Na era presente, falar em recursos naturais redentores deveria ser causa de constrangimento ou ridículo.
Na trilogia Senhor dos Anéis, de JRR Tolkien, o Um Anel é um objeto de sedução quase irresistível, capaz de conceder poderes tremendos a seu possuidor, mas ao preço de corrompê-lo radicalmente: apenas Sauron, um espírito já corrompido para além da possibilidade de redenção, é capaz de realmente usar o Um Anel, em vez de ser usado por ele. Esse Um Anel é marcado por uma inscrição que só se torna visível quando seu metal é aquecido. Os versos, em tradução aproximada do idioma élfico, dizem: “Um anel para a todos governar, um anel para revelá-los, um anel para trazê-los e em trevas aprisioná-los”.
Tolkien, escritor e filólogo britânico, ficou famoso pela criação de um complexo universo ficcional, a Terra Média, que dotou não apenas de povos, geografia e história próprias, como também de línguas específicas (como o élfico, citado acima) e de densidade mitológica – um universo que, no fim, é o grande protagonista de seus livros de fantasia.
Mitologias postiças, no entanto, não são exclusividade de autores de ficção e fantasia. Autores e agentes que creem estar descrevendo o mundo real, e atuando nele, muitas vezes produzem-nas e agarram-se a elas, pondo o testemunho do delírio no lugar da evidência dos dados e dos sentidos. Caso clássico, que tem o poder de lançar figuras públicas do Terceiro Mundo (ou “Sul Global”, para usar o jargão du jour) num êxtase febril, comparável ao provocado pelo Um Anel nos potentados da Terra Média, é o do Um Recurso.
O Um Recurso é aquilo que nosotros hermanos temos, mas eles não têm, e cobiçam. É aquilo que pode nos fazer ricos, poderosos, belos e cheirosos; conspirações são tramadas, Lá Fora, para nos privar do Um Recurso, para nos convencer a vendê-lo por menos do que vale, ou dá-lo gratuitamente.
Se nossa vida nacional é uma desgraça, é porque nunca tivemos controle real sobre o Um Recurso. O Um Recurso é nosso, dizem Deus e a Natureza, mas os guardiões escolhidos para protegê-lo são venais: assim como Um Anel, ele corrompe todos, exceto os mais puros ou os já corruptos. Nossas elites conspiram com Lá Fora, contra nós, para abduzir o Um Recurso e nos manter escravizados.
A encarnação mais duradoura do Um Recurso é, claro, o petróleo, e aí está a ópera-bufa do Pré-Sal como testemunha. Mais do que um tropo da esquerda, no entanto, o Um Recurso é parte do arsenal populista-nacionalista, e pode ser mobilizado por figuras de qualquer parte do espectro ideológico. Caso em tela: o deputado-presidenciável Jair Messias Bolsonaro e suas fixações em nióbio e grafeno, a primeira herdada do falecido Enéas Carneiro, político folclórico que Bolsonaro quer ver inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.
Ao longo do último ano, escrevi um par de reportagens sobre o assunto (que podem ser lidas aqui e aqui), onde as ideias do deputado a respeito desses recursos minerais, e do papel que desempenham na economia brasileira e na geopolítica global, são classificadas, por gente que realmente estudou e entende do assunto, de “delírio nacionalista” e tentativa de “enganar as pessoas”.
Não se trata, aqui, de contestar a importância e o valor dos recursos naturais, ou de negar que podem existir formas mais ou menos eficazes e inteligentes de explorá-los, mas de expor pelo que é – estultice ou mistificação – o mito do Um Recurso: o de que existe uma espécie de tesouro enterrado, que nos pertence por decreto divino e que poderia nos “salvar”, se não fossem os estrangeiros malvados e seus asseclas.
Isso é uma enorme bobagem. Na era presente, que assiste ao ocaso dos combustíveis fósseis, numa economia global e baseada em conhecimento – onde o design de um produto, como um smartphone, é várias ordens de grandeza mais precioso do que a soma total dos materiais usados para produzi-lo – falar em recursos naturais redentores, numa conversa entre adultos, deveria ser causa de constrangimento ou ridículo. Por que, então, esse tipo de discurso não morre?
