Bolsonaro tem pouco de Trump. As consequências da ascensão populista em uma democracia frágil são imprevisíveis.
1.
Era uma raridade encontrar dinheiro nos caixas eletrônicos em Nova Delhi, e policiais escoltavam turistas até os poucos que ainda guardavam notas, abrindo espaço entre os nova-delienses que esperavam pacificamente em fila e que cediam o passo por si mesmos como se os direitos do forasteiro branco estivessem de toda evidência acima dos seus próprios. Essas cenas eram familiares desde novembro de 2016, quando o governo de Narendra Modi decidiu empreender intempestivamente uma gigantesca desmonetização, retirando de circulação cédulas de 500 e 1000 rúpias no suposto intuito de coibir a circulação de dinheiro ilegal. Se permanecem dúbias ainda hoje as vantagens reais decorrentes dessa medida, suas sequelas em um país-continente com níveis de desenvolvimento tão desiguais quanto a Índia não tardaram a se revelar: economistas estimam que a desmonetização súbita de 87% do dinheiro corrente teria afetado negativamente o crescimento do PIB indiano (1% abaixo do esperado em 2017), e órgãos de imprensa divulgaram dezenas de mortes tidas por efeito da decisão, seja pela longa espera em filas, seja pela supressão do único modo de trabalhadores majoritariamente pobres e informais pagarem por serviços de saúde.
Não era a primeira medida desvairada que sacudia a Índia desde a eleição de Narendra Modi, em 2014. Festejado como um reformador pró-business por órgãos de imprensa globais que por vezes veem o que querem (a Economist, o Financial Times), logo o novo primeiro ministro expressou tendências inquietantes. Em um país onde os islâmicos respondem por uma minoria crescente de 14% da população (cerca de 170 milhões de pessoas), Modi – que já fora suspeito de permitir pogroms de muçulmanos quando governava o Estado do Gujarat em 2002 – investiu pesadamente na política de identidades, fazendo-se porta-voz das maiorias hinduístas, que perfazem mais ou menos 80% dos indianos. No Estado do Uttar Pradesh, um dos mais populosos e mais subdesenvolvidos, Modi apoiou a eleição do nacionalista e hindu Yogi Adityanath, seu parceiro no Bharatiya Janata Party (BJP). Adityanath lidera uma milícia violenta de extremistas religiosos e teria promovido, segundo seus críticos, a conversão forçada de 1500 cristãos ao hinduísmo.
O Uttar Pradesh não monopoliza a violência hindu; ainda assim, trata-se de um Estado representativo, haja vista sua importância histórica nos embates religiosos inflamados hoje por figuras como Modi e Adityanath. Quando da independência indiana e da divisão entre a Índia (hindu) e o Paquestão (islâmico), uma parte da população muçulmana decidiu permanecer no Uttar Pradesh, seduzida pela promessa de uma República laica e pluralista em moldes ocidentais. Com o neopopulismo de Modi, uma tal visão se esfumou em miragem. O linchamento de muçulmanos se tornou pratica mais e mais comum; 20 episódios foram registrados na região apenas em 2017. A vaca se viu transformada subitamente em um símbolo desagregador das comunidades religiosas; os próprios pogroms de muçulmanos foram gentilmente apelidados de beef-lynching, e o governo tem fechado matadouros por todo o Estado.
Nem mesmo o Taj-Mahal permaneceu incólume ao populismo. Herança do império islâmico Mughal que se estabeleceu a partir do norte da Índia no século XVI, o mausoléu construído pelo Shah Jahan em Agra vinha sendo objeto de tentativas de reinterpretação histórica por conservadores hindus que sustentavam improváveis teorias históricas: o edifício fora construído, segundo eles, sobre as ruínas de um templo hindu. Neste ano, o governo de Adityanath tentou suprimir o monumento, que é símbolo nacional indiano, do material turístico do Estado. Diante da reação da opinião pública, houve um recuo, mas a memória do Shah Jahan continua sendo alvo de ataques. Um deputado do BJP afirmou recentemente que o antigo imperador “perseguiu milhares de hindus” e que “é pena que pessoas como ele tenham um lugar na história”; “vamos mudá-la”, concluiu. A política das identidades e o reparacionismo histórico apresentam os mesmos resultados quanto à memória (ou à amnesia) coletiva, quer sejam grupos antirracistas destruindo estátuas no Sul dos Estados Unidos, quer sejam ONGs exigindo a destruição de estátuas de Colbert na França por seu papel no tráfico negreiro.
