A guerra sempre ocorre ao longe, através de notícias e de explosões que chegam numa frequência lenta.
A descoberta da currywurst é um romance que combina história e gastronomia. O escritor alemão Uwe Timm percorre os últimos dias da Segunda Guerra Mundial, a fim de investigar a origem do prato que se tornou símbolo da Alemanha pós-conflito.
Esse caminho é cruzado por uma aventura de prazer intensa e igualmente fadada à ruína. A memória, desse modo, são os escombros com os quais se reconstrói o passado dos fatos, com o uso de uma argamassa ficcional.
Timm recorta a realidade e costura ali uma trama que reinventa a composição de seu tecido. Preparada com salsicha sem pele e uma mistura de ketchup e curry, depois servida com batatas fritas, a currywurst é considerada patrimônio nacional, com direito a um museu. A versão oficial é que foi criada na cidade de Berlim, no fim dos anos 1940, por Hertha Hewer, que inclusive patenteou a receita.
O autor põe sob suspeita essa explicação, conduzindo um personagem-narrador pelas ruas de Hamburgo, 12 anos depois de sua última visita. Ele carrega a lembrança de uma experiência única de sabor pela currywurst feita na barraquinha da senhora Brücker, uma antiga vizinha da sua tia. Decide procurá-la, com intuito de saber como surgiu o prato, e a encontra num asilo, agora octogenária, cega, mas ainda disposta e lúcida.
Lena Brücker lhe propõe um acordo: irá revelar a procedência da sua receita, porém é preciso antes trilharem uma história que envolve “um contramestre da Marinha, um emblema prateado de cavaleiro, 200 peles de esquilo siberiano, 12m cúbicos de madeira, uma fabricante de salsicha, um intendente e uma beldade ruiva ingleses, três garrafas de ketchup, clorofórmio, um sonho acordado e muito mais”. O narrador aceita e, de visita em visita, é envolvido pelo enredo que a senhora que tricoteia sem pressa tem a contar.
Volta-se, assim, ao momento em que os alemãs se dão conta de que perderam a guerra. Os Aliados avançam contra o rio Elba, Hitler se suicida e os soldados da SS começam a fugir ou ser capturados. Lena, então com 47 anos, mora sozinha, em virtude de seu marido e filhos estarem no front. Ocupa, portanto, o tempo indo ao cinema e escapando dos bombardeios ocasionais.
Nessas circunstâncias que conhece o jovem soldado Hermann Bremer, designado para uma unidade de caça de blindados, e o arrasta para um abrigo antiaéreo e depois para seu apartamento. Apesar da diferença de idade, tornam-se amantes. Para protegê-lo, Lena o transforma num desertor.
Bremer fica escondido, seguindo códigos para não ser ouvido pelos moradores do prédio ou descoberto por Lamers, vigilante do partido nazista, enquanto Lena está fora, trabalhando para o regime, numa cantina. E lá que, a despeito da escassez de alimentos, surrupia ingredientes com os quais prepara pratos para o soldado, refugiando-se um dentro do outro e aplacando, com ardor, apetites de diversas naturezas.
Timm trabalha com perspicácia os fatos históricos, usando-os como motor para a ação dos personagens, sem desperdiçar informação ou escorregar no didatismo. Ainda que, ocasionalmente, erga uma atmosfera de suspense, o autor nunca avança para o campo de batalha, pois tem plena ciência do ritmo e dos conflitos que regem sua narrativa. A guerra sempre ocorre ao longe, através de notícias e de explosões que chegam numa frequência lenta.
O que importa, de fato, é a vida íntima dos personagens. Como irão lidar com um país que se recompõe após o colapso, que terá de se readaptar a um cotidiano livre da opressão brutal, ao vazio antes ocupado pelos mortos.
Timm faz muito bem esse paralelo, com a invenção gastronômica que simboliza um recomeço, mas também com um relacionamento incapaz de durar pois não pertence ao novo tempo, que oculta mentiras e segredos pregressos. Assim como a Alemanha, Lena e Bremer não podem se ensurdecer aos ecos do passado.
A descoberta da currywurst é um romance que persegue um sabor pela memória e oferece ao leitor os ingredientes de uma vida.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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