Sem a junção de bondade, beleza e verdade, a sátira política aprisiona-se na própria gaiola ideológica da qual pretende nos libertar.
A sátira espelha os nossos ridículos mais íntimos. Na antiguidade, durante a celebração dos triunfos cesáreos, ela era canto paralelo para que o governante se lembrasse da humildade. Espantosamente atual, em A assembleia das mulheres, de 392 a.C., Aristófanes já satirizava a política igualitária e democrática como o despotismo da maioria. Envolvido pelos costumes, o satirista recorda-nos a ordem que transcende o eu, o desejo, a natureza, a burocracia…
Karl Kraus dizia que o satirista não ridiculariza, expõe o ridículo. Como anatomista da alma, é ele que examina os sintomas de nossas agonias, atentando aos comportamentos e costumes. Para isso, também está submetido aos universais. O Verdadeiro, o Belo e o Bom transcendem-no.
No meio do caminho de nossa tradição de crises, em O Ser e o Tempo da Poesia, Alfredo Bosi vê uma cisão na sátira. Como a cabeça de Jano, ela teria dois rostos: uma face voltada para o passado, a conservadora; e uma voltada para o futuro, a revolucionária.
A sátira supõe uma consciência alerta, ora saudosista, ora revolucionária, e que não se compadece com as mazelas do presente.
Porém, esses critérios dialéticos são confusos demais. Em sua classificação, Dante e William Blake seriam satíricos revolucionários, por reagirem ao presente fitando o futuro, a utopia. Mas quando pensamos que a sátira clássica está sustentada numa hierarquia de valores, ao passo que a sátira política, ou revolucionária, opera com o relativismo moral e com o ativismo político, seria improvável pensar nesses poetas como revolucionários. Além disso, tal cisão satírica deve-se tão somente à separação dos universais, com a arte pela arte e politização dos discursos, aspectos estéticos e políticos inerentes à modernidade.
Sem a junção de bondade, beleza e verdade, a sátira política aprisiona-se na própria gaiola ideológica da qual pretende nos libertar. Com isso, até o humor é relativo, podendo ser – aliás, querendo ser – politicamente correto. Oclusa a realidade, a referência de verdade torna-se o partido político, ou qualquer outra ideia que nos bata à porta.
Mas talvez Bosi esteja certo quanto à violência da sátira revolucionária. Embora se venda purgado de preconceitos, o humor politizado é restritivo e excludente. Furtado de sua identidade, o indivíduo é um bobo a serviço de coletivos e subserviente ao discurso partidário, por mais criminoso que seja. Quando Gramsci dizia que tudo é política, ele apenas queria saber quem são aliados, quem inimigos. Bosi estava certo também ao dizer que a sátira revolucionária ataca os discursos. Mas, investida do politicamente correto, ela só pode ser fiscal e censora de palavras inapropriadas… Nada mais ridículo do que se propor a redenção de preconceitos por meio do bálsamo da sátira.
Por outro lado, grandes poetas satíricos, como Gregório de Matos e Emílio de Meneses, sempre alcançaram a universalidade, por serem anatomistas da alma. Estavam preocupados com a verdade que se revela nos comportamentos.
Outro poeta que conseguiu produzir uma sátira sui generis foi Álvares de Azevedo. Ele conciliou tradições, misturando o lírico e o dramático, ampliando a poética.
No longo poema “Um cadáver de poeta”, o jovem Maneco reúne aspectos da dinâmica alegórica dos Triunfi petrarquianos, das moralidades – bastante caras para a formação dramática de Shakespeare[1] –, da lenda sertaneja da donzela guerreira – narrativa que também servirá de matéria para o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa –, tendo ainda como referência o Oscar D’Alva, de Lord Byron.
No poema de Álvares de Azevedo, o trovador Tancredo é um defunto no meio da rua. Morto pela fome, esse cadáver é um empecilho, um incômodo para os tipos sociais. Por cima dele, passam a corte do Rei, o coche episcopal e dois noivos fidalgos.
Álvarez apresenta uma introdução bastante digressiva, ao gosto byroniano. Citando Tasso, Camões, entre outros, Maneco emula o famoso monólogo hamletiano, refletindo sobre a morte; mais especificamente, contudo, no valor da vida e na morte de um poeta.
“Um poeta é um poeta: apenas isso…”
[…]
“Deixem-se de visões, queimem-se os versos:
O mundo não avança por cantigas.”
[…]
“Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola…
É prazer de um momento, é mero luxo.”
[…]
“Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?”