Visitar um país assim conflagrado sob o populismo nacionalista e religioso pode ser desconfortável, mas dificilmente apresenta grandes novidades para quem já esteve em outras regiões governadas por regimes semelhantes. Os embates na Turquia de Erdogan não se dão predominantemente entre identidades religiosas, mas entre uma maioria religiosa e uma minoria laicista, cuja principal referência é a figura do ditador reformista Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938). Seu projeto era o de vazar de cima para baixo a Turquia em moldes ocidentais, criando uma república laica; para tanto, acordou direitos às mulheres, expandiu a educação pública nos moldes republicanos franceses e introduziu na sociedade turca, por via autoritária, modos, gostos e vestimentas europeus (tango, álcool e banhos de sol se tornariam emblemáticos do regime). Essa herança kemalista é um dos fatores a caracterizar a Turquia com uma das torn societies de que trata Samuel Huntington: de um lado, elites urbanas ocidentalizantes; de outro, massas aferradas a modos de vida tradicionais. Nos anos 90 e 2000, essa divisão ganhou força renovada na sociedade turca com o uso recorrente, por jornalistas e acadêmicos, dos termos turcos negros (em referência a populações rurais da Anatólia que conservam os modos de vida islâmicos e traços da cultura original) e turcos brancos (para designar parte das classes médias educadas das zonas costeiras, defensoras do secularismo e identificadas com o estilo de vida europeu).
Ergodan explorou essa divisão mais ou menos imaginária para ascender ao comando nacional a partir de 2003 (antes como Primeiro Ministro e, a partir de 2014, como Presidente). De origens modestas, ele se dirá em 1998, já como prefeito de Istambul, “um irmão”, “um dos turcos negros”. No ano seguinte, será condenado a dez meses de prisão por incitação ao ódio após haver recitado durante um comício, em um expediente para se aproximar dos turcos negros, os versos de um poema ameaçador: “Os minaretes serão nossas baionetas, as cúpulas nossos capacetes, as mesquitas nossas casernas e os crentes nossos soldados”. Suas provocações à classe média superior dos grandes centros não vão sem lembrar as dos americanos do Meio-Oeste com relação às liberal elites costeiras nos Estados Unidos; em resposta aos protestos contra seu governo na Praça Taksim, Erdogan lançou mão de uma retórica que assimila, aos olhos das massas, os descontentes a uma franja de turcos hiper-intelectualizados, privilegiados e desenraizados: “Eles dizem: somos artistas, somos escritores, temos capital, nosso voto não é igual ao do Ahmet ou do Mehmet do interior. Bebem whisky com vista para o Bósforo e desprezam o resto do povo.”
Se na Índia de Modi os muçulmanos são perseguidos, na Turquia de Erdogan é em nome deles que se dão as perseguições. Os alvos vão de turcos secularistas a minorias religiosas. É notória a repressão do governo a qualquer manifestação pública de minorias sexuais (paradas gay são alvo constante das autoridades). A medida pode ganhar a Erdogan a simpatia de algum cristão conservador no Ocidente, mas esse é o mesmo governo que se apodera de igrejas pertencentes a minorias armênias e que estimula a guerra aberta a datas como o Natal e o Ano Novo: grupos islamistas de ideologia próxima à de Erdogan espalham cartazes com Papai Noel sendo nocauteado por um militante muçulmano; o Departamento de Assuntos Religiosos já declarou ilícito celebrar o Ano Novo, e, quando do atentado à boate Reina em 1º. de janeiro de 2017, islamistas postaram mensagens no Twitter caracterizando as mortes como uma punição justa aos turcos brancos adeptos do álcool e da minissaia.
A situação depois da tentativa de golpe de 2016 apenas se agravou. A Turquia de Erdogan é uma das campeãs mundiais em número de jornalistas presos. Universidades e jornais são fechados arbitrariamente, e o sistema judiciário foi infiltrado por homens fieis ao homem forte. O verniz democrático do regime é dado pelas eleições regulares (como também é o caso na Venezuela). Tudo segundo a visão de Erdogan, que sintetizou, no início de sua carreira, o populismo em uma fórmula lapidar à qual se manteria fiel: “A democracia é com um trem, você a deixa uma vez que chegou ao destino”.
2.
Podemos nos interrogar sobre a parte que cabe a Jair Bolsonaro nessa Internacional populista.
