A Revolução Americana se consolidou através de um sistema de freios e contrapesos.
Poderia começar um texto sobre a fundação dos Estados Unidos a partir de seus filhos nativos, mas isto seria uma narrativa em falso. O ser do povo americano como conhecemos proveio milênios depois. De origem anglo-saxônica, os pais da futura América eram imigrantes que fugiam da guerra civil inglesa. Nesta época, a religião oficial era a anglicana, e outras denominações protestantes sofriam algumas limitações ou perseguições. Além disso, o fenômeno de “cercamento” obrigou milhares a migrarem do campo para as cidades, saturando-as. Para muitos protestantes (em especial, puritanos), migrar para o norte do continente americano era uma boa escolha. Em 1607, em Jamestown na Virgínia, fundou-se a primeira colônia inglesa bem-sucedida, sendo financiada pela Companhia Londrina da Virgínia, que tinha sido criada para estes fins pelo rei James I da Inglaterra. Desde então, milhares de protestantes migraram para o continente, formando o berço americano: as treze colônias. Colonos de outras origens assimilaram-se rapidamente ao predomínio inglês.
Não haveria Estados Unidos sem a revolução americana no século XVIII. Não só pela independência, mas por tudo que ela representou na formação da alma norte-americana e por ter condensado o pior e o melhor da modernidade e também da democracia liberal. Se os Estados Unidos continuam sendo a maior potência mundial desde o século XX e suas eleições são mais noticiadas e comentadas em todo o globo do que qualquer outra, é pelo país condensar desde sua fundação a quintessência do mundo moderno.
Os habitantes das Treze Colônias só passaram a ter uma identidade nacional a partir da emergência da revolta contra a Coroa inglesa. Os colonos americanos eram pessoas que fugiam das limitações impostas pela Inglaterra, criando uma sociedade de traço calvinista bem delineado, onde o trabalho dignificava o homem e a educação era essencial para a livre interpretação da bíblia. Para muitos desses colonos, a América era a nova terra prometida por Deus e sua missão era civilizar o mundo com sua cultura calvinista. Traços estes que se mantém firmes até hoje no imaginário americano.
No século XVIII, a tensão entre os colonos americanos e seus pais ingleses aumentou consideravelmente. As guerras entre os Estados absolutistas consumiam muito dinheiro e faziam os reis aumentarem os impostos pagos por seus colonos. Por esta razão, o aumento de impostos efetuados pelo Rei da Inglaterra para equilibrar as finanças com os custos das guerras, criou um contágio de revolta entre os colonos americanos. A falta de representação política mais efetiva na metrópole foi outro fator importante. Os colonos americanos, imbuídos do sentimento de que a antiga ordem dos pais ingleses era injusta e de que os indivíduos nasceram para ser livres, desobedeceram ao arbítrio do rei sobre as taxas e deram início ao conflito.
Em 1773, rebeldes americanos, sentindo-se prejudicados pelas políticas comerciais dos ingleses, assaltaram os navios da Companhia das Índias Orientais e lançaram ao mar o seu carregamento de chá. A famosa “Tea Party” de Boston. A reação da Inglaterra foi aprovar uma série de leis mais duras, conhecidas pelos colonos como “Leis Intoleráveis”, por fechar o porto de Boston, obrigar indenização à Companhia e julgar os envolvidos. A revolta tomou conta dos colonos e as disputas militares iniciaram-se em 1775. No dia 4 de julho de 1776, os colonos declaram sua independência com a assinatura de nove colônias. Em 1783, finalmente a sua independência foi reconhecida.
A busca por um ideal de liberdade, de autossuficiência perante a ordem das coisas, é a mãe do mundo moderno, das revoluções liberais e do processo de secularização. Quando John Locke afirmou a existência de três leis (as divinas, as sociais e as morais), separou o transcendente da moral, e lhe deu a esta estatuto público. Assim, a consciência privada poderia voltar ao público (separação que marca o absolutismo), sem se confundir com a convicção religiosa. Mas ficaria uma questão: quem decide? A instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Os dois em conjunto. A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta. Coube ao filósofo protestante Kant pensar na construção da moral a partir de um sujeito transcendental afastada da ideia de moral essencial a partir do realismo metafísico. Ao transformar a moral num imperativo categórico, tornou a religião apenas uma crença.
