De plenitude lírica e ferocidade satírica, eis o entusiasmo que a poesia de Alexei Bueno tem evocado.

“Anamnese”, de Alexei Bueno (Lacre, 2016, 148 páginas)

No prefácio do livro La rosa profunda (1975), Jorge Luis Borges reflete sobre dois aspectos do processo poético: a inspiração poética pela Musa, professada pelos clássicos, e a realização do poema como operação intelectual, defendida por um romântico – Edgar Allan Poe.

Na modernidade, esse “Paradoxo de Poe” gerou uma espécie guardião dos portões do cientificismo literário. Com as chaves em mão, para adentrar ao reino das palavras, o leitor precisa enfrentar as cruentas cabeças de teorias racionalistas e relativistas, como o formalismo e o estruturalismo, a crítica social, determinista e engajada.

Descendo esses círculos ínferos, deparamo-nos com um quadro teratológico. Eis ideólogos dissecando e empalhadores forrando com discursos e teorias cadáveres e cadáveres de poemas… Com o relativismo, violam a vestal. Os bárbaros cortam a língua da pitonisa. Secularizada, a Pítia prostitui-se. Apaga-se o sublime. O templo dá lugar ao palanque. E mesmo a sátira, sem a anatomia da alma, torna-se um veneno inócuo. Nos jardins do debate público, ela é a serpente domesticada por discursos políticos. É um Gregório de Matos politicamente correto, cultuado apenas como espantalho retórico. E enquanto os críticos empalham cadáveres poéticos, os vates vaticinavam sobre as vísceras!

Adentrando esse labirinto, desdenhemos as famélicas gargantas desse Cérbero da teoria e da crítica, fiados, no entanto, naquilo que os poetas chamam de possessão, espírito, êxtase (estar fora de si), Mania (mitologicamente era a Loucura), entusiasmo (etimologicamente, a sensação de portar um deus dentro de si) , a inspiração ou, em suma, o que o grande escritor argentino observava como Musa: aquilo que a tradição judaico-cristã e Milton chamaram de Espírito, mas que nossa “triste mitologia chama o Subconsciente”.

Ao estudar a relação entre a psicologia analítica e a obra de arte poética, Jung também separa o artista intelectual e espiritual. Neste segundo caso, de acordo com ele, durante a criação, o poeta identifica-se com o processo criativo, de modo que:

…tanto faz que ele se tenha colocado deliberadamente à frente da moção criadora ou que esta o tenha tomado por inteiro como instrumento, fazendo-o perder qualquer consciência deste fato. Ele é a própria realização criativa e está completamente integrado e identificado com ela com todos os seus propósitos e todo o seu conhecimento. (JUNG, 1991, p. 47)

A obra de arte criada é imposta ao autor, que a escreveu aquilo que sua mente viu “com espanto.” Além disso, ela “traz em si a sua própria forma; tudo aquilo que ele gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar, lhe será imposto.”

Quanto ao poeta, enquanto:

…seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. […] Ele apenas pode obedecer e seguir esse impulso aparentemente estranho; sente que a sua obra é maior do que ele e exerce um domínio tal que ele nada lhe pode impor. (Ibidem)

Na história da literatura, há vários testemunhos de criação imposta, mania, espécie de possessão que ocorre quando o conteúdo mnemónico aflora pelas forças psíquicas, como no famoso dia triunfal da heteronímia de Fernando Pessoa¹, ou mesmo o testemunho de Órris Soares², segundo o qual, Augusto dos Anjos compunha seus poemas de modo inverso, totalmente da memória, a caminhar pela casa recitando antes de escrevê-los.

De plenitude lírica e ferocidade satírica, eis o entusiasmo que a poesia de Alexei Bueno tem evocado.

Autor dos livros As escadas da torre (1984), Poemas gregos (1985), Livro de haicais (1989), A decomposição de J. S. Bach (1989), Lucernário (1993), A via estreita (1995), A juventude dos deuses (1996), Entusiasmo (1997), Em sonho (1999), Os resistentes (2001), A árvore seca (2006), As desaparições (2009), entre outros, em sua poesia, é possível identificar a defesa da possessão, do entusiasmo.

ÊXTASE

Nem o amor, nem as lavras
Eternas, posse alguma explicaria
Tal jorro ardente e exato das palavras
Na alma oca e possessa – fôrma fria.

