No novo romance de Michel Laub, os recursos narrativos e os temas abordados são mais interessantes que o conjunto.

“O tribunal da quinta-feira”, de Michel Laub

São duas as ameaças presentes em O tribunal da quinta-feira. A primeira é uma epidemia típica do mundo moderno para a qual não foi ainda encontrada uma cura, causadora de tragédias pessoais e coletivas, capaz de acabar com a vida de uma pessoa da noite para o dia devido a um pequeno deslize, um descuido, ou um comportamento arriscado, atingindo também as pessoas mais próximas da vítima em seu avanço, isso quando também não são vitimadas impiedosamente, sem ter tido parte no deslize ou descuido da vítima inicial. Trata-se da prática cada vez mais comum de linchamentos virtuais.

A outra ameaça presente no romance é o vírus da AIDS.

Evidentemente são tipos muito diversos de epidemia. No caso da AIDS, sua presença em nossa sociedade é relativamente recente, vinda dos anos 80 e presente até hoje; felizmente a ciência encontrou formas de tornar a vida dos portadores do vírus cada vez mais semelhante à normalidade, embora ainda não se tenha chegado a uma cura ou vacina que poderia colocar fim ao risco. De todo modo, antes dos coquetéis milhões perderam a vida de forma abrupta, deixando uma marca em nossa cultura. Michel Laub reconstitui muito bem a experiência social que tivemos com a “a-i-de-esse” ao longo das décadas na primeira parte de seu breve novo romance.

Mas o que dá título ao livro e dispara a tensão na obra é a versão virtual dos linchamentos – ainda hoje praticados em sua versão física e mais antiga com triste frequência. Embora só conheçamos por completo na parte final do romance as circunstâncias do tribunal pelo qual passam o protagonista José Victor e seu amigo Walter, os efeitos do linchamento estão presentes ao longo de toda a narrativa e demonstram como pode ser terrível ver suas conversas privadas lançadas na internet, removidas de qualquer contexto e tornadas provas de uma conduta a ser unanimemente rejeitada, condenada e achincalhada.

O problema é sério e acontece o tempo todo hoje em dia pelos mais diversos motivos. A discordância política, o comportamento sexual “fora do normal”, ou mesmo uma simples piada que desagrade um grupo específico e numeroso – tudo pode disparar o tribunal. As redes sociais permitem muitos efeitos positivos, mas também permitem uma relação nada saudável entre o poder de comentar sobre literalmente qualquer coisa e a utilização desse poder como um instrumento de “correção”, em que o indivíduo sofre o julgamento coletivo em questão de horas, sem mesmo a oportunidade de se defender. É um cadafalso inevitável: uma vez posto na situação, o desviante será derrubado pela ação de dezenas, centenas, milhares, e mesmo o arrependimento sincero não será suficiente.

O tribunal da quinta-feira capta o problema e parece expor com grande acurácia o sentimento dos linchados a partir do narrador-vítima. É também um livro sobre relações falhadas e aspirações amorosas, o que dá maior concretude à perseguição virtual ao observarmos quais exatamente são as vidas arruinadas pelos comentários de anônimos e conhecidos, pelas reações em progressão geométrica condenando José Victor e seus próximos ao opróbrio em nome de causas como o “feminismo” (entendido pelos linchadores como uma estratégia para envergonhar “machos opressores”) ou de preconceitos simplórios.

Michel Laub é um dos melhores escritores de sua geração e sua grande obra, Diário da queda, também lidava com as consequências imprevistas dos atos (ou omissões). Nos livros anteriores o autor desenvolveu seu estilo de capítulos curtos, quase aforismas narrativos, e sua forma bastante peculiar de construir períodos com simplicidade e densidade. Entretanto, assim como no mais recente A maçã envenenada, os recursos narrativos e os temas abordados são mais interessantes que o conjunto, carecendo de maior coesão entre duas partes do romance: as relações pessoais do narrador e as circunstâncias do tribunal.

Em suma, é um livro que agrada durante toda a leitura. No entanto, deixa a impressão de alguma pressa em sua conclusão, além de uma necessidade exagerada de esconder informações relevantes para produzir suspense. O recurso, utilizado nos dois livros anteriores de Laub citados acima, nem sempre funciona bem em uma história sobre excessivo escrutínio da vida privada por completos estranhos – twists semelhantes, como o de uma obra de Philip Roth que viria ao caso aqui, são construídos por uma confiança entre leitor e narrador, algo que O tribunal da quinta-feira não chegou a desenvolver. Apesar disso, é um romance que merece bastante ser lido e ter seu tema principal alvo de maiores reflexões.

Vinícius Justo

Mestre em Teoria Literária pela USP.

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