[…]
“…porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!”
Nesse monólogo aparece o conflito romântico entre o homem contemplativo e o homem prático, algo sintetizado nas figuras antagônicas de Werther e Alberto, que o jovem Goethe colheu de sua experiência de vida. Mas o homem contemplativo de Álvarez de Azevedo tem algo das personagens byronianas: são estrangeiros, peregrinos, de origem obscura, desajustados sociais, malditos… Tancredo é assim. De outro lado, eis que surge uma trupe de homens práticos, para os quais as atividades sociais são naturais. Esses grupos reforçam o caráter sublimado do poeta, ao mesmo tempo, como um ser divino e como um pária, um enjeitado social.
Maneco então dá voz aos homens práticos desvendando o abismo que há entre os discursos e as ações. O narrador descreve concisamente aspectos psicológicos das personagens. Como na tragédia grega, os caracteres são revelados pelos diálogos.
O primeiro grupo a passar pelo cadáver é a corte de El Rei.
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um Rei bon-vivant e Rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão… e seu carrasco.
O cavalo do Rei, sentindo o morto,
Tremente de terror parou nitrindo,
Deu d’esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão: “E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?” Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
“Conheces o defunto? Era inda moço,
Daria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio.”Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
“Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!”“Tancredo!” murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco,
Alma de Triboulet, que além de bobo
Era o vate da corte! bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caídos beiços, volumoso abdômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta,
Em suma um glosador de sobremesas.“Tancredo! — repetiu imaginando —
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido… e quanto aos versos
Morava como um sapo n’água doce!
Não sabia fazer um trocadilho…”
Dentro do coche real vão três pessoas de mais destaque: o Rei, um carniceiro, “bon-vivant”, mas devoto; um fidalgo, provavelmente o cicisbeo real; e o poeta e bobo da corte.
Tão logo o cavalo estanca, comenta-se sobre a utilidade do morto em vida. Fosse “soldado” ou “lacaio”, Tancredo teria sido mais útil à sociedade. Mas quem mais revela ressentimento em relação ao trovador é o poeta do Rei. Satirizado como “farto de sangue”, mas “pobre de veia” poética, sendo um mero bufão, “glosador de sobremesas”, ele ataca o finado por… não saber fazer um trocadilho! Convém destacar a separação feita por Álvares de Azevedo: Tancredo é um trovador, um poeta porta-voz do povo, ao passo que o vate da corte não passava de um bobo, que divertia os nobres com trocadilhos.
O próximo coche a passar é o clerical:
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade…
Bochechas e nariz, em cima uns óculos
Vermelho solidéu…” […]
E acorda o fradalhão… “O que sucede?
— Pergunta bocejando, é algum bêbado?
Em que bicho pisaram?” “Senhor bispo,
— Triunfante responde o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Rebento da fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco —
“Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima,
É um pobre diabo de poeta…
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!”“Abrenúncio! rouqueja o santo bispo,
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!…”
Além de revelar a sinecura clerical, a sátira azevediana desmascarada a vaidade das vaidades desse bispo que, em vez de abençoar, pragueja e amaldiçoa o trovador defunto, “um homem sem miolo e sem barriga”: o miolo pode representar concretamente o cérebro ou figurativamente o juízo, de modo análogo, a barriga representando a magreza do morto ou metonimicamente a miséria que o matara.
O derradeiro encontro encerra uma surpresa. Ao voltar da festa de noivado, o casal é surpreendido pelo cadáver de Tancredo. Elfrida espanta-se. E o aristocrata Solfier, escondendo a covardia, inventa para a noiva uma desculpa supersticiosa: eles deveriam escolher um outro atalho para o castelo, porque não “É mau agouro / Por um morto passar em noites destas.”.
Elfrida não lhe dá ouvido e, ao aproximar-se, reconhece Tancredo. E ao lamentar-lhe a morte, é surpreendida pela voz de um desconhecido. Maneco emula esse suspense do poema Oscar D’Alva, de Byron.
Introduzindo a estrutura dramática, é um desconhecido que diz:
“…Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão, eu vim… e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova dele.”
Tancredo, abandonado pelo povo com um cão, jazia ao relento. Mas o desconhecido preparou uma cova para ele. O trecho seguinte é bastante longo, mas peço escusas e atenção ao leitor por se tratar do clímax e do desfecho do poema:
Elfrida
“Tendes um coração: tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira… Em ouro e jóias
Tem bastante pra erguer-lhe um monumento
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d’alma…” O moço riu-se.O Desconhecido
“Obrigado: guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome!
