Provocações sobre a Revolução Russa de 1917

por Paulo Roberto Silva (03/01/2017)

Há 100 anos, a Rússia deixou de ser um império decadente para se tornar um experimento social com 70 anos de duração. Temos que pensar sobre isso.

No próximo dia 8 de março, fará 100 anos que o regime czarista, o último exemplar do Antigo Regime na Europa, sucumbiu ante um processo revolucionário que se encerrou apenas em novembro, quando os bolcheviques liderados por Lenin deram um golpe de estado e assumiram o poder. Deste processo surgiu a União Soviética, o mais longo experimento social comunista, cujos impactos, especialmente os destrutivos, chegam até os nossos dias.

Durante este ano de 2017 as viúvas do marxismo farão a apologia do regime nascido da vontade autocrática de Lenin. Relembrarão com certa emoção de alguns de seus filhos, como Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tsé Tung, Ho Chi Min, Luís Carlos Prestes. Vão deliberadamente esconder Stalin, Pol Pot, Kim Il-Sung, Enver Hoxha e Nicolae Ceausescu, conhecidos genocidas marxistas. E provavelmente não farão ideia da existência de Tito, Nehru, Gaddafi, Sukharno e outros líderes inspirados na União Soviética. Gramsci e Trotsky terão lugar de destaque, especialmente na academia.

É importante uma resposta à altura. Não apenas como contraponto às viúvas do marxismo, o que nos levaria a ser viúvas de George Kennan. Mas também para explorar o aprendizado “pela negativa” com a experiência soviética, ou seja, tirar desta experiência as lições necessárias para a defesa da democracia e da construção de instituições livres e inclusivas. Mesmo do ponto de vista da esquerda, é importante superar os desvios antidemocráticos da herança marxista-leninista, que estão dificultando a revisão da experiência petista neste momento no Brasil.

Neste artigo, elaboro um pouco algumas provocações de temas que podem muito bem ser melhor exploradas por gente melhor e mais inteligente do que eu. A ideia aqui não é ser profundo, é elencar temas nos quais a herança do marxismo leninismo ainda é mais perniciosa entre nós. No caso, focamos em dois aspectos recorrentes no nosso tempo: a acusação de que os comunistas teriam deturpado Marx ao construir um regime tirânico, e a tendência a se politizar todos os aspectos privados da existência.

1. Deturparam Marx?

Um mecanismo defensivo típico diante de críticas ao regime soviético é de que os bolcheviques teriam “deturpado Marx”. Existiria, assim, um Marx original, democrático e humanista, e um Marx deturpado, ditatorial. Isto se tornou mais comum após a publicação dos textos póstumos de Marx pelo Instituto Marx-Engels-Lenin (organizado pela União Soviética sob o comando de Stalin).

Como nos lembra, sobre os textos póstumos, Edmund Wilson em Rumo à Estação Finlândia “o que Marx queria que fosse lido foi lido”. E como o próprio Wilson analisa:

Pode-se ter a impressão de que Marx mantém bem separado o capitalista mau de um lado e o comunista bom do futuro de outro; no entanto, para chegar a este futuro, é necessário que o comunista seja tão cruel e repressivo quanto o capitalista; ele também tem que violentar aquela humanidade comum que o profeta prega. É uma grave deformação ignorar o elemento sádico dos escritos de Marx.

E é neste elemento sádico e impiedoso que Lenin vai buscar as bases de sua ditadura do proletariado. Como aparece na Crítica ao Programa de Gotha, citado por Lenin em sua polêmica contra Kautsky:

Pergunta-se, então: por que transformação passará o sistema de Estado numa sociedade comunista? (…) Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

E como seria esta transição revolucionária, na visão de Marx? Ela aparece na carta de Engels a Bebel, sobre o mesmo programa (publicada na Crítica ao Programa de Gotha):

Ora, uma vez que o Estado é, todavia, apenas uma instituição transitória de que, na luta, na revolução, alguém se serve para reprimir pela força os seus adversários, é um puro contra-senso falar de Estado popular livre: enquanto o proletariado precisar ainda do Estado, precisa dele não no interesse da liberdade, mas da repressão dos seus adversários e, logo que se puder falar de liberdade, o Estado como tal deixa de subsistir.

