Os pichadores se autodesignam como os resgatadores da “beleza que salvará o mundo”.
1.
Como verdadeiros libelos revolucionários, alguns jornais publicaram, nestes últimos dias, a notícia de que todos os esforços levados a cabo por certo prefeito para a limpeza de sua cidade constituem-se ingratamente como uma tarefa de Sísifo, já que pichadores, como represália, tornam-se cada vez mais ousados, emporcalhando agora lugares de difícil acesso. Num primeiro momento, a solução fácil que se apresenta é a supressão ou punição dos pichadores[1], o que não é de todo injusto, visto que alguns, de fato, recorrem ao vandalismo, como foi o caso do Museu da República, em fins de novembro de 2016, ou em janeiro de 2015, na Catedral Nossa Senhora dos Prazeres, igreja matriz de Itapetininga (SP), em cujos portões picharam símbolos supostamente satânicos (embora pertençam mais ao universo da pop art e dos álbuns de black metal) e dizeres em latim macarrônico.
De todo modo, é preciso, como de costume, compreender a fonte principal de legitimidade do movimento. Em certa discussão, dentro da academia, sobre o “caráter artístico” da pichação, os preletores distinguiram, antes de tudo, entre grafite e pichação, citando, como sempre, o norte-americano Basquiat, para eles paradigma de excelência técnica e consciência artística, com o intuito de legitimar academicamente o status de arte do primeiro movimento. Naquele momento, ainda crente na compatibilidade entre a reta razão e os acadêmicos, declarei que jamais me deparara com qualquer atributo artístico na pichação, e pelos seguintes motivos:
1) a pichação, no mais das vezes, reduz-se a simples emblemas – égides ou brasões esvaziados de complexidade ou beleza – de determinados grupos, de acordo com um código circunstancial, efêmero e conhecido apenas pelos grupos que integram esse universo. Isto é, a pichação, por sua própria natureza, jamais pode se configurar como um símbolo cultural ou artístico, pois é incapaz de transcender seu aspecto circunstancial.
2) devido ao seu caráter emblemático ou representativo, e segundo o próprio movimento interno dos pichadores que é, a grosso modo, territorial (isto é, as inscrições dos pichadores atuam como marcos temporários de conquista territorial, que podem, a qualquer momento, ser suprimidos ou rasurados por grupos opostos, embora alguns deles se pautem num código ético que proscreve o overwriting), a pichação é reproduzida em escala “bélica”, avançando irrefreável e geograficamente com o intuito de assinalar ou demarcar um grupo ou pichador específicos. Nesse sentido, os próprios intelectuais progressistas, que citam a granel o artigo de Walter Benjamim (“A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”) – que já foi alçado à categoria de texto sagrado ou ritual iniciático nas Humanidades brasileiras –, e que defendem o caráter artístico da pichação, terminam, eventualmente, na posição dilemática, para não dizer contraditória, de defender, legitimar e elevar à condição de arte uma atividade técnica (a pichação) que se vale da própria repetição maciça para fazer-se notar. O conceito benjaminiano de “aura”, a unicidade da obra de arte e a concepção renascentista de que a arte é um corpo real no qual se projeta a luz do ideal não são, nesse domínio, factíveis.
3) há uma problemática do suporte, no universo das pichações, que por vezes inviabiliza a própria expressão artística. É o caso de Banksy, talvez o mais famoso artista de rua na contemporaneidade, que inscreveu em alguns muros nas áreas mais caras de Londres os seguintes termos: DESIGNATED GRAFFITI AREA [Área Designada para Grafite]; para em seguida compor seus superestimados grafites. Theodore Dalrymple, referindo-se a essas circunstâncias, observa:
Banksy afirma que todo espaço público deveria ser disponibilizado para a autoexpressão por parte do povo, esquecendo-se de que a maioria das pessoas talvez queira se expressar deixando elegantes muros brancos elegantemente brancos. Mas, daí eles são apenas pessoas, não o povo – uma distinção crucial na mente de Banksy.
