Corrupção, só quando é dos outros. Quando é do PT, cria-se factoides para relativizar ou negar.
É muito triste estigmatizar o comportamento de tendências políticas, mas é inevitável fazê-lo em se tratando do petismo. O petismo incorporou à sua prática um duplo padrão moral: o que vale para os seus adversários, não vale para si. Politicamente, age como dona Doroteia, da minissérie Gabriela (e não do livro de Jorge Amado): defende implacavelmente a moral e os bons costumes, mas esconde seu passado de prostituição, sob o nome de “Dodô Tanajura”.
Voltando-nos ao passado, anterior à chegada de Lula à presidência, e noves-fora as profundas convicções socialistas arraigadas na Teologia da Libertação e nas Comunidades Eclesiásticas de Base, o petismo sempre foi a representação da pureza e da honestidade na política. Bradava aos quatro cantos contra as oligarquias, contra o péssimo uso do dinheiro público, contra a corrupção e as negociatas, e tinha como leitmotiv essencial de sua existência o denuncismo.
Mas, mesmo naquele tempo, a prática já não casava com a realidade. Enquanto bradavam contra o esquema da compra de votos pela emenda da reeleição, no governo de Fernando Henrique, sobravam escândalos de corrupção nas prefeituras de Santo André e Campinas – cujos prefeitos petistas, Celso Daniel e Toninho do PT, terminaram sendo assassinados em crimes sombrios, não esclarecidos até hoje, mas movidos por fortes indícios de malversação do dinheiro público.
O duplo padrão moral não se revela apenas na corrupção, mas nas pequenas coisas, como comentários e incoerências. Recorro à evidência anedotária de Folclore Político, de Sebastião Nery (Geração Editorial, 2002), para contar um caso que revela esse dois pesos e duas medidas mesmo em questiúnculas esdrúxulas. Em 1979, Francelino Pereira, um piauiense de Angical, acabara de ser eleito governador de Minas Gerais, pelo partido do regime militar. Uma repórter de um semanário do PT, ensandecida, foi entrevistar o líder do PDS, cobrando uma explicação: “deputado, o senhor não acha uma vergonha para Minas o governador ser piauiense, de um lugar tão distante?”. Recebeu na caixa dos peitos a resposta: “está bem, mas o presidente do seu partido é de bem mais longe”. (O presidente do PT era o ex-padre Ignacio Hernández, espanhol basco).
O PT hoje brada que o “golpe” e que o “estado de exceção” foram movidos, dentre outras razões, pela homofobia. Mas a homofobia de seus dois maiores mandatários, os ex-presidentes Lula e Dilma, e de seus militantes, não contam para esse corolário? Um artigo inteiro poderia ser facilmente dedicado a falar sobre isso. Lula, em 1981, declarou à Revista do Homem (antigo nome da Playboy), que era contra a homossexualidade. No ano 2000, o mesmo dignatário foi flagrado dizendo: “Pelotas é cidade-pólo, né? Pólo exportador de viados”. Mais recentemente, se referiu a lésbicas militantes do próprio partido como “mulheres de grelo duro”.
O caso das mulheres de “grelo duro”, aliás, merece todo um capítulo à parte. O malabarismo da militância do então moribundo governo para justificar o ocorrido foi um verdadeiro show. Textões surgiram em todo o canto dizendo que “grelo duro” é uma expressão de valor, que fala sobre a mulher guerreira, abnegada, que vence na vida sem precisar do auxílio de nenhum homem, e que é uma fala tipicamente nordestina. Como nordestino com muita vivência no semi-árido pernambucano, mesmo lugar de origem de Lula, afirmo: “grelo duro” é a expressão de mais baixo-nível possível aplicado a uma lésbica. Se um dia eu saudasse qualquer mulher, da minha família ou fora dela, em qualquer lugar do Nordeste, com um “grelo duro”, receberia como resposta um murro na cara.
A homofobia institucional foi marca do governo Dilma, que segurou-se o quanto pôde na bancada evangélica para manter suporte no Congresso Nacional. Com relação a cartilhas do MEC sobre educação sexual, infamemente chamadas por “kit gay”, manifestou-se Dilma incisivamente: “meu governo não fará propaganda de opção sexual”. Perguntada sobre sua nebulosa orientação sexual à altura – Dilma, por seus modos incisivos e masculinos, seria facilmente chamada de “mulher de grelo duro” por Lula – nossa ex-presidente tomou como uma agressão: “me respeite, sou mãe e avó”, respondeu a um repórter, como se lesbianismo fosse marca negativa de caráter.