O marxismo acadêmico oscila entre a defesa da violência contra os inimigos da revolução e sua negação. Daí surgem teorias como humanismo radical, violência simbólica e outras mitigações do propósito marxista original. Neste sentido, o marxismo ortodoxo não doura a pílula: reconhece o valor da violência contra os adversários como tarefa revolucionária essencial.

Quando se acusa os defensores da violência revolucionária de deturparem Marx, o foco é especialmente o mal estar com os processos de Moscou, no qual a máquina de estado stalinista se voltou contra quadros do próprio Partido Comunista. O ponto é que, precisamente aqui, o que se realiza é o projeto marxista de ditadura do proletariado, definido como o uso da estrutura repressiva do estado contra todos os inimigos da Revolução. A promessa sempre foi de liberdade após a eliminação de todos os seus adversários, e esta promessa durou até a eleição de Gorbachov.

De certa forma, a opção pela violência parte do princípio de que há apenas uma opinião correta no campo da política. Marx vivenciou isso ao expurgar os anarquistas e os socialistas utópicos da Associação Internacional dos Trabalhadores. E isso se reproduz ad eternum, com cada grupelho esquerdista se considerando o único movimento revolucionário legítimo, com cada governo esquerdista se achando no direito de permanecer no poder a qualquer custo, com cada artigo de Zizek defendendo aberrações como Trump e o terrorismo. O marxismo, e isso é um vício de origem, não reconhece a legitimidade ou mesmo o direito de existir do contraditório.

2. A supremacia da política sobre a existência

A crítica de Marx ao chamado “socialismo utópico” foi que eles

Rejeitam, por isso, toda a ação política, nomeadamente toda a ação revolucionária, querem atingir o seu objectivo por via pacífica e procuram, com pequenos experimentos naturalmente condenados ao fracasso, abrir pela força do exemplo o caminho ao novo evangelho social.” (Manifesto do Partido Comunista)

Como contrapondo, o marxismo promoveu a hiperpolitização da existência. Uma vez que as contraposições de classe se resolvem no campo da política, tudo se torna política: o que você come, veste, como se diverte aos finais de semana. O copo de café do Starbucks se torna campo de luta política, o destino do feto deve ser decidido pela política.

Ora, se, como diz Claude Lefort em A Invenção Democrática, a proclamação dos direitos do homem e da democracia cria uma instância da existência humana fora do alcance do poder, ou seja, da política, a hiperpolitização da existência é a base do totalitarismo. E a tentação totalitária aparece a todo momento disfarçada de reivindicação de liberdade, quando se propõe legislar sobre temas da vida privada e questões que dizem respeito apenas às consciências.

Neste aspecto, o da proteção da vida privada e das consciências, Marx não ajuda. Neste sentido, a experiência soviética novamente reafirma um defeito de origem, do próprio Marx. Com as autocríticas forçadas, a hiperregulação da vida cotidiana, o racionamento de víveres, o ateísmo de Estado, os planos quinquenais e outras experiências bizarras, o que o regime soviético fez foi politizar o que não deve ser politizado.

Novamente, a reflexão sobre a experiência soviética deve nos permitir criar prevenções a propostas que permitam ao estado invadir o campo privado da vida humana. Curiosamente, a tentação à hiperregulação afeta não só a esquerda, mas todos os espectros da política.

* * *

Essas são apenas duas provocações baseadas na experiência soviética. Há muitos outros aspectos antropológicos e sociais a serem explorados. O regime iniciado há cem anos atrás pode nos trazer insights sobre os riscos do totalitarismo político. Deste ponto de vista, o centenário da Revolução Russa é uma oportunidade de reflexão que não deve ser desperdiçada.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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