De fato, em alguns casos, a possibilidade da “arte de rua” (que aqui inclui o grafite e a pichação), especialmente nos casos mais ousados e politicamente “questionadores”, se dá justamente na negação, transgressão ou invasão da propriedade privada. É o caso de seu trabalho Red Carpet Rats, num dos muros do luxuoso hotel Ritz em Londres, em que compara seus hóspedes e funcionários a ratos sendo recepcionados por um tapete vermelho que conduz a um buraco. Na típica ironia autofágica da contemporaneidade, celebridades como Brad Pitt e Christina Aguilera, precisamente a classe que ali se hospeda, são alguns de seus apreciadores e compradores de seu trabalho. Pode-se mencionar, de passagem, o curioso sucesso (mil cópias vendidas) de um seu trabalho que representa um leilão de uma tela com os dizeres: “I CAN’T BELIEVE YOU MORONS ACTUALLY BUY THIS SHIT” [Eu não posso acreditar que vocês, imbecis, estão realmente comprando essa merda]; ou ainda seu primeiro filme, Exit Through the Gift Shop (2010), que não obstante sua classificação como fraude ou hoax, ou, antes, justamente por isto, angariou o louvor até mesmo de críticos renomados e brilhantes como Roger Ebert, para quem a especulação de que o filme é uma grande farsa somente contribuiu para que se tornasse ainda mais fascinante.
4) uma consequência dessa visão epitomizada em Banksy é uma espécie de totalitarismo estético. Ora, Trotsky, em Literatura e Revolução, afirmava que, por meio da construção cultural e do autodidatismo no qual o homem se verá envolto quando do estabelecimento do comunismo, “a espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E sobre ela, se levantarão novos cimos”. Entretanto, na atual conjuntura, o que temos é justamente o contrário, a saber, o clericalismo da arte tão mais opressivo, autárquico e esnobe do que a caricatura do clero católico preponderante durante a Revolução Francesa. Num mundo em que as tradições, a autoridade, o cânone e a religião são rejeitados ad limine, os artistas se veem como os únicos fornecedores de sentido ou beleza ao restante da humanidade. Nas palavras de Eduardo Lourenço:
Os reis morreram todos, mas o lugar do rei não está vazio. O lugar do rei não é o do poder, mas o que dá um sentido ao poder. Depois da Revolução, são os filósofos, os poetas, os artistas que se tornam padres e reis, guardiães, magos, imperadores do sentido.
2.
Os pichadores se autodesignam, portanto, como os resgatadores da “beleza que salvará o mundo”, os caleidoscópios vivos que impedem que a cidade seja tomada pelo império cinzento da burocracia e do autoritarismo político. Há, inclusive, um famoso documentário brasileiro pautado exatamente nessa metáfora, que, por ironia, denigre o cinza (o trocadilho é intencional), até então sempre utilizado pelos relativistas como a coloração da imprecisão, da neutralidade, um tiers aspect que fornece uma opção contra a sufocante dicotomia “preto e branco” dos religiosos, conservadores, classicistas, enfim todos aqueles que ainda sustentam alguma inteligibilidade efetiva do real.
Reduzindo o próprio espectro de suas metáforas e lugares-comuns, os progressistas, niilistas e tutti quanti se valem agora da dicotomia: cinza versus colorido; obtusidade burguesa versus criatividade das ruas; ordem impositiva versus liberdade emulsiva; higienização opressiva versus embelezamento redentor, respectivamente. Tomam como pressuposto o fato de que são não somente os mantenedores mas também os reguladores do gosto citadino; sempre baseados no dilema entre “cidade cinzenta” e “cidade artística” – e aqueles que rejeitam ou deploram seus trabalhos são os de antemão inaptos e destituídos de sensibilidade artística –, como se muros ou superfícies caiadas fossem a materialização mesma do desafeto.
Novamente, para aqueles que consideram a pichação como arte, a contradição é inerente, pois nada impede que se promova, cínica e deliberadamente, a caiação de superfícies como manifestação artística. Afinal, os monocromos de Yves Klein, em especial IKB74, não são consagrados como arte?
De todo modo, a posição dos pichadores com projeção pública é ambivalente: conforme dito, na fachada de seu discurso, asseguram, na linha de Trotsky, que a “arte das ruas”, que se confunde com uma arte do povo (claro, semelhante a Banksy, povo são sempre algumas pessoas, e determinadas pessoas, em especialmente os desafetos, não constituem o povo), deve permanecer poluindo visualmente as metrópoles de todo o mundo, visto que é uma expressão do homem comum em face da desumanização urbana; entretanto, não abrem mão de seus status – autoconcedido, evidentemente – de representantes e promovedores do senso estético municipal. Na sua perspectiva, encarnam o Volkgeist estético e são, por isso, inquestionáveis, apagar seus trabalhos significa dissolver a cultura de uma sociedade, por mais que a maioria dos cidadãos sequer compreenda o código subjacente ou o ícone ali representado.