A ética kantiana tem como base o imperativo categórico. Para Kant, ele é uma lei da natureza humana, onde é dever de todos os seres humanos fazer conforme os princípios que ela deseja que os outros sigam. Ou seja, se não desejas que alguém te mate, não deverás matar alguém. Ele une uma lei universal (a máxima de cada ação deve ser averiguada como uma lei universal), um fim em si mesmo (a humanidade deve ser usada no lugar da pessoa, como fim e não meio) e um legislador universal (a vontade deveria ser sempre testada como um legislador no reino universal dos fins). Assim, não existe a coisa em si, mas uma lei moral dentro de mim (o imperativo categórico), que consiste na seguinte regra: não devo fazer ao outro o que não quero que façam comigo. O imperativo categórico é a base que constrói a moral laica civil.
Antes de se tornar lei, esta moral laica precisou ser construída e vivenciada no secreto durante o absolutismo, e isto possibilitou a organização da sociedade civil em torno de clubes, sociedades secretas, etc. As pessoas não se juntam apenas na tradicional ordem religiosa, mas criam coletividades terrenas que imanentizam a ideia de absoluto através de uma moral sem o transcendente. Como lembra Koselleck, Leibniz já advertia de que a função das sociedades secretas era a imitação do cosmos divino. E nos seus planos reside a bondade, justiça e sabedoria de um projeto de paraíso na terra.
As sociedades secretas uniam o mundo burguês antes da abertura política, penetrando invisivelmente no espaço político. A moral laica começa nos clubes e sociedades secretas e depois, com a mídia de massas, torna-se opinião pública. As leis morais, como Locke chamara, adquirem a pressão social necessária para ter voz e atacar as tradições a partir da sociedade civil organizada. Não por acaso, o ataque das sociedades secretas coincide sempre contra o Estado, a ordem instituída e a igreja.
A aspiração à libertação dos céus e dos homens que levava a crítica ao tradicional também se relacionava com o direito de propriedade. A propriedade era fruto do trabalho – conquista material deste mundo –, que deveria ser valorizada, usufruída com liberdade, e respeitada pelos demais. O processo crítico, que imanentiza o absoluto, se autojustifica. Cada um se torna soberano em relação a todos e sujeito ao juízo de todos. O antigo sermão particular do padre se transforma em crítica que todos exercem e se sujeitam. No Prefácio à crítica da razão pura, Kant (1781) dizia:
Nossa época é a verdadeira época da crítica, a que tudo deve se submeter. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem em geral subtrair-se a ela. Então suscitam contra si a justa suspeita e não podem reivindicar o sincero respeito que a razão só concede àquele que pôde suportar seu exame livre e público.
A separação entre política e moral volta-se contra o próprio Estado absolutista. Por isto, o absolutismo condiciona a gênese do Iluminismo, possibilitando o desdobramento da modernidade a partir das revoluções modernas que procuram resolver esse empasse político e de sua utopia baseada no progresso. Não se deve mais prestar obediência ao poder que concede proteção, mas ao poder soberano que se submete a moral. A moral laica e imanente se autointitula detentora do direito de juiz supremo da política. A crítica dos iluministas e liberais do século XVIII estabelece o tribunal da moral que vencerá o despotismo.
A moral laica civil era o império da lei e da formalidade institucional que garantiria segurança e liberdade para os homens. A ascendente burguesia e a classe média citadina ansiavam por segurança e liberdade, pois em épocas de crises e guerras não só viam seus negócios e empregos prejudicados, como se viam roubados por novas taxações do Estado absolutista.