Há vários motivos. O maior deles é o apelo quase irresistível da simplificação radical do radicalmente complexo fenômeno, que se dá de diversas maneiras. Uma é a transformação da minuciosa e, muitas vezes, maçante tarefa de construção nacional em divertida aventura, a caça de uma Arca Perdida ou de algum mcguffin hitchcockiano. Há uma invejável clareza de visão: se antes reinava um caos cambiante, cuja administração exigia paciência, argúcia e cuidado, agora basta abrir caminho com lança-chamas e tirar o Um Recurso das mãos inimigas, libertar Excalibur da bigorna.
Outro modo como o mito do Um Recurso simplifica a vida mental dos preguiçosos encontra-se na legitimação que oferece ao ódio. Assim como os orcs que Sauron mobiliza para obter o Um Anel estão lá só para perecer no fio da espada dos heróis, os usurpadores do Um Recurso e a quinta-coluna que os apoia estão aí para serem exterminados. Eles merecem.
A política, então, deixa de ser a busca de pactos, dentro de uma sociedade heterogênea, em torno da distribuição de recursos comuns e da definição de objetivos públicos, e se converte em programa de extermínio do Mal: quem pactua com o demônio, ensinam as mitologias mais populares, sempre se arrepende depois, então nós é que não vamos cair nessa.
No caso das falas de Bolsonaro sobre nióbio e grafeno, o Mal reside na esquerda (parte de suas diatribes em torno do nióbio envolvia uma suposta postura “entreguista” do governo Dilma, que beneficiaria a China “comunista”) e nas forças que resistem à conversão completa do território nacional em commodity, como ambientalistas e populações indígenas – em seu vídeo sobre grafeno, disponível no YouTube, o deputado lamenta que as reservas de grafite do Estado de São Paulo estejam em território de índios.
Ambas as alegações são, de fato, falsas. O grafite existente em áreas indígenas paulistas é irrelevante para a exploração econômica do grafeno (as reservas que realmente valem alguma coisa concentram-se em Minas Gerais). E o nióbio nacional já é, na prática, monopólio de uma empresa controlada por capital brasileiro.
Nesse aspecto, Bolsonaro mostra-se apenas um pouco menos sofisticado do que os nacional-desenvolvimentistas de esquerda, à la Aldo Rebelo (ou a própria Dilma Rousseff), que tanto amam a matriz energética do século passado, e que consideram índios e ambientalistas um incômodo, na melhor das hipóteses, ou massa de manobra manipulada por interesses estrangeiros, na pior.
A sobreposição detectada em pesquisas publicadas em outubro último, entre parte do eleitorado de Lula e de Bolsonaro, é menos surpreendente do que as manchetes da época queriam fazer crer: ambas as candidaturas têm, em seu esteio, pessoas dispostas a acreditar que basta mandar os orcs para o paredão, e entregar o poder às “pessoas de bem”, para que o país finalmente se desembarace de vez dos lençóis do berço esplêndido.
O que muda é a identidade das “pessoas de bem” – que, no caso da direita, se intitulam assim mesmo, como “pessoas de bem”, e no da esquerda, como “de esquerda” – e dos orcs: para uns são os rentistas loiros, coxinhas golpistas de olhos azuis que tiram férias em Miami; para outros, os gayzistas feministas abortistas ecológicos, quilombolas vitimistas globalistas.
É verdade que o deputado tem apelado menos para o tipo de discurso que o fez famoso – e do qual o reforço mútuo entre as retóricas do ódio e do Um Recurso é peça-chave – desde que se assumiu como pré-candidato. É provável que seja apenas o silêncio estratégico do extremista que busca acolhida no mainstream.
Para os setores do mainstream que se propõem a acolhê-lo, gostaria de citar dois precedentes, um histórico e um literário. O histórico é Donald Trump, o outsider extravagante que, para escândalo dos moderados “espertos” que decidiram apoiá-lo, uma vez no poder se pôs a executar todas as bravatas e enormidades o que havia prometido no palanque. O literário é, mais uma vez, o Um Anel, que usa e se serve de quem se achava esperto o bastante para usá-lo e servir-se dele.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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