Recentemente, a Economist o caracterizou como o “Trump brasileiro”. Entende-se que os brasileiros prefiram se voltar para os Estados Unidos atrás de metáforas para sua realidade interna: o próprio das periferias é olharem exclusivamente para o centro; caso se considerassem mutuamente, não seriam mais por definição periféricas. Agora, que a Economist veja o Brasil de uma perspectiva global e não relacione o nosso populismo ao de países muito mais próximos em termos de economia e de cultura institucional, como os outros emergentes de desenvolvimento médio que são a Índia e a Turquia, eis algo de menos compreensível.
É triste desapontar seus apoiadores, mas Bolsonaro tem pouco de Trump. Um tanto pelas suas pessoas: Trump é o que é, mas fundou um império e uma fortuna fora da política. Toda a carreira de Bolsonaro foi a de um apparatchik orbitando em partidos sem expressão; sua carreira parlamentar foi apagada, para além das bravatas; sua experiência no Executivo é inexistente, e em nenhum campo da vida civil ou militar ele pode apontar realizações. Bolsonaro dá um novo sentido à expressão homem circunstancial.
Tampouco se pode comparar o populismo de direita americano com o que seria o populismo de direita no Brasil. O sistema político de ambos é em tudo distinto. O presidente americano pode prever os contrapesos a seus desvarios que uma democracia madura pode oferecer. No caso recente do livro de Martin Wolff sobre o caos e os desmandos na Casa Branca trumpista, as tentativas dos advogados do presidente de barrar a publicação deram com ouvidos mocos, e o sistema judiciário dificilmente atentaria a esse ponto contra a liberdade de expressão. Podemos nos perguntar se uma democracia claudicante como a brasileira ofereceria os mesmos obstáculos às reinações da dinastia Bolsonaro. Como mostram os exemplos de Índia e Turquia, as consequências da ascensão populista em uma democracia frágil são imprevisíveis.
É possível, por outro lado, distinguir os paralelos entre o surgimento de Bolsonaro com os de Modi e de Erdogan, tendo-se o cuidado de não ver no líder indiano ou no turco o modelo acabado para o populismo em Pindorama: as óbvias diferenças culturais entre esses países limitam qualquer analogia que as desigualdades sociais devastadoras ou que a imaturidade democrática dos três possam sugerir.
Modi conciliou um programa econômico liberal para afagar as classes empreendedoras e uma retórica nacionalista para atiçar o povão. Essa parece, em parte, a direção que Bolsonaro está tomando, ao por em segundo plano o protecionismo que sempre foi o seu para aproximar-se do Partido Social-Liberal – sem, contudo, deixar de responder com política de identidade de direita à política de identidade de esquerda que seus apoiadores, com razão, rejeitam. Ainda assim, Modi se aproveita da diversidade religiosa própria ao subcontinente indiano para lançar uma comunidade de crença contra a outra, o que ainda não é o caso de Bolsonaro, evangélico de oportunidade por demais dependente da simpatia de católicos conservadores – Paris vaut bien une messe.
Talvez fosse o caso de ver na rejeição por Bolsonaro do laicismo e dos direitos humanos um movimento paralelo ao de Erdogan na Turquia. Porém, se o discurso de Erdogan encontra eco nas populações rurais dos fundões do país, Bolsonaro até agora recolhe votos precisamente daqueles que seriam os turcos brancos brasileiros: os jovens da classe média urbana com maior escolaridade. Isso provavelmente se explica por algo de próprio ao contexto nacional e desconhecido em mesma escala em seus pares emergentes: a explosão da violência anômica, justamente no ambiente urbano habitado por classes médias aterrorizadas. Diante da incompetência de sucessivos governos em melhorar o cenário distópico das metrópoles brasileiras, a truculência de Bolsonaro pode até falhar em apresentar qualquer resposta minimamente razoável e concreta ao problema, mas ao menos testemunha de um voluntarismo impotente, ainda que sedutor; qualquer coisa é melhor do que nada aos olhos de uma população acuada.
Nesse aspecto, seu discurso remete ao de outro populista conservador do mundo emergente: o presidente filipino Rodrigo Duterte. Duterte, em sua campanha de combate às drogas, deixou um rastro de (até agora) 7000 execuções extrajudiciais de traficantes, usuários e crianças de rua. Há algo de talvez apetecedor nessa abordagem à parte da classe média brasileira que reclama frequentemente a erradicação dos pobres, e não da pobreza. Resta saber se os próprios pobres, às voltas com a violência policial, referendariam um discurso que subtrai as forças da ordem a qualquer contrapeso.
