Não deveria mais restar qualquer dúvida de que os petistas são incompatíveis com a democracia liberal.
Era maio de 1945 e, depois de quinze anos em que Getúlio Vargas esteve no poder, o Brasil aspirava à possibilidade de uma efetiva instauração do regime democrático-representativo findar de vez a mais completa e clássica ditadura de sua história. Infelizmente, o impacto do varguismo era muito mais enraizado e perene do que se poderia supor. As esquerdas varguistas, representadas pelos setores trabalhistas – com apoio do comunismo, cuja diretriz era favorecer pragmaticamente os governos nacional-populistas –, queriam que Getúlio ficasse livre e no poder.
De qualquer jeito. A democracia, a lei, a existência de uma Constituição, de um código de regras a ser respeitado pela sociedade, resguardando as prerrogativas e delimitando as responsabilidades dos indivíduos – tudo isso pouco importava. Era mais relevante proteger o “pai dos pobres”, o “líder”, aquele que trazia a “justiça social” contra a sanha dos inimigos “imperialistas” em nome do “capital estrangeiro”. Com toda a seriedade, carregavam cartazes com dizeres como “Queremos Getúlio, com ou sem Constituição”.
O movimento, conhecido como Queremismo, foi derrotado, com uma deposição de Vargas à força – muito embora saibamos que o ditador foi apenas para um temporário retiro em São Borja, sem punição efetiva, conservando seu poder sobre a elite política e preparando toda a máquina necessária para voltar ao mando em pouco tempo. De todo modo, o que vimos naquele momento foi que as esquerdas e o populismo por elas instrumentalizado transformam pessoas e ideias-força em sumidades morais, a quem se garante o privilégio de pairar em importância acima da lei e dos princípios constitucionais, desenvolvidos para deixar a cada coisa o seu lugar e materializar o mais saudável ceticismo quanto às qualidades personalistas.
Os queremistas almejavam, como diria o linguajar popular, “dar um jeitinho”. Roberto DaMatta pontuaria que nosso dilema se alicerça na dificuldade de separar o “indivíduo”, o “sujeito das leis universais que modernizam a sociedade”, da “pessoa”, o “sujeito das relações sociais”. Se a “pessoa” era Vargas, e eles o amavam, então ele deveria estar acima das regras que valem para qualquer “indivíduo”, esse conceito tão inconveniente. Ele é o “pai”, a encarnação do bem, o salvador do povo; então a ele tudo deve ser garantido. Seus crimes, seus abusos, devem ser esquecidos. Tudo que se move contra ele, mesmo essa Constituição a ser criada, que nunca se viu nem se comeu, é “perseguição política”.
Alguém enxerga algo familiar a esse quadro nos dias de hoje?
É parecida àquela mentalidade a mentalidade do lulopetismo e das forças de esquerda que o orbitam e sempre orbitaram – no máximo, como falsas oposições e linhas auxiliares. No terreno das falsas oposições, temos lideranças que relativizam a imperativa preponderância da Justiça, afirmando que preferiam “derrotar Lula nas urnas”. Ocorre que enviar Lula para as urnas por conta da “preferência” de uns e outros seria, por óbvio, ignorar o tríplex no Guarujá reformado pela OAS como propina. Seria ignorar a reforma do sítio de Atibaia onde cintilam, em pedalinhos, os nomes de seus netos. Seria ignorar o prédio do Instituto Lula pago pela Odebrecht. Seria ignorar os escandalosos pagamentos a palestras fajutas.
Da parte dos próprios petistas e das linhas auxiliares, no entanto, muito embora os destemperos e abominações retóricas não sejam nada inesperados, é que ainda nos estupefazemos com a marginalidade e a repugnância das atitudes. Em certo sentido, pensam exatamente como pensavam os queremistas. Erguem-se em palavras de ordem, promovem manifestações de gosto duvidoso, bradam para que a “pessoa” Lula, no julgamento de segunda instância a ser realizado no TRF-4 em Porto Alegre no dia 24 de janeiro, prevaleça sobre o “indivíduo” Lula, devedor da lei e sujeito a ela como cada um de nós deveria estar. Querem-no imune, isento, juntamente com o “símbolo”, a “ideologia”, a “sublime causa” que representa – a mesma que hoje condena os venezuelanos ao arbítrio e à miséria, sob seu patrocínio criminoso. A mesma que o respalda quando, em seu Twitter, ameaça promover a “regulação da imprensa” e perseguir a Veja.
