Trump, seus acólitos e entusiastas inserem-se naquilo que Isaac Asimov chamava de “fio constante de anti-intelectualismo” que percorre os EUA.
A comunidade científica dos Estados Unidos vinha prendendo a respiração, esperando pelo pior, desde o anúncio da vitória de Donald J. Trump na eleição para a Casa Branca. Já se sabia, afinal, que Trump é um negacionista do aquecimento global antropogênico e que seu vice, Michael Pence, não acredita no elo entre tabaco e câncer de pulmão. Após a cerimônia de posse, ficou claro que Sean Spicer, o assessor de imprensa da Casa Branca, não acredita em aritmética. O fato de jornalistas não terem perguntado aos membros da nova administração o que pensam a respeito da forma da Terra, de sua posição no espaço relativa ao Sol e, crucialmente, de que tipo de queijo a Lua é feita é, talvez, um ato de caridade para com o Partido Republicano.
Durante o período de transição, Trump logo confirmou os piores pesadelos de seus mais virulentos detratores dentro da comunidade científica. A lista de atrocidades é ampla, mas um exemplo: no início de janeiro, ainda presidente-eleito, convidou Robert Kennedy Jr., um proponente da tese – desacreditada – de que vacinas causam autismo, para encabeçar um comitê sobre “segurança das vacinações”.
Assessores do Líder do Mundo Livre correram para negar que um comitê do tipo estivesse realmente nos planos (“nenhuma decisão definitiva foi tomada”, disseram, na típica novilíngua dos burocratas encarregados de trocar as fraldas do chefe), mas Andrew Wakefield, o ex-médico britânico responsável pelo estudo fraudado que aparentemente “comprovava” a ligação entre a tríplice viral e autismo, compareceu ao baile da posse. Refiro-me a Wakefield como “ex-médico” porque sua licença para praticar Medicina na Inglaterra foi cassada.
A ameaça à saúde pública é tão grande que o editor-chefe da rede de publicações científicas Public Library of Science estabeleceu uma página especial em seu site para concentrar, por via das dúvidas, os principais estudos que mostram que vacinas não têm nada a ver com autismo.
A relação difícil de Trump com a ciência também trouxe uma ameaça de holocausto nuclear. Seu ungido para chefiar o Departamento de Energia, o ex-governador do Texas Rick Perry, ignorava que a principal missão desse órgão é garantir a qualidade, a confiabilidade e a segurança do arsenal atômico norte-americano. Ele achava que, como chefe do Departamento de Energia, seu principal trabalho seria interromper pesquisas de energias alternativas e promover o uso desbragado de petróleo.
Mas as tensões entre Trump e a comunidade científica chegaram ao ponto de ruptura entre terça e quarta-feira desta semana, quando seu governo foi acusado de emitir uma gag order – literalmente, “ordem de mordaça” – proibindo órgãos federais ligados à pesquisa científica, especificamente a Agência de Proteção Ambiental (EPA) e o Departamento de Agricultura, de se comunicar com a imprensa, postar em redes sociais e liberar fundos para pesquisa. Entre o fim do dia de quarta e a manhã desta quinta, no entanto, funcionários de carreira das duas entidades vieram a público afirmar que as notícias sobre gag orders eram exageradas e refletiam apenas a suspensão, temporária e rotineira, de comunicação enquanto os novos chefes assumem seus postos e se familiarizam com a área.
“Acredite se quiser” parece ser a expressão-chave diante dessa situação. O que é inegável é que a EPA foi submetida a algo que poderia ser descrito como tratamento extraordinário, e no mau sentido. Citado pela Associated Press, Doug Ericksen, membro da equipe de transição de Trump, disse que todo o conteúdo do site oficial da agência estava sob revisão de agentes políticos. Além disso, uma diretriz, nada “rotineira”, determinou a remoção de todos os dados sobre mudança climática presentes no site da Agência. Isso desencadeou uma guerra nas redes sociais, em que funcionários de um parque nacional americano passaram a fazer “uso clandestino” da conta oficial do órgão no Twitter para divulgar as informações que a EPA estaria sendo forçada a suprimir. Mais tarde, a ordem de apagar os dados do site acabou revogada, segundo informações da revista Science.