Durante todo século XVIII se formou esse caldo intelectual, imaginário e material que brotou este sentimento de uma nova ordem social que superasse o Antigo Regime. As ideias iluministas e liberais circulam e, em certo sentido, simbolizam as transformações materiais e mentais da época. Esta nova mentalidade depara-se com a barreira política imposta pelo arbítrio do rei. É este impasse entre o que os homens (principalmente os das cidades) aspiravam e um regime político fechado, que gera o “assalto ao poder” das revoluções. O seu resultado é a construção do mundo moderno com a secularização da sociedade, o império da lei e das instituições, e o triunfo da democracia liberal (ou poder difuso) nas principais partes do Ocidente e do poder concentrado como forma de modernização retardatária. As revoluções do século XVIII cristalizam a modernidade propriamente dita. Elas são, assim, marco de um novo período histórico.
No século XVIII, o termo revolução caracteriza acontecimentos que provocam reviravoltas na ordem social. Os revolucionários desejavam limpar as ruínas já visíveis do Antigo Regime para construir uma nova ordem social. Apesar da transição para a democracia liberal ter sido precoce na Inglaterra e não ter escapado de confrontos e irrupções de violência contra resquícios da antiga ordem, as duas revoluções mais conhecidas que anunciam o moderno foram: a americana e a francesa.
A Revolução Americana, uma luta por independência das colônias americanas perante o Rei da Inglaterra, desenvolveu-se a partir da desconcentração de poder (poder difuso) que criaria a democracia liberal. A utopia se realizaria a partir da sociedade civil já organizada, e não através do Estado.
Independente, as Treze Colônias fizeram uma Confederação de Estados. O desafio agora era viver em liberdade de acordo com o império de uma lei justa, onde as leis morais e as leis do Estado se aproximassem das leis divinas. A grande questão era elaborar um governo limitado, que fosse resultado da sociedade civil organizada e não dela condutor. Era preciso, então, criar direitos básicos do ser humano, tornando consequente uma moral laica civil. A base da vida em comum não seria mais o Leviatã, nem voltaria a ser a religião, mas a sociedade civil organizada a quem o Estado apenas representaria e garantiria – a partir do império da lei – a liberdade dos cidadãos. O fundamento da lei é a escolha da maioria dos cidadãos e do imperativo categórico que protegerá as minorias. Unidos pela independência contra o arbítrio do rei, os colonos elaboraram uma Constituição, que deveria ser garantidora das liberdades individuais e das colônias contra um governo central e que simbolizaria o patriotismo americano.
A confederação de Estados ainda não possuía uma lei única que formasse uma nação. O desafio era elaborar uma constituição que fosse assinada por todas as colônias. A grande discussão na formação do novo país era em torno dos limites do poder central. Para isto, era preciso lidar com um paradoxo. As guerras de independência criaram uma enorme dívida as colônias, e o pagamento destas exigiam impostos (e o novo governo não tinha o poder de coletá-los) e um governo central minimamente organizado. Sem fundos, o governo central também não podia formar um sistema de defesa.
Formou-se então um grupo que se intitulava de “federalistas” (como Alexander Hamilton, James Madison e John Jay), favoráveis à elaboração da nova carta constitucional. Com apoio popular, e sob a liderança de James Madison, o primeiro Congresso da história americana propôs uma Carta de Direitos, as famosas doze emendas. A nova Constituição definia o papel e os poderes dos governos e garantia uma série de liberdades.
Por isto, a Revolução Americana se consolida através de um sistema de checks and balances (freios e contrapesos), de aspecto federativo, com divisão entre os poderes e a promulgação de uma sólida Constituição. Os seus líderes procuraram criar instituições políticas que garantissem a representatividade da sociedade, o que tornaria legítima a moral laica civil. Isto ocorria porque os founding fathers da América estavam não só preocupados em limitar o poder central e dar autonomia aos vários estados, mas queriam proteger a pluralidade da sociedade civil. O que garantia o reconhecimento da vida em comum era um poder difuso que gerava um equilíbrio tenso na sociedade plural. O que dá unidade a ela não é o poder real ou a religião, mas a própria fundação do país ou o processo revolucionário, cristalizando-se na figura da Constituição. É o próprio ato revolucionário que funda o nacionalismo americano.