Contudo, os pichadores têm consigo um ponto demasiadamente justo: grande parte das fachadas, edifícios e construções brasileiras são tão abomináveis ao olhar, que qualquer solução, mesmo a mitigação cosmética dos grafites e pichações, é, num primeiro momento, aceitável. A questão, todavia, é esta – os trabalhos são simples maquiagem, por vezes horrendamente feitas, que ocultam a destruição da arquitetura brasileira que tem uma perfeita metonímia no projeto de Brasília. Afinal, Niemeyer inspirou-se fortemente na concepção de Le Corbusier da arquitetura[2] como machine à émouvoir (a máquina para comover), que, concebendo as relações arquitetônicas e sociais citadinas como partes mecânicas justapostas, gerou os atuais guetos em Paris, que em lugar de autonomia produziram isolamento hostil.
Nesse sentido, temos um movimento circular e autofágico: a fealdade dos edifícios, especialmente em São Paulo, incentivou grafiteiros a desenvolverem seus trabalhos “cosméticos” com propósitos de embelezamento ou humanização. Claro que, na maior parte das vezes, o que se consegue é mitigar a brutalidade arquitetônica. No entanto, alguns pichadores, por seu turno, ultrajados pela feiura urbana e confundindo iconoclastia com originalidade, desfiguram ainda mais as superfícies e edifícios, numa efetiva revolta estética. Ademais, é preciso levar em conta o cumprimento do presságio de Baudelaire: “Porque o Belo é sempre surpreendente, seria absurdo supor que o que é surpreendente seja sempre belo”. Desprovidos de um parâmetro objetivo mediante o qual é possível analisar ou criticar (no sentido do radical grego krinei, isto é, separar para julgar) a arte, os que se pretendem artistas recorrem à base crua mesma da civilização: aos mecanismos do instinto. Daí vemos a insubmissão e o acinte serem transmutados em símbolos de resistência cultural e indivíduos compensando a inabilidade artística com feitos físicos e atitudes temerárias.
3.
Por fim, conforme nos ensina uma parábola de Kafka, e como se evidenciou, em 2001, com destruição de estátuas budistas no Afeganistão por parte do Talibã, a barbárie demarca seu processo de imolação da civilização destruindo precisamente seus marcos.
Tudo veio em seu auxílio durante o trabalho de construção. Os trabalhadores estrangeiros trouxeram os blocos de mármore, esquadriados e ajustados uns aos outros. As pedras foram erguidas e colocadas de acordo com os movimentos de aferição dos seus dedos. Nunca um edifício passou a existir de maneira tão fácil quanto esse templo – ou melhor, esse templo passou a existir do modo como um templo deveria. Exceto que, para dar vazão à malevolência, ou para profaná-lo ou destruí-lo completamente, instrumentos obviamente de magnífica agudeza foram usados para rabiscar em cada pedra – de que pedreira tinha vindo? –, por uma eternidade mais duradoura que o templo, as toscas garatujas das mãos de crianças insensatas, ou antes as inscrições de bárbaros montanheses.
Ressentidos da perfeição e ordem do templo, bárbaros e crianças insensatas profanam suas pedras com garatujas ininteligíveis, rasurando a Beleza com inscrições desprovidas de sentido. Resta apenas o reconhecimento honesto de que a cacofonia tende sempre à permanência.
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NOTAS
[1] Atualmente, a própria opção entre as grafias “pichador” e “pixador” refletem, de certo modo, ao menos na compreensão dos artistas de rua, a dicotomia entre o discurso oficial e o discurso “problematizador”, respectivamente. Nesse sentido, a própria recusa em se utilizar os termos dicionarizados “pichação”, “pichar”, “pichador”, etc. configura-se como ato insurrecional ou subversivo contra a autoridade, e como afirmação dos artistas de rua – que em geral grafam o verbo como “pixar” – como a genuína instância legitimadora. Desse modo, o uso do termo “pichação” aqui é deliberado.
[2] A referência original é à residência Savoye, projeta em 1928.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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