João Pereira Coutinho demonstra um ponto de crucial importância no pensamento burkeano.
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“Edmund Burke: A virtude da consistência”, de João Pereira Coutinho (Universidade Católica Editora, 2017, 80 páginas)
Edmund Burke, famoso estadista e teórico político irlandês, mais conhecido pela sua veemente crítica à Revolução francesa e por ser a figura icônica da representação do que pode ser chamado de um conservadorismo moderno, não pode ter sua carreira resumida às suas críticas aos jacobinos (que podem ser encontradas em seu magnum opus Reflexões sobre a revolução na França). Grande orador e comentador político que foi, Burke vivenciou diversos momentos conturbados da história política, e se fez presente e atuante diante os desafios que o confrontavam.
Na tradição da investigação das ideias políticas, um dos elementos mais discutidos acerca da figura de Burke é aquilo que é denominado de “o problema dos dois Burkes”. Basicamente, a controvérsia surge devido ao fato de que, ao longo de sua trajetória, Burke foi uma das figuras políticas mais complexas no que tange à clareza de seus posicionamentos. Exemplificando o caso: o mesmo Burke crítico da revolução dos franceses, foi o que se posicionou a favor dos colonos americanos, que militou pela limitação dos poderes do rei, criticou a atuação britânica na Índia e também tem em seu currículo a defesa dos católicos irlandeses.
Mediante uma figura de posições complexas e, para alguns, contraditórias, o debate acerca da origem de seus posicionamentos se tornou o ponto de discussão principal a respeito de seus trabalhos e sua história. É com uma objetividade didática, sem perder em densidade e sofisticação, que João Pereira Coutinho traz em seu ensaio Edmund Burke: A virtude da consistência um pouco do que ronda a questão.
O objetivo do autor não é fazer um tratado altamente pretensioso sobre a questão, nem mesmo se restringir a um nicho acadêmico fechado. Coutinho, como sempre, sabe jogar o debate para quem nem mesmo sabia de sua existência. Com sua escrita talentosa, João consegue expor os mais profundos elementos do debate e ao mesmo tempo esclarecer de maneira simples do que, de fato, tudo isso se trata. Com certeza é um ensaio para quem conhece Burke e trabalhos a respeito do mesmo, mas também é um ensaio para aquele que ouviu falar de Burke na semana passada e ficou curioso pra conhecer quem é esse tal “pai do conservadorismo moderno”.
Na construção de seu argumento (e esse é um termo que define bem a proposta do livrete, que inclusive faz parte da coleção “Argumento”, da editora da Universidade Católica Portuguesa), Coutinho inicia abordando autores e posicionamentos a respeito do problema, faz comentários e pondera o debate acerca do que seria um Burke utilitarista e um Burke naturalista, duas perspectivas que dominaram o debate ao longo do séculos XIX e XX, e aprofunda sua análise apresentando ao leitor para onde a resposta à questão foi se direcionando ao longo das últimas décadas – em suma, na negação de uma consistência existente no pensamento burkeano.
Entretanto, Coutinho não se limita à reafirmação e defesa de uma resposta já estabelecida, seja ela predominante ou não. O autor elabora uma solução bastante instigante, elevando o debate. Seu objetivo, como é dito pelo mesmo, é se “distanciar das modas do tempo – de qualquer tempo ”, em busca de demonstrar algo de crucial importância no pensamento burkeano e, a partir disso, defender sua consistência.
Passeando pelos episódios marcantes da carreira do estadista, Coutinho utiliza como método de análise uma nova percepção na forma de enxergar a cosmovisão burkeana. Para o autor, Burke poderia ser considerado um pensador que compreende e leva em consideração em suas posições a noção de natureza humana, o que na definição de Francis Canavan, como lembra Coutinho, seria alguém que determinaria a ação política de acordo com “princípios morais primários e imutáveis”. O que ele acrescenta, e que pode ser considerado o elemento principal que coordena todo o ensaio, é que Burke enxergaria a natureza humana não como algo singular, mas dividida em duas vias, ou duas etapas – “as duas concepções de natureza humana”, como define o autor.
Em outras palavras, a natureza humana na perspectiva burkeana se dividiria em duas dimensões: uma natureza intrínseca, biológica, universal, presenteada e desenhada pelo próprio Criador; e outra secundária, moldada, identitária e criada a partir dos hábitos, costumes e tradições em que o indivíduo esteja inserido. A partir dessa compreensão de uma dupla natureza humana, Burke teria então estabelecido as bases de seus posicionamentos e ações políticas, tendo na defesa de um equilíbrio entre a natureza primária, que seria uma espécie de barreira moral e guia negativo da ação política, e a natureza secundária, que seria o guia das ações políticas positivas de um estadista, a estrutura de sua filosofia política.
Para compreendermos melhor tal aspecto, é necessário olharmos para a própria trajetória e carreira de Burke, o que justamente Coutinho faz ao longo de seu ensaio, demonstrando em cada exemplo os elementos que constituíam sua noção acerca do homem e da forma como este mesmo homem deve ser governando. Usando o exemplo clássico da revolução francesa, podemos já enxergar, na crítica de Burke, suas duas concepções acerca da natureza humana, como aponta João Pereira Coutinho ao comentar sobre o caráter sanguinário, violento e adepto de meios criminosos dos revolucionários franceses:
a resposta avançada por Burke permite aproximar-nos da sua concepção de natureza humana universal: esses “meios criminosos” só são explicáveis porque os revolucionários suspenderam os “sentimentos naturais” que, por vontade do Criador, fazem parte da natureza de todas as criaturas.
A natureza humana universal serviria como uma barreira para a ação política. Uma barreira restritiva (nos termos de Anthony Quinton), que indicaria ao estadista o que não pode ser feito. A ação dos revolucionários, ao suspenderem os “sentimentos naturais”, apelando à violência criminosa em nome do ideal abstrato da revolução, seria, portanto, um crime contra a natureza universal do homem.
Da mesma maneira que a natureza universal é atacada na revolução, Burke revela que a postura revolucionária francesa atacava, também, a segunda natureza – a natureza social que constituía as bases da realidade francesa. Como aponta Coutinho,
Burke entende que existe uma “segunda natureza” que é conferida aos homens pelo facto de eles serem seres sociais, que habitam particulares sociedades, com instituições ou tradições ou princípios consagrados pelo tempo.
A segunda natureza seria, portanto, a identidade moldada pelos hábitos e tradições que dão face e estrutura para a realidade de uma comunidade e que servem de guia para a aplicação de políticas que buscam orientar a sociedade. Evidenciando o caráter destrutivo da revolução, ao atacar não apenas a natureza comum, mas, na leitura burkeana, a natureza social, Coutinho comenta:
Quando a Revolução golpeia, e golpeia duplamente, “a natureza comum e a relação comum entre os homens”, começa por se destruir esse patrimônio que é inestimável para a preservação e mesmo para a reforma de qualquer sociedade. A perda, para Burke, será imensa, na medida em que nada resta que mereça o apego da comunidade.
A virtude da consistência, como sugere o título, seria, portanto, característica basilar do pensamento burkeano. Tal consistência não estaria fundamentada em uma compreensão ideológica, dogmática e racionalista, e nem pode ser entendida através de uma noção simplória de dicotomia entre naturalismo e utilitarismo, mas se manifesta através da noção de um ser humano complexo, que é estruturado tanto por sua natureza intrínseca quanto pelos hábitos e tradições que, de maneira plural e contingente, moldam sua identidade.
Victor Oliveira
Estuda Relações Internacionais em Universidade Cândido Mendes.
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