerra contínuo. Se nada compreendermos além do imediato sentimento de ameaça e desejo de vingança e proteção terrena, não fica tão difícil imaginar uma espécie de 1984 com um Grande Irmão volátil. Mais do que algumas medidas básicas de proteção, urge pensar: afinal, o que somos? E para onde estamos indo?
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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