Os contos de Natalia Polesso exploram o universo homossexual feminino.
Encontramos a questão da homossexualidade em diversas obras da literatura contemporânea (de Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu, a Amores, truques e outras versões, de Alex Andrade e Azul é a cor mais quente, de Julie Maroh, entre tantos outros). A mais recente é Amora, de Natalia Borges Polesso, em bela edição de capa dura pela Não Editora, que traz a escultura As três Graças, de António Canova, em sua fronte, adornada em seu interior por outras estátuas helenistas femininas, com projeto gráfico de Guilherme Smee, que provavelmente ganhará prêmios na categoria.
Porém, nos contos de Natalia o estranhamento ainda se faz presente. E configura-se, em exemplo, no receio de uma das personagens revelar sua opção sexual às novas colegas de trabalho como em “Minha prima está na cidade”, ou no que se pressupõe por anos e é questionado pelos seus genitores em “Vó, a senhora é lésbica?” – isso porque justamente uma das netas vive esse sentimento de não pertencimento. De fato, como dito na contracapa (não assinada), “seria pouco dizer que os contos de Amora versam sobre relações homossexuais entre mulheres”; falam dessa sensação de não-lugar que é, como escreve Paloma Vidal na apresentação do volume, “desdobrada em cenas de personagens ora mais desgarradas, ora mais amparadas, idosas, jovens, crianças, adolescentes, ou quase adolescentes, num delicado momento de passagem”, caminhando junto com o sentimento de mudança, “de algo que se abre, uma possibilidade, pequena e persistente, que quando menos esperamos se torna real, com uma naturalidade que primeiro surpreende e depois não mais”.
Dividido em duas partes, temos narrativas mais longas em “Grandes e sumarentas” e breves contos (até nos títulos, batizados com somente uma palavra) em “Pequenas e ácidas”, sem que suas longevidades redundem em menor ou maior impacto chegando ao ponto final. Neles as experiências homossexuais iniciais, ou mesmo os términos destas relações amorosas há tempo delineadas, suas incorrências e incoerências, demonstram um mundo que, mesmo com a insistência de negação no tardio alvorecer no século 21, está com plena saúde e boa forma sobrevivendo na tentativa (às vezes sem ser insistente) de fixar-se, não deixando, obviamente, de ter seus momentos felizes e agradáveis por isso. Numa acepção remetendo ao título, Amora retrata o sabor doce e amargo da estranheza.
Questionada sobre o livro e suas personagens quanto ao tabu de que estas parecem ser (e são, invariavelmente) vítimas, Natalia esclarece que “a homossexualidade é um tabu em muitos lugares e para muitas pessoas ainda, mesmo com os avanços sociais (e digo, de tolerância, entendimento e também em termos de leis que vêm preencher uma lacuna de direitos), mesmo assim, é algo que precisa ser mais exposto, debatido e naturalizado. É comum ouvir, por exemplo, que ‘ser lésbica tudo bem, mas não precisa ser masculinizada’, como assim? As pessoas ainda acham que têm o direito de intervir na sexualidade como na identidade de gênero do outro”.
A quem possa achar que o propósito da obra é escancarar o mundo lésbico como parte da literatura que produz, Polesso rebate: “É muito engraçado, porque ninguém perguntaria se a proposta de alguém seria escancarar o mundo hétero, o que já um indicador de que algo ainda é muito diferente… Bom, eu escolhi falar de coisas que me tocam de um jeito cuidadoso e delicado, tentando, justamente, o contrário de escancarar, mas de fazer o leitor, de algum modo, se identificar, percebendo que o livro fala sobretudo de afetos”.
Tratar da homossexualidade feminina, portanto, não é o mote principal na obra, mas sim verificar de que forma o encontro do que apraz e consigo mesma fora dos padrões afeta a vida de suas personagens, avançando no desconhecido, desestabilizando estruturas que se vêem cada vez mais carcomidas, para chegar ao descanso de uma existência digna em que também perdura o lado poético e universal do amor, sem apontar regras ou peças imprescindíveis a encaixar.