Quem nunca isto sentiu, nunca este fogo
Bebeu, poeta não foi – borda a impostura.
Sem o deus, foi um hábil, soube um jogo –
Vedada à humanidade é esta ventura.

A árvore seca, 2006

É o que vemos neste lançamento – Anamnese (Lacre, 2016).

Nas orelhas, Saraiva chama a atenção para o “dia triunfal” de 04 de agosto de 2015. Neste dia, o poeta carioca compôs quatro poemas, entre os quais está a bela quadra que evoca a sacralidade da poesia e a imortalidade da alma:

AOS POETAS

Só dos deuses desce.
Se não desce, é falsa.
Nossa alma só se alça
Quando o dia a esquece.

A referência numismática da capa – a moeda com a efígie do deus Jano, com duas faces, uma voltada para frente, outra para trás –, o título, Anamnese, relacionado com as teorias platônicas da origem da sabedoria por meio da recordação e da imortalidade da alma, além de símbolos recorrentes, como as chaves e o espelho, enfaixam o conjunto com o último poema “Os esplendores”.

SAGRAÇÃO

Quando a manhã primeira que não vires
Não unir-se ao colar das que tiveste,
A um luz delas todas será a veste
Do teu ser, a alva invicta de tua íris.

Embora mantenha suas características poéticas – o domínio das formas tradicionais, a celebração da Grécia mítica e a passagem do tempo –, composto sobretudo por sonetos, este livro, em relação aos anteriores, é acerrimamente satírico. É uma revolta santa contra a profanação:

ORATÓRIO DE N. S. DO CABO DA BOA ESPERANÇA
(Rua do Carmo)

Há vinte anos tiraram tua luz.
Há vinte anos levaram tua imagem.
Esta canalha faz qualquer viagem?
Esta gentalha chegaria a Ormuz?

Que cada um carregue a sua cruz,
É a lei, mas nascer dentro da lavagem,
Entre porcos sem nome e sem coragem,
Isso a alguma saída nos conduz?

Entre os pilares do teu nicho escuro
Os mendigos defecam, e, é pior,
Copulam, e os sensatos cidadãos

Regam de urina, canto a canto, o muro,
Depois nos postes, com fundo pudor,
Não tendo lenço, enxugam suas mãos.

Nas orelhas do livro, Saraiva destaca ainda pungência dessa sátira. Ao reagir contra o idiotismo, a secularização e a barbárie, o poeta reprende de figuras políticas a reles conterrâneos, chegando até a invocar:

deuses do mal como Ahriman, a falar num ‘viveiro de frouxos e fantoches’, a denunciar erros e crimes do mundo moderno, a proclamar que ‘a burrice é congênita e incurável’, ou a valer-se, como um naturalista, de nomeações sem eufemismos: canalha, gentalha, matilha, escória, rale…; arroto, flato, fezes…

Além disso, destacamos olhar agudo do poeta sobre as manias humanas contemporâneas, como nesta quadra, de uma verve admirável:

ACADEMIA DE GINÁSTICA

Como incansáveis hamsters em suas rodas
Eles correm imóveis sob o neon
Que os expõe sem puder às vistas todas,
Êxodo sem final, dança sem som.

Da referência numismática da capa ao último poema, tem-se a sensação de obra plenamente consolidada. A crueldade de alguns poemas revela a sagacidade de Alexei Bueno contemplando a chegada dos bárbaros. Por outro lado, liricamente o livro transborda ternura nos versos dedicados aos amigos falecidos, como os grandes poetas Herberto Helder e Ivan Junqueira, assim como nas memórias da infância. Com a mesma excelência e requinte dos anteriores, este livro é indubitavelmente o acontecimento para a poesia brasileira!

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NOTAS

¹ “Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” Cf. Fernando Pessoa: Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Lisboa: Europa-América, 1986.

² “De certa feita bati-lhe às portas, na rua Nova, onde costumava hospedar-se. Peguei-o a passear, gesticulando e monologando, de canto a canto da sala. Laborava, e tão enterrado nas cogitações, que só minutos após deu acordo de minha presença. Foi-lhe sempre este o processo de criação. Toda arquitetura e pintura dos versos as fazia mentalmente, só as transmitindo ao papel quando estavam integrais, e não raro começava os sonetos pelo último terceto.” Órris Soares: Elogio de Augusto dos Anjos. Cf. Augusto dos Anjos – Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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