As doze emendas são a “pedra-de-toque” da fundação americana. O historiador John Pocock, em Machiavellism Moment, argumenta que a grande influência dos rebeldes americanos na fundação da nação era o humanismo cívico da renascença. Num período de releitura da tradição greco-romana, o novo republicanismo vai buscar as influências de autores que escreveram sobre a antiga res publica. Assim, o termo humanismo cívico se refere ao resgate do modelo clássico de pensar a política e os princípios do bom governo em autores como Aristóteles, Políbio e Cícero. Este resgate floresceu principalmente durante o renascimento italiano em Florença. Depois se expandiu para a Inglaterra de Cromwell e para os Estados Unidos no período de sua independência.
O humanismo é uma ruptura com os valores medievais. Se Agostinho distingue a cidade dos homens da cidade de Deus, os humanistas valorizam a vida ativa e a práxis para organizar o melhor tipo de governo e a vida pública saudável. A atividade pública é valorizada, elevada a condição humana dos homens de construir seu próprio destino. Por isto, o sentido da política é a liberdade. O humanismo é também uma nova maneira de encarar a história.
O humanismo cívico, resgatando os termos republicanos, preocupa-se com a virtude cívica (dedicação a vida política em comunidade), acredita num governo misto e exige uma sociedade civil organizada e politicamente atuante. No pai da filosofia política moderna, Nicolau Maquiavel, podemos encontrar vários traços do humanismo cívico.
Essas ideias republicanas do humanismo cívico influenciam diretamente a fundação americana. Em Da Revolução, Hannah Arendt mostra como os pais fundadores da América voltaram-se ao renascimento e a uma nova forma de liberdade. A perspectiva de um “ato de fundação” lembra a Roma antiga e demonstra a influência de Montesquieu entre os americanos, devido a sua preocupação com a fundação do corpo político através da constituição.
A constituição funda a América. E ela funda as liberdades civis, a separação entre os poderes, as formas republicanas, o governo misto, a sociedade civil e organizada atuando politicamente. Ela garante o encontro entre as gerações. A constituição é o que gera a unidade do povo americano, e não mais a religião, os laços de sangue ou o rei.
A nova ordem criada pela Revolução Americana teve grande influência no funcionamento da democracia moderna: federativa, com independência de poderes e uma sociedade civil forte atuando sobre as instituições. O objetivo era instaurar a segurança, o respeito à propriedade, as liberdades civis dos que eram considerados cidadãos. A grande preocupação era adequar a moral a política e não tratar temas sociais, como a escravidão, que só poderia ser resolvidas pela sociedade.
Pensando a fundação americana, é interessante notar que parte da insurgente direita brasileira invoca e é influenciada pela tradição política americana, muito dispare das origens ibéricas brasileiras. Por exemplo, quando um conservador como Ted Cruz, conhecido por ser um firme constitucionalista, argumenta contra o aborto não vê a razão em questões metafísicas, na essência do Ser, mas argumenta de maneira prática de como a legalização contraria a Constituição por não garantir a vida e ferir a inspiração dos pais fundadores em busca de uma nação livre e dirigida por um povo cristão. Para ele, o país ficará bem se seguir a inspiração originária dos pais fundadores, condensadas nas doze emendas. Os novos problemas do sonho americano são acarretados pelos que desvirtuam a inspiração dos founding fathers pela militância.
O pragmatismo americano diverge fundamentalmente da nossa origem católica, que encontra em Platão e Agostinho suas inspirações mais transcendentais e que são suprimidas pela modernidade política. Na próxima página da história, falarei da história dos partidos republicano e democrata.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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