O cadáver adiado que procria

por Lucas Baqueiro (06/01/2018)

Lição de moral? Nunca acredite que a baixeza de caráter de alguém possa encontrar barreiras.

1.

Quero lhes contar uma fábula.

Em certo reino não tão distante havia um rei, que já mandava naquelas terras desde muito tempo. O registro de seu reinado era de singular pusilanimidade: tratava-se de alguém que vendia sua coroa a qualquer preço, e alugava seu cetro por trocados. Nenhum dos seus oficiais ou cortesões era galardoado por mérito, mas por quanto podia pagar. Apesar disso, continuava o monarca de caráter duvidoso ditando suas ordens do alto do seu trono enquanto o tempo passava, agarrando-se aos impostos dos seus súditos para garantir seu sustento dourado.

Um belo dia, porém, cansou-se. Aquele rei, num breve lampejo de lucidez, tomou consciência de sua própria história. Viu que o legado que deixava era o de um sujeito corrupto, capaz de vender algo que não lhe pertencia somente por trocados. Decidiu, então, tentar passar para a posteridade como uma criatura mais decente do que jamais havia sido. Chamou, então, seu príncipe-herdeiro para uma conversa.

Disse o rei a seu sucessor: “Eu lhe darei os rumos do meu país daqui para a frente”. Seu sucessor, vendo nisso uma oportunidade de mudar o final daquela história, cercou-se dos melhores conselheiros, que desenhavam um futuro de prosperidade para aquele país. E, vivendo aquele canto obscuro do planeta de um período sem-precedentes de iluminismo, encheu-se de gente interessada em construir o porvir.

O rei, que tornou-se figurativo, agora aparecia muito de vez em quando nas paradas militares, para vaidosamente desfilar com a cavalaria. Vez em quando, fazia anúncios através dos seus arautos, avisando que se desfazia de mais um dos seus poderes, encarregando-os ao filho. Proclamou, diante de toda a corte, que abdicaria dentro de alguns meses, para que finalmente seu herdeiro desse um destino àquele reino outrora tão decadente.

À boca-miúda, entre os estrangeiros, corriam boatos. “O rei está usando o filho e irá descartá-lo logo mais, em troca de ouro”, diziam uns. “Prometeram ao rei um imenso tesouro se ele deixar nosso país ser ocupado pelo vizinho”, apregoavam outros. Quem poderia acreditar, contudo, que um pai mentiria tão covardemente para um filho, mesmo sendo ele um dos sujeitos mais velhacos daquele continente? Ninguém acreditou. Perguntado o príncipe-herdeiro sobre os boatos, dizia: “Não é verdade. Fui garantido pessoalmente pelo meu pai, o rei, de que tudo isto é mentira”. E todos pensaram que deveria ser verdade, porque a baixeza humana tinha limites.

Num belo dia, acordaram todos com a notícia: o rei tinha vendido o seu trono em troca de um baú cheio de moedas de prata e uma roupa de fios de ouro, chutado o filho para fora do país e aberto as portas para um adversário, que prometeu melhor paga e mais honrarias.

Lição de moral? Nunca acredite que a baixeza de caráter de alguém possa encontrar barreiras, nem que seja em promessas feitas ao próprio filho.

2.

Não encontrei outra forma de narrar o acontecido hoje no PSL, com a chegada de Jair Bolsonaro, senão através desta fábula, que sintetiza o estado de inocência do qual fomos despertados, de uma hora para outra, para a realidade. Alguns chamariam nossa ingenuidade de “cornitude da realidade”, muito no lastro de que o corno é sempre o último a saber, conforme o consagrado dito popular. Outros, de “inocência política”. Mas o futuro deixará claro que era impossível prever a que ponto chegaria a falta de decência de um dos mais poltrões caciques da política brasileira.

No dia 22 de dezembro publiquei nesta revista um artigo chamado “Bolsonaro e companhia nunca virão para o PSL”. Naquela análise, que revelou-se errônea, pelo que faço mea culpa, afirmei que o Livres, até então tendência que substituiria o PSL dentro de meses, tomaria o partido, e Jair Bolsonaro não seria candidato à presidência através desta legenda. Duas semanas depois, está mais do que provado o erro no que afirmei.

Semanas atrás, algumas revistas noticiaram que o deputado federal Luciano Bivar, presidente do PSL, e Jair Bolsonaro estariam tratando sobre a possibilidade do último migrar para aquele partido. A possibilidade foi desmentida, em mensagem que tornou-se de domínio público, pelo próprio filho do presidente da legenda, Luciano Bivar, que afirmou: “Fiquem absolutamente tranquilos, que as notícias não têm fundamento; meu pai fez um compromisso e não irá descumpri-lo”.