A comparação, entretanto, deve se encerrar aí. Chegamos a outro nível. Não se pode considerar o que têm feito os petistas e seus próceres como apenas mais uma variante da “malandragem”, do populismo e do personalismo brasileiros; não se pode considerar que o que fazem seja apenas mais uma manifestação do “jeitinho” para aliviar a carga para o “companheiro”. Não, senhores; isso seria banalizar a realidade. É muito mais do que isso. São autênticos marginais, chantagistas, terroristas. Querem intimidar a sociedade e o Poder Judiciário. É um grau de explicitude a que, por assassina que fosse a ditadura Vargas, os trabalhistas que protestavam pelo Queremismo não haviam chegado. Os petistas não se contentariam em levantar cartazes imbecis; isso é muito pouco. Eles querem um espetáculo público de escárnio com as instituições, que jamais respeitaram, e disseminar ameaças aos agentes da Justiça, cuja função não valorizam.
A sequência triste de fatos já se havia iniciado quando o larápio mensaleiro José Dirceu abriu a boca para convocar a militância e os “movimentos sociais” para um “dia de revolta”. Cristalinamente, ele verbalizou que “a hora é de ação, não de palavras”; é de “luta” e “combate”, não civilidade democrática. Talvez saudoso de seus anos de tétrica glória, Dirceu voltou aos tempos de agitador revolucionário. A ele se somaram lunáticas como a petista Gleisi Hoffmann e a comunista Manuela D’Ávila, dispostas a promover um “Tribunal Paralelo” um dia antes do julgamento do ex-presidente.
Para além de transformar um julgamento em um festival público, trazendo às ruas todo o exército de militantes e baderneiros para fazer de Lula um “perseguido político” – posição que negam às vítimas venezuelanas de seus delírios totalitários –, estarão também reunindo sua trupe em um circo de quinta, a debochar da efetivação da lei, justamente quando ela deve se abater sobre quem se julgava como monarca extraoficial do país.
Ao que tudo indica, a turma do PT vai fazer mais do que uma encenação vexatória e um acampamento do MST nos arredores do tribunal (o único e verdadeiro, leia-se). No último dia 13, o presidente do TRF-4 alertou o STF sobre ameaças que os desembargadores da Corte estão recebendo. Gangues que pressionam juristas a estabelecer essa ou aquela decisão através de subterfúgios como esse, o que são? “Malandras”? “Espertas”? Populistas? Mais uma vez, é pouco. Tamanha postura fascistoide e truculenta é coisa de bandidos da pior espécie! Não cabem tergiversações nem eufemismos.
Até a vergonha o PT perdeu. O tesoureiro do partido admitiu despudoradamente que a estratégia é mesmo amedrontar. “Emídio de Souza estimulou os petistas a demonstrar força para pressionar a Justiça. Ele disse que quanto mais força o movimento tiver, ‘mais comedida a Justiça vai ser’”, transcreveu a Folha. Não é para a Justiça sopesar os argumentos, o embasamento jurídico, as provas, as evidências, como deveria com relação a qualquer pessoa. Não. Lula é uma entidade, não um “indivíduo”. Ele deve ser julgado em um palanque, não perante um juiz. A gritaria, a coação, a brutalidade da matilha de fanáticos amestrados é que devem pesar. São eles que devem decidir pela sua salvação, e ai da Justiça se não levar seus esperneios irracionais em conta!
A perda do controle direto do Executivo fez com que o PT menosprezasse um tanto as aparências. Para que fingir? Nunca gostaram mesmo dessa coisa de instituições liberais, divisão de poderes. Que se dane tudo isso! O poder, pelo poder, para o poder, e nada além.
Em entrevista, Gleisi Hoffmann foi ainda mais explícita. “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar”. Paulo Okamoto, presidente do Instituto Lula, disse que foi “força de expressão” – algo que está virando desculpa para muita coisa ultimamente. Não nos deixemos ludibriar. O “Queremos Getúlio, com ou sem Constituição” virou brincadeira de criança. Os petistas ainda se sentem como os guerrilheiros comunistas enfrentando os generais de 64. Eles já não permitem subsistir qualquer dúvida acerca do quanto são incompatíveis com a democracia.
Este é um momento de decisão. Se quisermos crescer como sociedade, como cultura, como nação, precisamos dar mais peso ao “indivíduo” como sujeito da lei, caso contrário seguiremos a legitimar os privilégios e comodidades nababescas das nossas lideranças encasteladas na burocracia e no compadrio – e, tal como os petistas, o faremos sorrindo e aplaudindo enquanto afundamos. Lula não é deus, não é guerrilheiro, não é perseguido e muito menos vítima. Ele é um criminoso em primeira instância. Ele deve ser e há de ser julgado como qualquer um de nós seria.
Se os petistas estiverem dispostos a matar e morrer para impedir isso – desconsiderando-se aí a fanfarronice dos covardes que, certamente, deverão ser a maioria –, que sejam devidamente reprimidos pelas forças policiais. Haverá agora patriotas dispostos a zelar pelo futuro, se ele estiver sob ameaça. Como eles gostam de dizer, dizemos nós: não passarão!
Lucas Berlanza
Jornalista, colunista do Instituto Liberal e editor da Sentinela Lacerdista. Autor do Guia bibliográfico da Nova Direita.