O uso de gag orders para calar pesquisadores é um recurso caro aos negacionistas climáticos. Quando esteve no poder, o ex-primeiro-ministro conservador canadense Stephen Harper tornou-se infame por estabelecer uma série bizantina de regulações para a comunicação entre cientistas e imprensa que, para todos os fins práticos, impedia que pesquisadores vinculados a órgãos públicos falassem com jornalistas. Harper sentiu-se especialmente incomodado por estudos a respeito dos riscos ambientais da pesca do salmão e da mudança climática antropogênica.
Antes que se imagine que a coceira para silenciar pesquisadores seja um apanágio exclusivo da direita, lembremos que, no Brasil, histórias sobre gag orders impostas ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) foram comuns no período petista, e que a maior gag order de todas – o envio para o gulag – foi implementada contra biólogos darwinistas por aquele Guia Genial dos Povos, Josef Stálin.
A rejeição à ciência corta fundo no modus pensandi trumpista. Outra figura indicada para o primeiro escalão do novo governo, o deputado Mick Mulvaney, escolhido para o Gabinete de Orçamento e Administração da Casa Branca, tem registradas no Facebook declarações em que questiona a necessidade de financiamento público para pesquisa científica. Isso ignora, claro, que toda a infraestrutura tecnológica que sustenta o modo de vida americano nasceu de pesquisa pública – a internet é apenas um exemplo.
Desde o fim da 2ª Guerra Mundial – que revelou, de modo dramático, o poder e o potencial da ciência para transformar o mundo – que os EUA são guiados por uma visão, estabelecida pelo engenheiro e inventor Vannevar Bush (1890-1974), que defendia a ideia de que a sociedade só teria a ganhar se o governo desse aos cientistas todo o dinheiro que pedissem, e depois os deixasse trabalhar com toda a liberdade.
Se a realidade nunca permitiu a implementação desse ideal de fundos infinitos e liberdade infinita para a ciência, o fato de os EUA terem se tornado a maior potência científica, econômica e tecnológica do pós-guerra, enquanto países que preferem estádios a laboratórios continuam chafurdando no atoleiro, mostra que a ideia de Bush deve ter lá seu mérito.
O mais pungente é que a afirmação de Mulvaney (que se não se der bem no governo americano pode tentar uma vaga aqui ao lado de Geraldo Alckmin) foi feita no contexto de um debate sobre o financiamento de estudos a respeito da epidemia brasileira de microcefalia associada ao zika vírus. Os Institutos Nacionais de Saúde (NHS) dos Estados Unidos são, há tempos, os maiores investidores em pesquisa médica do mundo.
Trump, seus acólitos e entusiastas inserem-se naquilo que o escritor de ficção científica Isaac Asimov (1920-1992) chamava de “fio constante de anti-intelectualismo” que percorre a vida cultural e política dos Estados Unidos, “sustentado pela noção falsa de que democracia significa que a minha ignorância vale tanto quanto o seu conhecimento”. Essa “noção falsa” é o esteio maior do populismo. O elogio arrogante da ignorância e do senso-comum nunca deixa de atrair votos.
Sendo os Estados Unidos uma democracia funcional, nada disso passa em branco, claro. O Greenpeace, cuja rejeição fanática aos organismos geneticamente modificados tem tanta base em realidade quanto a negação do aquecimento global, hasteou uma bandeira gigante com a palavra “Resista” diante da Casa Branca. Pesquisadores assustados e revoltados com as iniciativas de Trump preparam uma Marcha da Ciência sobre Washington. E ainda há os cientistas que buscam se articular para conquistar cargos eletivos, por meio de iniciativas como a 314 Action. Afinal, se os suplementos vitamínicos e os produtores de petróleo têm bancadas no Congresso, por que não uma bancada do laboratório?
E, se rir é o melhor remédio, uma boa dose de aspirina veio com a publicação de um artigo satírico, formatado como um “paper” científico e assinado por “Donald J. Trump”, exortando a comunidade lógico-matemática a abraçar o conceito de “fatos alternativos”, proposto pela assessora Kellyanne Conway, como uma forma de demonstrar teoremas altamente complexos; por exemplo, a conjectura de que 0=1.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.