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa,
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!…
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga, tuas jóias belas:
O orgulho do plebeu as vê sorrindo…
Missas?… bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo! e murchou-se como as flores
Morreu sorrindo, como as virgens morrem…
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio, que a turba imunda profanou
Oh! não te mancharei, nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo…
Tu repousas ao menos!” …………
……………………………..
No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe: “Insolente!,
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão…”O Desconhecido
………………….. “Tu vês: não tremo!
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração?”
………………….. Mas logo Elfrida:
“Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste!
Não pensei ofender tamanho orgulho:
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher… E quanto às jóias,
Lança-as no lago… Mas quem és? teu nome?”O Desconhecido
“Quem sou? um doudo, uma alma de insensato
Que Deus maldisse e que Satã devora!
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo!
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!…
Uma alma como o pó em que se pisa!
Um bastardo de Deus! um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte — anátema!
Desses que a turba com o seu dedo aponta…
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n’alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro!… Agora há pouco,
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro…
— Eu era um trovador, sou um mendigo…”Ergueu do chão a dádiva d’Elfrida,
Roçou as flores aos trementes lábios,
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente… “Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela!”Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.
De repente parou: vibrou a lira
Co’as mãos iradas, trêmulas… e as cordas
Uma por uma rebentou cantando…
Tinha fogo no crânio, e sufocava:
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero; e sempre rindo
Quebrou as joias e as lançou no abismo…VI
No outro dia na borda do caminho,
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria…
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d’escuma,
E seus dentes a raiva constringira…
Tinha os punhos cerrados… Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha…
E um vidro sem licor — fora veneno!…Ninguém o conheceu: mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão, despiu o moço…
E viu… talvez é falso… níveos seios…
Um corpo de mulher de formas puras…VII
Na tumba dormem os mistérios d’ambos:
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas,
Poema d’esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras:
— Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas…”
É um momento de transbordamento, por vezes de excessos. Mas o jovem poeta consegue manter a suspense entre a identidade do desconhecido e o amor secreto. Certa obscuridade dessa história é propriamente romântica. Entretanto, como na lenda sertaneja da donzela guerreira que alimentou o épico metafísico de Guimarães Rosa, é essa nulidade que revela as virtudes do casal. Assim como o defunto (na ironia etimológica de que se servira o poeta: aquele que está fora de função, ou não tem função), ela não tem máscara – é toda coração.
E é na sacralidade mórbida da cova que Tancredo e a moça celebrarão seu casamento. É a invasão do mundano no sagrado, é a profanação do amor que revela o sexo. Como em Tristão e Isolda e Romeu e Julieta, o casal defunto também busca se anular, fazendo do amor um sacrifício.
Este é um dos raros momentos de nossa poesia em que o humor satírico torna-se melancólico, algo importante para os mestres Machado de Assis e Manuel Bandeira. Nesse poema, Álvares de Azevedo vai do riso à melancolia, algo jamais alcançado por nossos maiores satiristas – Gregório de Matos e Emílio de Meneses, tampouco por estes satiristas políticos, preocupados com militância e ocupações, imbuídos em eliminar preconceitos, purificando o coração das palavras, meros “glosadores de sobremesas”.
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NOTA
[1] “Um último progresso se realizou, no século XV, dentro do teatro religioso: a libertação completa do texto sacro, conservando-se embora as doutrinas cristãs, nas chamadas Moralidades, que também não são, aliás, exclusivas da Inglaterra e mesmo na nossa literatura estão representadas por alguns dos autos de Gil Vicente. As Moral plays integram-se na grande corrente medieval da alegoria e as personagens, lutando em volta da Alma Humana como protagonista, são as diferentes Virtudes e Pecados, o Demónio, o “Vício”, etc. Estes dois, e especialmente o último, têm a seu cargo o elemento cómico e o Vício, de origem obscura, é o precursor nacional do “Fool” ou truão do teatro isabelino.
Como não estavam sujeitas ao enredo fixo da narrativa bíblica, a invenção dos autores tinha nelas já o seu papel e por outro lado esta mesma circunstância permitia reduzi-las a poucos ou mesmo a um único quadro cénico, o que facilitava a sua representação.
As Moralidades punham-se em cena em qualquer época do ano e formam a transição para o teatro profissional e permanente…” (Luís Cardim. Shakespeare e o Drama Inglês. Porto: Faculdade de Letras, 1931, pp. 24, 25.)
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
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