Se as analogias de Bolsonaro com essas figuras exóticas do mundo emergente existem, mas são precárias do ponto de vista do que cada um deles é, sua real semelhança se encontra naquilo que eles não são.
Trump, Modi e Erdogan cresceram onde as elites políticas anteriores deixaram espaços vazios. Não é o caso de Bolsonaro? A retórica anticorrupção é uma peça indissociável da ascensão dos quatro. “Crooked Hillary” foi o grande bordão da campanha dos Republicanos de 2016. Na Índia, enquanto o governo do Primeiro-Ministro liberal Manhoman Singh (2004-2014) afundava em acusações de corrupção que chegavam ao primeiro escalão, Modi montava sua campanha em torno de uma pauta moralizadora que previa, dentre outros, a malfadada desmonetização massiva de 2016 (essa, segundo economistas, falhou no objetivo de inibir a lavagem e a falsificação de moedas). Erdogan talvez tenha sido aquele que melhor soube capitalizar a indignação com a corrução para ascender politicamente; em certa ocasião, o então prefeito de Istambul teria revelado um esquema ilegal diante de jornalistas secretamente convidados a uma reunião sua com homens de negócios corruptos. É duvidoso se o lance manifesta mais um senso de honra pública do que de frisson midiático.
É natural que, ante a terra arrasada de Brasília, Bolsonaro busque propulsionar sua candidatura em cima da sensação do eleitor médio de que não sobrou ninguém Talvez as revelações dos últimos dias sobre o patrimônio imobiliário inexplicado (e inexplicável?) da pretensa dinastia venham a trazer um bemol à imagem de incorruptível. Ainda assim, nunca se pode subestimar a capacidade do eleitor brasileiro de se fazer vista grossa em nome de alguma fé política. Lula foi reeleito após a crise do Mensalão, e os desenvolvimentos da Lava-Jato não impediram a recondução de Dilma Rousseff.
A desmoralização das elites políticas não se deve, entretanto, apenas ao desvelamento de uma corrupção provavelmente desde sempre existente, Trata-se, isso sim, de um episódio em uma movimento muito mais amplo: o enfraquecimento dos corpos médios na democracia contemporânea. A classe política é só um desses intermediários entre o povo e o Estado que perderam força na era digital; uma abundante bibliografia aponta que o mesmo está se dando com atores tão variados quanto os sindicatos ou a mídia tradicionais. Nem intelectuais, nem acadêmicos foram poupados a esse processo: diante da desconfiança da população, é fácil aos populismos lançar sobre esses grupos o anátema, assimilando-os a traidores do povo, a infiltrados do Ocidente (eis a carta de Erdogan!), a conspiradores globalistas, a agentes da esquerda (ou do imperialismo, como se ouve em países como a Venezuela).
Essa debilitação se deu porque as redes sociais facilitaram o acesso e a veiculação da opinião, que não mais passa pelos filtros que vigoravam na democracia pré-digital (a imprensa, a universidade, as associações). Ao mesmo tempo, o caudilho virtual pode se dirigir diretamente à massa, jogando-a contra, se preciso for, os antigos mediadores. No passado, os grandes líderes da “democracia direta” efetuavam esse movimento por meio do rádio ou de estádios lotados (Getúlio Vargas foi exímio nessa arte). Hoje, as redes sociais facultam o mesmo serviço por muito menor custo e com muito maior abrangência. Não apenas Trump é adicto ao Twitter; Modi elegeu a plataforma como o grande meio de comunicação imediata com as massas, e uma das forças eleitorais de Bolsonaro está precisamente em seu uso do Facebook e de blogs, de onde a família fustiga inimigos e incita apoiadores.
De resto, outras épocas conheceram perturbações políticas momentosas com a introdução de meios até então desconhecidos de circulação de discursos. A imprensa e a alfabetização concretizaram a Reforma que vinha se ensaiando sem sucesso em séculos anteriores (Fra Dolcino, os albigenses), relegando enfim à penumbra a mediação do clero católico em grande parte da Europa. O fim do século XIX viu a urbanização e a imprensa massiva alterar profundamente a paisagem política, dando primeiramente impulso à democracia de massas, depois fazendo caducar a representação nos parlamentos em favor de ditaduras populistas concentradas em personalidades fortes como nos fascismos europeus e nos aparentados latino-americanos. Como o passo a mais na direção da horizontalidade total da palavra representado pelas redes sociais não redundaria na obsolescência dos mediadores, dos mestres de ontem, em favor de novas tiranias das maiorias que depositam todas as esperanças em novos homens fortes – no fundo, um de nós, mas melhores, mas maiores porque caricatos?
