Os contos de Matheus Arcaro vão de temas pesados até narrativas por vezes cômicas
Quando recebi o livro de Matheus Arcaro, vi que foi escrito a mim, na dedicatória, que apreciasse aquele buquê de papel. O título do livro, mesclado a tal dedicatória e unido à imagem de capa — uma violeta sobre o parapeito da janela de uma cabana de madeira, contemplando a própria sombra perante um mar de flores —, deu-me a impressão de que essa seria uma leitura leve, perfumada, etérea, de apelo estético. Então, entreguei-me despreocupadamente aos 22 contos da obra. Contudo, logo perceberia o julgamento errado que havia feito.
Violeta Velha e Outras Flores é o livro de estreia de Matheus Arcaro, professor de Filosofia e Sociologia, formado em Comunicação Social e pós-graduado em História da Arte. Além da massiva formação acadêmica, o autor, que atua como artista plástico nas horas vagas, publica textos em diversos meios de comunicação nacionais. Sua ampla bagagem intelectual e artística, aliás, reflete-se profundamente nos contos de sua coletânea. Coletânea porque seus contos se dividem em seis segmentos separados, que repartem os textos ora por suas semelhanças temáticas, ora por suas confluências de estilo.
A primeira parte do livro é composta por cinco contos. Ainda que “A Fúria Sem Som” (referência a Benji, de O Som e a Fúria, de William Faulkner) traga um tema perturbador, tratando de um homem portador de deficiência mental abusado sexualmente por sua cuidadora, todos os contos possuem certa doçura e delicadeza, além de uma inocência (por parte das personagens) cativante. Tais personagens, ainda que irremediavelmente atingidas pela dureza da vida, por seus paradoxos e suas decepções, ainda não foram corrompidas pela dor e pela tristeza do viver e do passar do tempo.
Há até mesmo certo otimismo na maneira como se desenrolam as situações, por isso a leitura é agradável, faz sorrir, esquenta o peito. Na segunda parte, contudo, temos um só conto, colocado ali isoladamente por conta do estilo distinto de sua narrativa, um monólogo interior cotidiano, corrido, de um só fôlego, maquinal. Na terceira e quarta partes, contendo cinco e três contos, Arcaro nos presenteia com o que seria o purgatório dessa “divina comédia”.
Morte, desilusão, arrependimento… As mazelas que são fruto de nossos maiores medos e inseguranças: um casamento morno, o suicídio do melhor amigo, a certeza de uma vida fracassada, desperdiçada, devorada pelas garras implacáveis do tempo. No livro, aliás, o tempo é onipotente, cruel, palpável e desesperador.
Entretanto, como o palhaço de “Reencontro”, que volta a ver sentido em sua frágil existência após reencontrar um menino, já adulto, que sempre fez com que se sentisse o mais engraçado do mundo, alguns conseguem encontrar paz no enternecimento, no cotidiano, na inevitabilidade.
Chegamos, então, ao inferno, com os cinco contos que compõem a quinta parte desse denso livro. Vício, morte, abandono, solidão, doença, invalidez, sofrimento; a sombra inevitável do tempo pairando como uma nuvem negra de chuva. O conto-título, “Violeta Velha”, ao contrário da impressão inicial que me dera, de irremediável paz bucólica, chocou-me, aterrou-me, pois é real, duro, verossímil. Arcaro nos força a ver aquilo que não queremos. Em “Visita”, esperamos ansiosos com Pedro Andrade pelas netas queridas e pela filha, que não o vê há meses, após tê-lo internado em uma casa de repouso. Sabemos que elas não aparecerão. Entretanto, aguardamos, ansiosos, torcendo para que não se repita tal ciclo de horror, para que haja amor, para que haja humanidade. Ao final, vê-se que não há.
Por fim, na sexta parte, somos presenteados com três narrativas mordazes, até mesmo cômicas. A primeira, em especial, é uma viagem ao céu, ao purgatório e ao inferno, na qual conhecemos a leitura feita pelo autor de tais universos. Deus é um burocrata que delega suas funções; o purgatório é uma sala em que se desenrola um tedioso almoço de domingo, com as tias vendo tevê, os tios bebendo cerveja, o proletariado trabalhando feito máquina; por fim, o inferno é o lugar mais maravilhoso do universo, cheio de mulheres gostosas, lap-dances e muita putaria.
Violeta Velha e Outras Flores é mesmo um buquê. No entanto, ainda que algumas flores exalem delicado perfume, outras estão murchas, têm pragas e espinhos no caule. O que, na verdade, engrandece, ainda mais, sua beleza e singularidade.
Bruna Gonçalves
Formada em Letras pela PUC-Campinas, revisora, tradutora e "semiescritora" nas horas vagas.