Saímos da leitura com interrogações, até porque o próprio narrador tem dúvidas sobre o que vivenciou.
Esnobado por muitos, considerado gênio por outros tantos, Haruki Murakami, se não é um exímio escritor, também está longe de ser um escritor ruim. O que não se pode negar é o seu caráter imaginativo. Entrar no seu universo (ou nos seus universos) é algo hipnotizante. Só isso explica por que não larguei a leitura, entre o Natal e o último dia de 2017, de Crônica do pássaro de corda (tradução de Eunice Suenaga), um calhamaço com mais de 768 páginas, pesando mais de um quilo. Quem disse que ler é um hábito de gente sedentária? Ganhei alguns músculos nesta empreitada.
O romance se passa no mesmo ano da trilogia 1Q84. O ano de 1984, por suposto. É uma das tantas obsessões do escritor. Também inicia com uma música erudita. Se a saga de Tengo e Aomame começa ao som da Sinfonieta de Janacek, a saga de Toru Okada começa com o protagonista assoviando a abertura de La gazza ladra, de Rossini. Também em comum com sua obra mais ambiciosa, a presença de mundos paralelos onde se desenrola o enredo. E gatos. A história se desenrola a partir do sumiço de um gato. A esposa de Okada, Kumiku, pede que o marido procure o gato, mas antes disso ele recebe um telefonema estranho de uma mulher querendo fazer sexo pelo telefone. Está desempregado, fica em casa preparando o jantar, a mulher aceita essa condição numa boa, pois está recebendo um salário razoável, tudo parece muito tranquilo e normal.
Apenas parece. Estamos, porém, diante de uma história Murakami. Okada sai em busca do animal e ouve o canto de um pássaro que parece um som de alguém dando corda num relógio. O fluxo do tempo é reiniciado. Ele precisa prosseguir. Passa por um beco nos fundos de sua casa, passagem que foi bloqueada pelos moradores, ou seja, um fluxo interrompido. Conhece uma menina curiosa e por aí vai. Vários personagens vão surgindo, sempre estranhos, com histórias estranhas e dolorosas, como a do homem esfolado vivo durante o conflito da Manchúria, fato histórico importante no desenrolar do enredo. Outras pessoas, no entanto, vão desaparecendo, como a esposa do protagonista, e a busca passa a ser por ela.
E há um poço. Um poço seco. Okada entra no fundo do poço. Aparentemente a metáfora pode ser um clichê (como o título desta resenha), por tudo que ele passa na história, porém a simbologia enriquece ainda mais a narrativa. Segundo o Dicionários de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, é uma via que liga “três ordens cósmicas: céu, terra e infernos” (assim mesmo, no plural) O fluxo reinicia. E o personagem entra em mundo paralelo. “Senti certo estranhamento: tinha impressão de que no intervalo de alguns dias, enquanto estava dentro do poço, a realidade que existia até então fora sobrepujada por uma nova e diferente.”
Para o protagonista, parece não haver limites (“A fronteira entre o sono e o despertar não estava bem delimitada.”), assim como não há limites para a imaginação de Murakami. E ele consegue equilibrar a fantasia com a realidade, numa narrativa controlada, ora revelando ora escamoteando detalhes, jogando com o seu leitor, ao mesmo tempo que o respeita. Interrompe um episódio quando parece que vai nos cansar, e o retoma mais adiante. Por isso a leitura flui e não se torna monótona.
Saímos da leitura com interrogações, até porque o próprio narrador tem dúvidas sobre o que vivenciou. Bem antes, ainda no início de sua odisseia, já havia dito: “… os próprios conceitos de ‘verdade’ ou ‘realidade’ já não eram tão convincentes para mim.” Como leitores, buscamos uma verdade, ou algo próximo dela, a verossimilhança. E essa verdade é construída a partir de uma mentira, que é a ficção. Se o escritor consegue embaralhar esses limites com propriedade, sua obra de arte se solidifica e permanece. Murakami tem esse predicado. Espero comprovar isso nos próximos livros dele que lerei.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.
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