Quedamo-nos então absolutamente tranquilos. Sabíamos que figuras como os deputados federais Daniel Coelho, Pedro Cunha Lima e alguns outros parlamentares, estrelas em ascensão do PSDB e de outros partidos, estavam acertando os retoques finais da sua migração para o Livres, dando verdadeiro lastro político à futura legenda. Quem seria suficientemente idiota de trocar deputados que dariam votos para suplantar a cláusula de barreira pelo sonho de uma noite de verão representado por Jair Bolsonaro?

Subestimamos, é claro, o poder da vaidade. De um lado, tínhamos um velho deputado fisiologista, que sugou até onde pôde uma legenda de aluguel, cujo maior feito nas manchetes nacionais havia sido o de subornar a comissão técnica da CBF para escalar um jogador do Sport, clube do qual era cartola. De outro lado, havia Jair Bolsonaro oferecendo a chance de catapultar o velho deputado à condição de vice-presidente em sua chapa, em troca de uma legenda inexpressiva que era o PSL.

Certamente Luciano Bivar pensou que seria a redenção de sua carreira política vergonhosa, e topou. “Às favas os escrúpulos”, como diria Jarbas Passarinho: sua palavra como homem, dada ao filho, nada valia diante da chance de brilhar em seus últimos quinze minutos de fama. Entendeu que, diante das estrelas atraídas para o projeto, não encontraria um fôlego a mais para sua carreira política. Poderia ter pedido ajuda para encontrar melhor caminho? Sem dúvida, pois estava bem assessorado por algumas das mentes mais capazes do país. Mas, em sua soberba, acreditou que poderia conquistar mais.

Foi a vice-presidência na chapa de Jair Bolsonaro o pagamento que Luciano Bivar recebeu por alugar sua legenda, seu caráter e sua palavra. Um preço, aliás, que ninguém estaria disposto a pagar por um partido inexpressivo, não fosse pelo desespero de ver-se sem legenda e sem poder de barganha diante de outros partidos. Nós todos do Livres, incluindo Sérgio Bivar, cuja palavra é muitíssimo mais fiável que a de seu pai, quedamo-nos sem chão.

Como temos integridade e decência, jamais poderíamos compartilhar a mesma legenda com Jair Bolsonaro. O Livres está integralmente de saída, e agirá como um bloco sólido, firme em princípios, ideais e decência. Portas abertas para nós, que representamos muito do futuro que o Brasil quer para si – gente honesta, sem rabo preso, que tem interesse em servir ao povo, e não ao próprio bolso – não faltam. Encontraremos uma nova casa dentro de pouco tempo, à espera de oportunamente fundar um partido político comprometido até a medula com a liberdade política, civil e econômica. Na próxima legislatura, nos estados e na Câmara, pontificarão membros do Livres, mostrando ao que viemos. À parte de nós já estão Luciano Bivar e Jair Bolsonaro, que representam o que há de pior na política brasileira, justo aquilo que pretendemos acabar.

Este não é o fim da novela da candidatura do capitão da reserva, representante sindical dos militares que, em quase três décadas de política, jamais aprovou alguma coisa relevante.

Embora tenha agora fechado acordo com Luciano Bivar, à maneira do que fizera antes com o presidente do Patriotas, Adilson Barroso, Bolsonaro continuará negociando com o Partido da República. Em março ou abril, talvez assistiremos a Luciano Bivar pagar o preço de sua ganância: sem mandato na Câmara, sem o sonho realizado da vice-presidência, universalmente conhecido como um homem capaz de enganar o próprio filho, enterrado na sua vida de dono de partido de aluguel.

Bolsonaro, por sua vez, também pagará o preço da sua carreira lastreada em mentiras, em sugar das tetas públicas, em ser useiro e vezeiro de expedientes pouco ortodoxos. Não vencerá nenhuma eleição, e amargará o ostracismo próprio do fim de carreira de uma vida política sem brilho.

Bolsonaro não é o futuro. Nós, como tantos outros movimentos de renovação da política, como o Partido Novo, o Agora!, o Acredito, é que somos. Os afoitos ora podem cantar vitória, mas a guerra não terminou. Como disse Miguel de Unamuno, “venceréis, pero no convenceréis”. Para conquistar as massas, precisa-se de um expediente melhor do que pagar aqui e ali a quem cobra um preço tão barato. Precisa-se, sim, convencer a todos de que há um futuro melhor pela frente para o Brasil. O que Bolsonaro não pode, mas nós podemos. Este é só o começo.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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