Quem esquece da reação petista quando Ney Matogrosso se disse decepcionado com o governo Dilma? No Twitter, líamos os gritos, da hoste necrogovernista: “bicha velha esclerosada!”. Homofobia, mesmo, só quando é dos outros.
Nesse universo, os adversários dos petistas são todos inegavelmente machistas. Machista jamais será o homem que disse, a respeito da invasão da Polícia Federal à casa de Clara Ant, sua assessora: “A Clara tava dormindo sozinha quando entrou cinco homens lá dentro, ela pensou que era presente de Deus, era a Policia Federal, sabe?”. Fosse outro, foices e porretes, tochas e gritos o aguardariam na porta de casa, aos gritos de “machista, machista, não passará”. Mas era Lula, o que tudo pode, de quem tudo se perdoa.
O “golpe de Estado” – esse golpe brando, sem tanques, sem tiros, sem ruptura da constitucionalidade, com rito perfeitamente legal e crime de responsabilidade comprovado -, de acordo com a narrativa petista, trouxe o avanço do conservadorismo e mesmo a ditadura evangélica. Mas, e quando Dilma andava de braços dados com Eduardo Cunha, pedindo votos em igrejas pentecostais e clamando que “feliz é a nação cujo Deus é o senhor”, valia? E quando Lula, em aliança explícita com Edir Macedo, chefe da Igreja Universal, fomentou a formação do Partido Republicano Brasileiro (PRB), cem por cento identificado com a dita Igreja? Não havia, então, conservadorismo evangélico?
O projeto de lei que criminalizava a homofobia era a pedra de toque do suposto progressismo petista. Todavia, não hesitou o partido de Lula em sacrificá-lo, diante do escândalo que ameaçava a convocação de Antônio Palocci, então ministro-chefe da Casa Civil de Dilma, a uma CPI. Em troca de retardar a queda de Palocci, arquivou-se o projeto de lei, porque mais valia a sustentação de seu governo do que a tão propalada luta contra a homofobia, que jamais aconteceu.
O PMDB, hoje classificado pelo petismo como uma espúria organização criminosa, era grande parceiro de governo. Sarney, objetado como político e homem, era conselheiro e amigo primeiro de Lula. Delfim Netto, a cara visível e gorda do regime militar, enquanto propalou estrito apoio ao receituário lulista, era homem renascido para Cristo, de alma lavada, e progressista até a medula. Kátia Abreu, que quando na oposição era chamada de ruralista assassina, e culpada pelo petismo até de um espirro de um índio em Roraima, foi elevada à categoria de novíssima versão feminina e rica de Chico Mendes. Até Paulo Maluf, cuja folha corrida e pregressa de crimes era cantada em prosa e verso pelo petismo, foi perdoado através de um aperto de mão tríplice com Fernando Haddad e Lula.
Corrupção, só quando é dos outros. Quando é do PT, ainda que existam provas abundantes, cria-se o factoide de que se disse que existiam “apenas convicções, e não provas”. Quando é do inimigo, ainda que nada se prove, bem… É corrupto, é safado, é assassino de crianças em hospitais, é terror da educação. Vampiro jamais será o senador Humberto Costa, envolvido na máfia dos sanguessugas: é Michel Temer, por uma alusão ao romance de Bram Stoker.
Sopesados os pecados de um inimigo do petismo e de um apparatchik lulista, ainda que os do primeiro sejam leves como pena, e os do segundo maciço como quilos de chumbo, o prato da balança do adversário penderá muito mais. Na balança petista que calcula delitos e incorreções, entendam, existe uma tara: a tara é o petismo, que retira quilos do peso bruto do pecado, pois só o amor incondicional a Lula traz a salvação.
O duplo padrão moral do petismo só não é visto por quem não quer enxergar. É revelador da amoralidade da versão de dona Doroteia partidarizada: santa na rua, que propaga sua família exemplar aos moldes da Ilhéus da década de 30, mas quenga de alma, mãe de xibungo e avó de deflorador. O petismo não se desviou de seus ideais um milímetro, como proclamam os puristas, que se sentem enganados por terem cantado, em algum ponto de sua vida, o “Lula-lá”: já nasceu transviado e golpista, pondo fantasia de partido honesto para esconder o banditismo em regime de cooperativa.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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