Nesse regime de horizontalidade da palavra favorecido pelas redes sociais, é preciso não apenas que a palavra circule sem filtros entre os cidadãos; ela também deve circular sem filtros a partir do líder. Ele não pode falar como – como os políticos, como os jornalistas, como os universitários, como os profissionais urbanos. Ele fala diretamente o idioma do eleitor, ou o que se imagina sê-lo. As maiores impropriedades passam sob o pretexto de autenticidade, quando não de irreverência. É a zuera dos bolsonaristas, os tweets de vocabulário precário de Trump, os impropérios de Duterte, antes deles o franc-parler bonachão de Lula. Em outros tempos, faltas tão evidentes de decoro e de preparo intelectual passariam por deficiências intransponíveis a qualquer um que aspirasse ao comando máximo de uma nação. Hoje, são atrativos, formas de quebrar os códigos, de dizer o que esses homens não seriam: um deles.
Também são maneiras de dizer que eles seriam um de nós. Uma tal identificação entre o chefe e o homem médio corre o risco de fazer-se indissolúvel, à prova de evidências. O próprio fato de que um Trump ou um Bolsonaro não tenham uma só ideia própria para além de retórica vazia conta em alguma coisa no encanto que exercem sobre o eleitor (mon semblable,…). É assim que uma das frases mais emblemáticas do momento populista atual veio de Donald Trump; em um comício, ele disse que poderia atirar em alguém na 5a Avenida e ser eleito, o que acabou se mostrando verdadeiro.
3.
Todas as correntes de neopopulismo encontraram terreno fértil na democracia porque se alimentaram de uma das suas mais poderosas forças subterrâneas: o ressentimento.
A globalização acirrou o ressentimento que surgia antes associado a classes sociais em um quadro estrito, nacional. A integração transnacional foi de par com o estabelecimento de uma rede hierarquizada de cidades que partilham uma cultura em parte independente dos territórios nacionais em que se situam: no topo da escala, cidades Alfa como Nova York, Londres, Tóquio ou Paris; logo abaixo, cidades Beta, que ligam economias nacionais com a economia-mundo (Roma, Cairo, Lima, entre outras); por fim, cidades como o Porto, Nanjing ou várias de nossas capitais brasileiras que realizam essa conexão com regiões ainda menores. A emergência dessa hierarquia não apenas sobrepôs-se, atravessando-o, ao quadro nacional; ela dividiu populações e ocasionou a emergência de novos conflitos políticos.
Um dos países em que essa clivagem está melhor estudada é a França. Contribuiu grandemente para isso o geógrafo Christophe Guilluy, que se tornou figura recorrente na mídia ao demonstrar como o território nacional francês teria se dividido entre uma rede consistindo em uma dezena de metrópoles globalizadas, cujos habitantes gozam de renda comparativamente alta e dos benefícios do multiculturalismo, e uma “França periférica” que se estende das periferias dessas metrópoles até os espaços rurais, passando por cidades médias e pequenas. É a essas últimas regiões periféricas que os petits blancs teriam se deslocado com a chegada de populações imigradas que ocupam as banlieues parisienses ou marselhesas e que, portanto, conseguem se integrar melhor à economia globalizada. Daí o ressentimento dos brancos periféricos em relação aos recém-chegados e às elites metropolitanas que teriam brandido a bandeira da globalização; daí também sua tendência a fazer secessão, a criar uma contra-sociedade baseada no enraizamento e na homogeneidade, em tudo oposta aos valores de mobilidade e de diversidade dos bourgeois-bohèmes.
Esse quadro descreve o que já foi nomeado como “a fratura francesa”. Resta que ela é também uma fratura global, atravessando países e regiões.
