Talvez o genocídio corra o risco não de ser esquecido, mas de se reduzir a mais uma narrativa fossilizada nas páginas dos livros.
Em um trecho do livro O escritor fantasma, de Philip Roth, o protagonista, um jovem judeu norte-americano, envolve-se em uma discussão com sua mãe sobre os horrores do Holocausto. Com a segurança de quem nasceu e se criou no Novo Mundo, sem haver experimentado o antissemitismo ou a angústia de ter a vida ameaçada pelo simples fato de ser judeu, ele afirma: “Não fomos vítimas daquele crime.”
A frase ilustra o distanciamento entre as novas gerações e os crimes de extermínio em massa perpetrados pelos nazistas. No Brasil, não é diferente.
Meus antepassados deixaram a Europa antes da Segunda Guerra. Eram famílias pouco numerosas; não ficaram irmãos, tios ou primos para trás. Portanto, cresci sem ouvir relatos próximos de sobreviventes e sem enfrentar a ausência de parentes que não tiveram a mesma sorte dos que vieram se instalar no Rio Grande do Sul. Para mim, assim como para muitos judeus gaúchos da minha idade e mesmo da faixa etária de meus pais, as agruras do Holocausto acabam sendo apenas “ligeiramente menos remotas que as enfrentadas por Abraão na Terra de Canaã”, como diria o personagem de Roth. Imersos em uma comunidade judaica próspera e pujante, temos dificuldade em compreender e, mais do que isso, sentir a experiência do Holocausto como verdadeiramente nossa. Em breve, sequer haverá sobreviventes entre nós, para dar corpo e voz à tragédia, e talvez então o genocídio corra o risco não de ser esquecido, mas de se reduzir a mais uma narrativa fossilizada nas páginas dos livros.
Para incentivar a reflexão que vivifica e traz a memória para junto de cada um, a Assembleia Geral da ONU escolheu 27 de janeiro como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Nessa data, em 1945, foi libertado o maior campo de extermínio nazista: Auschwitz-Birkenau. Trata-se de oportunidade para honrar todas as pessoas que, pertencendo a diferentes minorias ou grupos sociais tidos como inferiores, sucumbiram nas mãos de um regime monstruoso tocado por humanos.
Aos olhos tortos de outros humanos e em circunstâncias específicas, todos nós podemos ser considerados indignos de viver a própria vida; portanto, o peso do Holocausto – não como evento datado, mas como fantasma perene – recai sobre todos nós. Judeus ou não, fomos sim vítimas daquele crime. Todos nós.
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publicado inicialmente em 27 de janeiro de 2016 no jornal Correio do Povo
Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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