Relativistas e niilistas não estão preparados para defender valores inegociáveis

Os radicais do Ocidente parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam é inconcebível fora do Ocidente.

jenesuispas

É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.

O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado.

Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo… Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).

Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis.

Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.

Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).

Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc.) são inconcebíveis fora do Ocidente.

A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.

Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos.

No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.



  • Julio Zapeta

    O professor de sociologia ouviu o galo cantar mas não sabe onde. Se pelo que bem entendi, o professor de sociologia não gosta que falem de colonialismo, racismo, etnocídio gerado pelo Ocidente. Para o professor de sociologia, a gente deve apenas louvar os valores do Ocidente. Logo depois, cita de maneira atrapalhada Walter Benjamin, pois se há algum sentido em dizer que não há documento de civilização que não seja documento de barbárie é o de compreender dialeticamente a imbricação entre civlização e barbárie. Mas o professor quer separar o joio do trigo. Ironia das ironias: o professor que tanto critica o relativismo cultural parece relativizar a bárbarie do Ocidente. Quer ver os belos monumentos da civilização ocidental apartados da barbárie que os tornou possível (para que falar dos 15 milhões de congoleses trucidados por Leopoldo II, rei dos belgas, se a Declaração dos Direitos do Homem é tão linda?); e quer ver os mouros apenas como bárbaros (e não como grande civilizadores que foram da Europa, afinal, sem eles, o professor sequer poderia fazer conta de padaria). Ou seja, dialética nenhuma. O mais engraçado é que no Choque de Civilizações de Samuel Huntington, o circunspecto cientista político enumera 8 civilizações. Nessa esquema, a América Latina não faz parte do Ocidente – essa entidade abstrata e arbitrária, inventada por gente que nem sequer pensou em incluir os submissos intelectuais brasileiros nessa grande e artificial família.

    • Fernando da Mota Lima

      Julio Zapeta: não sei se você distorce tão grosseiramente meu artigo por ser um leitor dogmático ou simplesmente por ignorância, já que escreve tão mal. Não vou corrigir seus erros de lógica e linguagem. Vamos um pouco à substância da sua crítica. O colonizado cego para a dialética, que aliás não é invenção dos dogmáticos modernos, muito menos de Engels e Marx, já que remonta pelo menos a Sócrates (favor não confundi-lo com o ídolo corinthiano, dr. Zapeta), o colonizado é você. Aposto como você fez treinamento militar em alguma pós-graduação, todas colonizadas pelo radicalismo de cátedra gozado por Merquior. Por isso você é incapaz de ver que menciono explicitamente os atos pavorosos da barbárie ocidental antes de celebrar seus feitos culturais. Você é tão dogmático, ou ignorante, que omite este fato crucial: foi graças à dialética entre cultura e barbárie que os crimes do genocida Leopoldo II foram denunciados pelo mundo inteiro. Quem desmascarou a suposta filantropia desse carrasco, comparável a Hitler e Stalin, foi um intelectual extraordinário chamado Roger Casement. O romance O Último Ceuta, duvido que você dê alguma importância a Vargas Llosa, autor desta obra, é uma recriação ficcional da vida de Casement. O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, outra prova da dialética que você nem leu nem viu, é outro libelo contra a barbárie perpetrada pelo colonialismo ocidental no Congo Belga. É esta a força contraditória do Ocidente que defendo e ressalto no meu artigo. O Ocidente exibe os dois polos. Além disso, graças a revoluções como a da independência americana e a Francesa, secularizou a religião. Onde isso não ocorreu, como nos países muçulmanos, a lâmina da dialética corta apenas de um lado. Vá para lá defender dialética, mesmo essa de lâmina cega que você empunha contra o meu artigo. Vá e volte para me contar as consequências.

      • Julio Zapeta

        Professor, não irei entrar nesse jogo de juízos “ad hominem”, típico daqueles reaças que não têm argumento para debater. Seu problema não está na sua linguagem (tenho certeza que o professor é um grande conhecedor de gramáticas), mas no seu pensamento. Diz que as culturas ocidentais e mulçumanas são irreconciliáveis, para depois dizer que não defende a tese de conflito de culturas. Como isso é logicamente possível? Sua resposta,além de mostrar sua irascibilidade quando contrariado, mostra também uma visão eurocêntrica de história. Os ocidentais seriam dotados de contradição. Tal como na lei da equivalência de janelas de Brás Cubas, um Leopoldo II seria correspondido por Roger Casement, Vichy seria cancelado pela Resistência, e assim por diante. Até aí tudo bem, o problema é achar que os países árabes não são dotados dessa contradição. Você repete o argumento hegeliano que os continentes não-europeus não tem história (por não ter esse movimento e contra-movimento da história). E claro, ao falar isso, desconhece barbaramente a história desses países, o contexto geopolítico, as lutas por direitos humanos nesses países. E como típico reacionário manda ir para o Oriente Médio (tal como os reaças brasileiros mandam gente de esquerda ir para Cuba). Esse argumento é tão canalha quanto eu mandar você para Treblinka para saber o que é o Ocidente. No final, você é apenas um ideólogo, sem nenhuma vontade de lidar com fatos, totalmente preso a estereótipos culturalistas e essencialistas de “Ocidente” e “Oriente”. Fique na sua torre de marfim. O mundo aqui fora é bem mais complexo.

  • Diogo Bordeguini

    Não precisa ir tão longe. Basta notar as reações de brasileiros aos haitianos e verá como somos tão “diferentes” dos franceses…

    • Fernando Da Mota Lima

      Caro Diogo: desculpe a resposta tardia. O exemplo que você menciona ilustra muito bem um dos pontos centrais do meu artigo. Vi reportagens e entrevistas com um pequeno grupo de haitianos obrigados pela miséria a migrar para algumas regiões do Norte do Brasil e para Curitiba. Exercendo funções profissionais humildes, como a de pedreiro da construção civil, foram discriminados de forma violenta. Boa lembrança, É fácil para a boa consciência brasileira deitar falação sobre relativismo e crítica à intolerância ocidental quando o fogo está queimando bem longe da nossa casa.

  • Fernando Da Mota Lima

    Meu artigo que provocou críticas agressivas de Julio Zapeta procura indicar alguns aspectos complexos das relações culturais e políticas entre o Ocidente e os muçulmanos que vivem nos centros europeus mais expostos a essas tensões. Tenho consciência de que procurei antes indicar problemas, como já frisei, do que fornecer respostas satisfatórias, muito menos dogmáticas. É inútil argumentar com o leitor que lê e discute preso a esse viés. Se respondi foi por respeito a quem me lê, mesmo os comentaristas mais afoitos. Chego agora à conclusão de que esse tipo de debate é pior do que inútil. Ele leva a ofensas progressivas e por fim anula qualquer possibilidade de argumentação racional. Por isso prometo ao leitor que acaso concede atenção a este espaço que nunca mais perderei tempo com discussões dessa natureza.

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