De um lado, permaneceram existindo os cidadãos, cuja principal referência é o quadro nacional em que o próprio vocábulo “cidadão” ganhou sentido ao fim do século XVIII. De vanguarda do processo histórico de formação de Estados-nação a partir dos velhos impérios ao longo do século XIX, eles são os atuais habitantes das profundezas dos seus respectivos países. Por profundezas pode-se entender, por certo, os cantões geograficamente mais remotos, mas também as periferias metropolitanas e os vazios culturais que são os subúrbios tentaculares no continente americano habitados pela classe média técnica. Sua língua, sua religião, seus modos de organização e suas referências culturais são, tanto quanto pode ser o caso em uma economia global e digitalizada, circunscritos pela referência à nação e ao meio imediato onde habitam.
Já os citadinos não são propriamente “cidadãos do mundo”, como quer o clichê (eles dificilmente elegeriam residência no interior da Albânia ou de Bangladesh). Antes, identificam-se, em graus distintos de realização e de bovarismo, com a cultura urbana transnacional emergente com a hierarquia de cidades globais, sobrepondo essa a seu vínculo nacional originário. Seu ideal é o de uma permeabilidade entre esses ambientes urbanos distantes geograficamente, mas próximos na economia simbólica. Seria simplista dar seu ideário por mero produto de ideologia pós-moderna. Malgrado um quê de artificialismo mais frequente do que o desejado, ele corresponde também a uma vivência real decorrente da compressão espaço-temporal ocasionada pelas tecnologias: os citadinos do Marais (Paris), de Zizkov (Praga) e de Zamalek (Cairo) podem de fato encontrar mais em comum entre si de um país a outro do que com seus concidadãos: gostos, ideias, modos de se relacionar.
O que distingue esse modo de vida é menos a ausência de qualquer pertencimento, como querem seus críticos conservadores, do que a preferência por pertencimentos suaves; no lugar de se definirem por suas identidades nacionais, familiares, sexuais e linguísticas herdadas heteronomicamente, os citadinos buscam manter uma distância crítica quanto a elas, não necessariamente para negá-las de todo, mas para geri-las como que de cima e combiná-las livremente a fim de preservar margens de autonomia individual. Daí ser comum que, politicamente, citadinos advoguem pautas liberais (à esquerda ou à direita) não tão diferentes de um país a outro; trata-se de cavar nas estruturas nacionais e religiosas heteronômicas brechas para a integração a uma cultura urbana mundial de individualismo e de experimentação.
A divisão entre citadinos e cidadãos nem sempre se cruza com as divisões pré-existentes. Já vimos que ela não recobre perfeitamente a diferença entre população rural e urbana, já que esta última não necessariamente é composta inteiramente por citadinos (eles, em realidade, parecem concentrar-se preferencialmente em certas regiões, em alguns bairros). Tampouco ela corresponde ponto por ponto a classes socioeconômicas: por certo, o pertencimento (ou a aspiração) à cultura das cidades globais necessita algum capital (social, econômico, cultural) fora do alcance das massas trabalhadoras em sua maioria, mas um jornalista que vive de freelance e que mora de aluguel pode estar mais inserido nesses fluxos urbanos internacionais do que um cirurgião- dentista rico e monolíngue.
É duvidoso também que haja uma diferença de valor intrínseca entre os dois grupos, para além de preferências individuais. Ainda assim, no interregno da queda do Muro de Berlim e da consolidação das redes sociais, tudo parecia indicar que os citadinos seriam os senhores do universo. Mesmo em cantos recuados, havia sinais de que as velhas identidades religiosas, nacionais e sexuais se transformavam menos em uma bagagem que o indivíduo devia se resignar a carregar e contra a qual deveria mesurar seus desejos, do que em um repertório de ser entre tantos, negociável com outros que ele conhecesse e escolhesse ao longo de sua existência. Era claro que as mulheres em mais ou menos tempo não teriam suas vidas profissionais determinadas pela sua anatomia, que um dia vizinhos com tamanhos de nariz diferentes deixariam de se matar mutuamente em rincões africanos ou asiáticos. A anatomia sexual, os tamanhos dos narizes, os lugares onde nascemos, a religião paterna – tudo se transformaria em elemento componível com seu diferente e com seu contrário em vista da realização individual. Defender o oposto disso era sinal de uma idiossincrasia inexplicável, quem sabe patológica, ou de um pensamento atávico, e os corpos intermediários, formados majoritariamente por citadinos (os mesmos culpados de sempre: acadêmicos, jornalistas…), trataram de deixar isso bem claro.
Com a horizontalização da palavra pública nas redes sociais, o cidadão ganhou voz. Se a tecnologia da informação serviu a forjar a identidade dos citadinos, ela foi essencial para aglutinar os cidadãos. Num movimento devidamente facilitado pelos inimigos subterrâneos dos citadinos quando esses reinavam incontestes (gurus esotéricos, filósofos da nouvelle droite, supremacistas raciais), muitos cidadãos se reconheceram mutuamente enquanto tais para depois se assumirem como diferentes, quando não adversários, do mundo tal qual queriam seus compatriotas desenraizados: mon semblable, mon frère. De repente, sem que ninguém os contasse, mas com a força de uma evidência, sentiram-se empoderados, majoritários… Seria interessante estudar por que a Turquia de Erdogan e a Rússia de Putin estiveram na vanguarda desse movimento, já em meados dos anos 2000.
Soou, então, a hora da vendeta contra os bebedores de café latte identificados por Charles Murray nos bairros hispter dos Estados Unidos, contra os portadores de soluções aos problemas etéreos das baleias ou do Timor-Leste sem tomar em conta as dores e as frustrações de existir do homem comum, do compatriota banal bem ao seu lado. São os artistas, os escritores bebericando whisky com vista para o Bósforo, tais como os caricaturou Erdogan.
A reação política não poderia tardar. Lembro de um programa de televisão francês durante as eleições presidenciais do ano passado em que um repórter perguntava a uma senhora anônima na rua por que ela votaria em Marine Le Pen. A resposta: Pour les emmerder!
Les emmerder! Les, a eles, chatear a eles… Essa velhinha francesa é um condensado de todos os adolescentes postando memes de Bolsonaro, envolvendo o PT, a Globo e a ONU em uma única revolta e em um les comum: a eles. O ressentimento opera condensações de objetos díspares de que nem mesmo o mecanismo dos sonhos descrito por Freud seria capaz.
Essas condensações ditadas pelo ressentimento não se dão apenas quanto aos citadinos confundidos em um eles unânime; características muito distantes começam a se confundir na identidade em formação do nós cidadão. É claro que nem todos os cidadãos são racistas, homofóbicos ou machistas. Muito pelo contrário, a formação de Estado-nação em que irrompeu o cidadão correspondeu por vezes à consolidação democrática, cenário em que muitas das minorias raciais ou sexuais adquiriram direitos mínimos. Mas, sob a vigilância do discurso citadino que, em sua fase mais segura de si, assimilava qualquer heterodoxia de opinião a uma confissão de culpa colonialista ou misógina, muitos cidadãos passaram a se reclamar ativamente desses rótulos. Não foi o mesmo que aconteceu com os negros ou com os homossexuais reivindicando para si termos como negão e bixa frente ao opróbio geral a eles reservado? Assim como essas minorias, as supostas maiorias de cidadãos buscaram um forma de refletir positivamente a imagem depreciativa que aqueles que eles próprios tomavam por superiores lhes enviavam. “Pois”, se disseram eles, “se seremos mesmo sempre suspeitos de barbárie aos olhos dos citadinos, sejamos bárbaros de uma vez, e com orgulho!”. É só disso, desse ressentimento, que a zuera bolsonarista tira toda a sua graça e seu apelo contraventor. O fechamento do Queermuseu em Porto Alegre teve o impacto que teve porque demonstrou que o ressentimento cidadão não tem limites no exercício da sua força recém-descoberta.
Os dados estão lançados, e é impossível saber o desfecho dessa situação nova no Brasil e no mundo – isso se houver desfecho, se não estivermos às voltas com um novo normal. Tendências divergentes convivem, e, se estamos em plena rebelião populista, não é menos verdade que a mudança de poder para as cidades globais (e para as elites urbanas?) é dificilmente reversível a curto prazo; antes, deve se aprofundar. Provavelmente rumaremos a um mundo de países de desenvolvimento médio e superior instáveis em permanência, clivados culturalmente, socialmente, politicamente para além de qualquer conciliação. Em alguns casos, o sistema político pode se fechar; foi o caso na Turquia depois das manifestações contra Erdogan e está sendo provavelmente nas Filipinas de Duterte, mais e mais contestado em sua brutalidade pela classe média educada de cidades mundializadas como Manila. É duvidoso se o mesmo ocorrerá nos Estados Unidos. Quem pode dizer o que de um Brasil sob uma suposta presidência populista? Bem-vindos aos tempos interessantes.
Rodrigo de Lemos
Doutor em literatura pela UFRGS e professor na UFCSPA. Escreve no site do Estadão e em outros veículos.
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